O jornalista patriota

Dedicou toda a sua vida à escrita, pois sabia bem o poder que as palavras e os livros possuem. Chan Tai Pak é um jornalista veterano de Macau que combateu a invasão japonesa à China de caneta na mão. Ao longo de mais de 70 anos de carreira, este homem escreveu a história de Macau e não só

 

Jornalista Chan Tai Pak

 

Texto Alexandra Lages

Fotos Arquivo Histórico de Macau e Gonçalo Lobo Pinheiro

 

O bilhete de identidade de Macau diz que Chan Tai Pak tem 97 anos, mas nem sempre os documentos de identificação estão certos. Chan entrou pela primeira vez em Macau com cinco anos de idade. Fazendo bem as contas, já ultrapassou os 100 anos, mas ainda tem uma lucidez de fazer inveja.

O corpo já está cansado, mas ainda consegue ler uma caligrafia chinesa a olho nu e contar as suas histórias de valor incontornável. Foi jornalista e Macau hoje presta-lhe homenagem pelo contributo que teve não só para a imprensa e cultura locais, mas para a resistência à invasão japonesa.

Chan Tai Pak foi um trabalhador incansável. Só se reformou em 2009. “Tinha quase 98 anos”, conta Lau Fong, directora do Arquivo Histórico de Macau. Nasceu no seio de uma família humilde de Xinhui, na Província de Guangdong. Na escola, destacou-se como um aluno brilhante, mas também foi autodidacta. Aprendeu sozinho Filosofia, Retórica e Comunicação.

“É um jornalista veterano com mais de 70 anos de carreira. Começou a participar nos jornais diários Chiu Iong e Tai Chung em 1935”, continua Lau Fong. Conhecer a história de Chan Tai Pak é recuar no tempo. Um tempo em que eram os jornais o único meio de informação. Era através deles que as pessoas iam sabendo as notícias locais e do mundo, principalmente aquelas que vinham do outro lado da fronteira.

Como era muito pobre, o jovem Chan só conseguiu estudar até à escola primária. A vontade de continuar era tanta que não se conformou e mudou-se para Cantão, onde reiniciou os estudos enquanto trabalhava numa fábrica para cobrir as despesas. Apesar de todas as dificuldades, conseguiu concluir a escola secundária. Queria muito ser jornalista e começou a ler livros sobre a profissão, bem como obras de filósofos europeus e chineses.

Em 1935, começou então a trabalhar no jornal diário Chiu Iong em Macau e arranjou um segundo trabalho no Tai Chung Pou, onde escreveu durante mais de sete décadas.

 

Repórter de guerra

Dois anos depois de Chan se iniciar na profissão de jornalista, rebenta a segunda guerra sino-japonesa, no dia 7 de Julho de 1937. “Ainda que a guerra não tenha entrado em Macau, viveram aqui muitas pessoas ligadas a esse conflito, e os jovens tinham muita vontade de apoiar a China. Então, estes dois jornais diários juntaram-se e criaram uma associação. Esta associação tinha quatro círculos: académico, música, desportiva e de teatro ou ópera”, conta a directora do Arquivo Histórico.

O jornalista veterano filiou-se na Associação Quatro Círculos de Macau para a Assistência nas Calamidades desde a primeira hora. “Esta associação recolhia doações de materiais e dinheiro para apoiar a China. Além de participar neste tipo de movimento, Chan Tai Pak publicitava através do jornal as notícias do movimento da China e de Macau. “Foi importante, porque na altura não havia rádio nem televisão”, diz Lau Fong.

A Associação dos Quatro Círculos foi o maior movimento associativo anti-japonês em Macau. Chan foi membro do conselho e director de assuntos gerais da organização, bem como membro do Regimento de Apoio dos Expatriados à Pátria. Dedicou-se de corpo e alma ao movimento de resistência à agressão japonesa e de salvação nacional. “Ele conhece muito bem aquela época. É o único sobrevivente da Associação dos Quatro Círculos”, destaca Lau Fong.

Ao mesmo tempo que era o responsável pelos assuntos gerais da organização, organizava equipas que eram enviadas para a Província de Guangdong e ainda tinha tempo para escrever relatos sobre aqueles tempos.

O jornalista é também uma testemunha viva da Segunda Guerra Mundial. “Trabalhei todos os dias durante a Segunda Guerra Mundial”, disse. “Era comum haver cortes de electricidade e tínhamos que usar velas. A impressão do jornal era muito cara, então tínhamos que usar papel de pouca qualidade e apenas imprimir quatro ou oito páginas”, recorda Chan.

“Tínhamos que terminar os artigos cedo para que os censores pudessem lê-los primeiro. Eles apagavam palavras como ‘patriota’ e deixavam apenas um espaço em branco. Então tínhamos que ser muito subtis e arranjar maneiras de dizer as coisas de forma indirecta”, relembra.

Em tempos de guerra, o trabalho dos jornalistas era essencial. “Em 1942, as coisas ficaram piores com a queda de Hong Kong e das zonas vizinhas, o que tornou Macau uma ‘ilha isolada’,” relata Chan. A escrita era cada vez mais uma forma de resistência. E o jornal era a trincheira de Chan. “O poder do inimigo estava a crescer muito rapidamente em Macau, com os seus lacaios a actuarem sem controlo. Na linha da frente das notícias de guerra, nós tínhamos que prosseguir com o nosso trabalho, manter a opinião da nação e garantir que não era manchada pela propaganda inimiga de forma alguma. O Governo colonial não conseguia resistir a toda esta pressão e foi forçado a banir todos os tipos de actividades patrióticas em Macau. A polícia secreta japonesa assassinava pessoas de quem o inimigo não gostava”, conta.

 

Primavera negra

O bloqueio japonês era cada vez mais forte. O principal abastecedor de alimentos a Macau era a China. Havia fome e morte nas ruas da cidade. “Neste período de escassez de cereais e outros bens essenciais, havia um pequeno número de pessoas que aproveitou a oportunidade para comprar e acumular alimentos, tornando a situação ainda pior. Isso causou um cenário sem precedentes em Macau. Havia muita fome e um número incontável de pessoas a chorar copiosamente por comida. E acrescente a isso tudo um Inverno especialmente frio e, com a chegada de ventos ferozes, isso trouxe uma Primavera negra [em 1942]. Pessoas morreram de frio e fome”, diz.

A resistência tinha que ser feita a todos os níveis. “Naquele tempo, uma pessoa patriota enfrentava todos os tipos de pressões e dificuldades, para manter a atitude até ao dia da vitória.”

 

A vitória

O conflito chega ao fim oito anos depois, em 1945, no mesmo ano em que termina a Segunda Guerra Mundial. Depois de anos a viver à custa de senhas de distribuição de arroz, uma época que consta nos períodos mais negros de Macau, o jornalista volta a garantir a sua presença nas páginas da história do território.

Na década de 1960, participou na preparação dos trabalhos para a criação da primeira associação dos trabalhadores da imprensa de Macau, estabelecida após a fundação da República Popular da China.

Ao longo dos anos, Chan desenvolveu a sua vertente literária e escreveu numerosos artigos para jornais, abordando assuntos tão diversos como filosofia, linguística, actualidades, bem-estar e saúde. Publicou vários livros ao longo da sua carreira, que se tornaram referências obrigatórias para o estudo da história de Macau. É o caso de Filhos e Filhas de Macau no Tempo e Colecção de Tianming Zhai.

As suas Crónicas de um Homem Honesto são um exemplo do seu trabalho jornalístico. Na sua obra literária, também consta a publicação Princípios Básicos da Gramática Chinesa, compilada e editada pelo jornalista.

Chan foi um homem activo tanto na escrita como no coleccionismo. Ao longo dos anos, o jornalista guardou documentos e objectos que incluem revistas de guerra e armas do exército japonês. O seu contributo fica guardado no espólio do Museu de Macau e no Arquivo Histórico.

 

Cronologia

1910

Terá nascido na Província de Guangdong

 

1915

É a data de nascimento no bilhete de identificação de Macau, mas, na verdade, foi quando a família emigrou para Macau.

 

1935

Inicia a carreira de jornalista no diário Chiu Iong

 

1937

Filia-se na Associação Quatro Círculos de Macau para Assistência de Calamidades

 

1967

Participa na preparação para a fundação da primeira associação de trabalhadores da comunicação social de Macau

 

1968

Torna-se membro da direcção da Associação dos Trabalhadores de Imprensa de Macau que foi criada no mesmo ano

 

1990

Lança a obra Filhos e Filhas de Macau no Tempo

 

1995

Publica a Colecção de Tianming Zhai, textos onde faz o relato dos acontecimentos durante a guerra sino-japonesa

 

2004

É premiado com a medalha de Mérito Cultural pelo Governo da RAEM

 

2010

Doa uma grande colecção de fotografias pessoais e outros materiais que reuniu durante toda a sua vida à Associação de Jornalistas de Macau