Uma muralha por ultrapassar

Cristovao Tezza, em Macau
Cristovão Tezza é um dos quatro escritores brasileiros a ver a obra traduzida para o mandarim no próximo ano. O autor que esteve em Macau a apresentar o multipremiado O Filho Eterno diz que o panorama melhorou muito, mas ainda é preciso fazer circular melhor a literatura entre o Brasil e a China

 

Cristóvão Tezza em Macau

 

Texto Filipa Queiroz

Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Prémio Jabuti para o melhor romance, prémio da Associação Paulista dos Críticos de Arte para o melhor livro de ficção, primeiro prémio Portugal-Telecom de Literatura em Língua Portuguesa, e a lista continua. O Filho Eterno de Cristovão Tezza foi um dos mais recentes fenómenos de popularidade no Brasil e fora. Desde 2007, ano de edição, a obra foi publicada em Itália, França, Espanha, Holanda, Austrália e Nova Zelândia. Para o ano é a vez da China.

“O livro teve um impacto muito forte e muito rápido, começou a ganhar uns prémios atrás dos outros e as propostas de traduções foram surgindo”, conta o escritor. Conversamos à sombra das deliciosas cânforas do Albergue SCM, ao segundo dia dele na cidade. “Para a versão em mandarim foi uma chinesa que esteve no Brasil, leu o livro, gostou e, são aquelas coisas acidentais, ela sugeriu a tradução a uma editora amiga da People’s Literature Publishing House. Eles entraram em contacto com a minha agente e a edição estará pronta em Junho do próximo ano”, continua.

Vai ser o primeiro livro de Tezza traduzido para o chinês. Um privilégio de poucos escritores brasileiros, confirma o escritor. “O trânsito da literatura brasileira com a chinesa é muito ralo, quase nada. Por exemplo, o Brasil não tem nenhum livro traduzido do novo Nobel [da Literatura, Mo Yan]. Tem uma muralha da China que a gente precisa furar para fazer circular a literatura dos dois países.”

 

Êxito inesperado

Considerada uma das dez melhores obras de ficção da década no Brasil pelo jornal O Globo em 2009, O Filho Eterno demorou 20 anos a sair da gaveta. Vinte anos de maturação da escrita e preparação psicológica para derramar em livro a experiência mais impactante da vida de Cristovão Tezza – o nascimento do filho Felipe com síndrome de Down. Mas o escritor recusa que se tenha tratado de qualquer espécie de catarse. “A catarse não é uma boa conselheira literária. Escrever para desabafar, deitar para fora. A boa literatura é como a vingança, tem de ser escrita a frio, com a devida distância”, diz.

A vontade de enfrentar o tema surgiu depois de terminar O Fotógrafo (2004). “Estava a sentir-me covarde e dizia para mim mesmo ‘não posso fugir disso aí, tem que enfrentar isso aí’, então passei um ano a tentar descobrir qual a linguagem a usar para abordar o tema, até que peguei na embocadura romanesca de ficção e transformei aquele pai num outro, usei factos da minha biografia e escrevi um romance.”

No livro, Tezza expõe as inúmeras dificuldades e pequenas vitórias de criar um filho com síndrome de Down, do anúncio do problema à separação da mulher e à reflexão pessoal. Traçado dentro do estilo que o autor chama de “realismo reflexivo”, Tezza diz que com O Filho Eterno, distinguido com o prémio Charles Brisset da Associação Francesa de Psiquiatria, retomou não só aquilo que o formou enquanto homem e pai, mas também enquanto escritor – a sua geração. “Ali tinha uma questão central que eu queria desenvolver e que era: por que é que aquele pai utopista, que vivia todos os sonhos igualitários e a favor de todas as diferenças, fracassou tão completamente quando o primeiro diferente atravessou na vida dele? O livro trabalha isso, essa relação.”

 

Immobilis Sapientia

Natural de Santa Catarina, Cristovão Tezza, 60 anos, foi um jovem rebelde. E foi essa rebeldia que construiu a sua literatura. No final dos anos 1960 juntaram-se as circunstâncias sociais e políticas do país, governado por um regime autoritário de 1964 a 1985, com o desejo de escrever e ser artista. A mentalidade da época favorecia essa vontade. Escreveu os primeiros rascunhos na adolescência. “Eram textos muito ruins, muito fracos, era só a vontade de escrever, mas eram denúncias sociais, sonhos de utopia, projectos existenciais. Isso marcou muito o meu começo de carreira de escritor”, recorda.

A universidade não estava nos planos. Não queria que uma instituição o “sufocasse” como escritor, uma ideia comum na época. Para se sustentar trabalhou como relojoeiro, passou pela Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante e também foi actor e escreveu peças no Centro Capela de Artes Populares de Curitiba. Em 1970 concluiu o ensino médio no Colégio Estadual do Paraná e quatro anos depois partiu para Portugal para ver de perto “a festa” de que Chico Buarque falava na canção. “Consegui uma passagem de ida – os tempos eram tão inocentes que a gente ia para a Europa só com a passagem de ida e deixavam entrar (risos) -, consegui uma matrícula na Universidade de Coimbra pelo Convénio Luso-Brasileiro, mas a universidade estava fechada por causa da Revolução dos Cravos. O que até foi bom porque fui para a Alemanha. Fui para a Alemanha lavar pratos! (risos).”

O primeiro livro “mais ou menos maduro” que escreveu, A Cidade Inventada (1980), nasceu das andanças pela Europa. Viagens que lhe permitiram não só a experiência de viver o momento da queda dos regimes e o renascer da democracia, como ter acesso a livros e filmes que a censura não deixava entrar no Brasil em ditadura. “Para mim ver o meu país de longe foi uma coisa muito boa. Eu lia todos os livros liberados, sobretudo literatura universal como as peças de Beckett e os romances de Faulkner. E via os filmes de Costa Gavras e Pasolini numa época que era de formação para mim. Ao mesmo tempo ia acompanhando a turbulência política de Portugal que num ano teve cinco governos provisórios. Isso para mim foi um aprendizado político importante”, explica.

Uma das recordações que guarda com carinho são as horas de leitura na Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. “Um dos contos de A Cidade Inventada tem o nome em latim que é Immobilis Sapientia (Sabedoria Imóvel). Foi inspirado naquela biblioteca enorme, meio sinistra!”

 

Brasil livreiro

Quando regressou ao Brasil “o sonho acabou”. “Comecei uma vida mais tranquila, fiz o curso de Letras na universidade e transformei-me em professor”, conta Tezza. Trabalhou como professor de Língua Portuguesa primeiro na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, e depois na Universidade Federal do Paraná. Nessa altura publicou várias obras.

Trapo (1988) tornou-o conhecido nacionalmente, seguiram-se Breve Espaço entre Cor e Sombra (1998), contemplado com o Prémio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, e O Fotógrafo (2004) que recebeu, no ano seguinte, o Prémio da Academia Brasileira de Letras e o Prémio Bravo!. Vinte anos depois, com o sucesso de O Filho Eterno, Tezza deixou o ensino para se dedicar exclusivamente à literatura.

“No Brasil há uma nova geração para quem isso já não é tão impossível, melhorou bastante o panorama de quem começa a escrever”, diz o escritor que tem como principais referências na literatura brasileira Machado de Assis, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade. E faz questão de acompanhar a par e passo as novas gerações. “Na literatura contemporânea o Brasil está a viver uma renovação muito grande. Acho que houve um momento de silêncio entre os anos 1970 e 1990, um pouco pela ditadura e as circunstâncias da época, mas agora está a surgir uma nova geração de autores muito boa. Acho que a literatura brasileira vai crescer muito nos próximos anos.”

O escritor atira nomes como Daniel Galera (Cordilheira, 2008), Michel Laub (Diário da Queda, 2011), Bernando Carvalho (Nove Noites, 2002) e Paulo Scott (Habitante Irreal, 2010). “Está a haver uma recuperação do realismo, o realismo no sentido mais genérico, não específico de escola literária porque isso já não faz sentido. Mas no sentido de um olhar mais realista para a história e menos poético no sentido dos anos 1970, que poetizou tudo e a prosa esfarelou-se, perdeu-se. Está a haver um renascimento da prosa narrativa muito forte”, refere acrescentando à lista de referências o autor seu contemporâneo Milton Hatoum (Dois Irmãos, 2000).

Já Paulo Coelho “é um fenómeno global” que não está inserido numa tradição histórica literária do Brasil, na perspectiva do escritor. “Ele trabalha com signos de um mundo já globalizado, de fórmulas mágicas, auto-ajuda, narrativas moralizantes com toques de sabedoria do Oriente. E claro que teve o talento de fazer isso e encontrar o seu leitor”, diz.

De Portugal, Tezza confessa-se um admirador de Gonçalo M. Tavares, aproveita para elogiar a “generosidade” das editoras brasileiras no que toca à edição de literatura lusófona. “O mercado deu um salto de qualidade nos últimos anos, bem significativo.”

Com um livro acabado de publicar, O Espírito da Prosa, ensaio não académico sobre o romance com toques autobiográficos, Cristovão Tezza admite que já tem um novo romance na calha e “mais ambicioso”. “Quero fazer uma reflexão dos últimos 20 anos do Brasil. Pensei chamá-lo A Homenagem mas mudei para O Professor, só que ainda nem sei qual vai ser a linguagem do livro”, diz. A curto prazo quer aproveitar as viagens e o descanso para amadurecer a história. E da primeira visita a Macau leva um livro de Henrique de Senna Fernandes debaixo do braço e uma crónica a publicar na coluna semanal que assina no jornal de Curitiba Gazeta do Povo.