Meninos das favelas sagram-se campeões na China

São adolescentes que vivem em favelas brasileiras e encontraram no futebol um escape para a tentação do dinheiro fácil do tráfico de drogas. Em Pequim, jogaram à bola como gente grande e inspiraram as autoridades chinesas a investir no desporto como forma de equilibrar diferenças sociais

 

 

Texto Vera Penêda, em Pequim

 

“A Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) acalmou o bairro e já não tem mais bandido não, só policiamento. Todo mundo fica na rua brincando, futebol na quadra; é melhor que virar traficante na rua”, conta Luiz Gabriel, de 14 anos, um dos jogadores da equipa da Escola de Futebol Zico 10, que vive na Providência, uma das favelas no Rio de Janeiro, Brasil. “O meu pai morreu há vários anos, a minha mãe não queria deixar o vinho”, continua Gabriel que vive com a tia-avó e nunca imaginou vir a jogar futebol do outro lado do mundo, na China.

Gabriel e outros 17 jovens jogadores da Escola de Futebol Zico 10 saíram do Brasil, andaram de avião e comeram com pauzinhos pela primeira vez na vida em Pequim. Os meninos viajaram até à China para participarem na terceira edição do Torneio da Grande Muralha (The Great Wall Cup – GWC), durante o Verão, no Centro Desportivo 26 Graus, na capital chinesa.

O GWC é um torneio de futebol para adolescentes entre os 11 e os 18 anos que combina futebol e cultura, numa competição que promove a integração e o desportivismo. O torneio pretende ser uma incubadora de talento jovem e um palco de exposição internacional ao mesmo tempo que treina crianças para serem jogadores e cidadãos virtuosos dentro e fora do campo. Um total de 22 equipas, incluindo nove estrangeiras de cinco países diferentes – Austrália, Brasil, Japão, Rússia, Tailândia e Tanzânia -, participaram no único torneio de futebol de carácter internacional juvenil realizado anualmente na China.

A equipa da Escola de Futebol Zico 10 regressou ao Rio com uma taça na bagagem, depois de vencer o Torneio da Grande Muralha 2012 na categoria sub-15, sem qualquer derrota nos cinco jogos que disputou. Os jovens embaixadores brasileiros são a prova viva da forma como o Rio está a apostar no futebol como força motora de paz, educação e desenvolvimento social, na recta final para o Campeonato Mundial de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016. O exemplo da Escola Projecto Zico 10 inspirou a China, que pondera agora investir no futebol como forma de equilibrar diferenças sociais, ao estilo brasileiro.

 

Fé na bola

“A escola de futebol é um projecto bom que tira crianças das ruas para educar, para levá-las para um caminho bom”, refere Matheus Barbosa, de 14 anos, que vive na Cidade de Deus, a favela  popularizada através do filme com o mesmo nome. Barbosa vai à escola de manhã, uma das condições para jogar futebol na Escola de Futebol do Zico 10, onde o jovem treina duas horas por dia durante a tarde. O jovem foi um de apenas dois privilegiados que regressaram à China, depois da instituição ter participado no mesmo torneio pela primeira vez no ano passado. Da primeira visita ao Império do Meio, Barbosa recorda a Grande Muralha, mas não ficou fã da gastronomia chinesa. “Fiquei feliz [de saber que ia regressar à China]; muitos meninos queriam estar aqui. Quando receberam a notícia que não iam viajar, deu até pena deles”, disse o jovem que sonha ser jogador de futebol como os seus ídolos, Cristiano Ronaldo e Ronaldinho. O mais difícil foi mesmo lidar com as “saudades da mãe”.

Luiz Gabriel e Matheus Barbosa foram seleccionados de um grupo de 3500 jovens de 11 comunidades pacificadas do Rio de Janeiro – Cidade de Deus, Mangueira, Prazeres, Providência, Rocinha, Salgueiro, Santa Marta, São Carlos, Turano, Vidigal/Chácara do Céu, Projeto Porto Real. No ano passado, os 18 meninos que foram à China eram todos da Cidade de Deus, mas desta vez a escola conseguiu expandir a iniciativa a outras comunidades.

“Esta é a primeira vez que estes meninos saíram do seu país, entraram num avião, comeram com pauzinhos ou no McDonald’s e participaram numa competição internacional como a Copa da Grande Muralha”, observa Otávio Vilarinho, um dos treinadores da equipa. Vestidos com camisolas Rio 16, a equipa representa o mega-projecto brasileiro que promove a inclusão social através do desporto nas comunidades carenciadas das favelas, que antes eram dominadas pelo tráfico de droga e violência nas ruas.

“Antes de treinar o jogador, estamos a educar o cidadão”, explica Vilarinho. Os jovens futebolistas pertencem a famílias pobres, muitos são órfãos ou filhos de pais reclusos e só podem frequentar a escola de futebol se estiverem inscritos na escola local e demonstrarem resultados satisfatórios. O principal objectivo do Projecto Zico 10 – Rio 16 é promover a educação de homens e mulheres para serem bons cidadãos, tendo como inspiração Zico, ex-jogador brasileiro e lenda futebolística que actualmente treina a selecção do Iraque. “Sem bons exemplos humanos, estas crianças passam o seu tempo nas ruas, onde o seu herói passa a ser o traficante de droga de arma em punho”,  aponta o treinador, notando que um dos técnicos da equipa pertence às forças policiais.

O Projecto Zico 10 – Rio 16 é uma iniciativa conjunta da academia do Zico, uma organização não governamental que abrange 15 mil crianças por todo o país, e a oficina de desporto e lazer do estado do Rio de Janeiro, com 600 centros na cidade.

 

No caminho do bem

“Eles são muito bons”, comentou Zhong Zi à beira do relvado, enquanto observava o Futebol Clube Beijing Sangao, a equipa do seu filho, a ser derrotada por 4 a 0 pela equipa brasileira. “É bonito ver como estes miúdos trocam camisolas e tentam conversar mesmo não falando a mesma língua”, acrescentou Zhong no final da partida. “O importante é que estas crianças se divirtam enquanto praticam uma actividade saudável e convivem com outras culturas.” A presença do Brasil foi um exemplo de “diversão, paixão pelo futebol e uma linda história humana”, referiram os organizadores.

Com mais tempo para seleccionar e treinar jogadores, a Escola de Futebol Zico 10 regressou à China com uma equipa de qualidade técnica superior à do ano passado. “Este grupo está melhor preparado. Estes meninos não são atletas de alto rendimento mas têm muito potencial. Esta viagem pode ser uma janela de oportunidade para eles”, ressalta Vilarinho, acrescentando que o mais importante não foi ganhar o torneio.

“A prioridade é educar estes meninos, proporcionando-lhes uma experiência desportiva e pessoal”, nota o treinador. Durante a viagem, os rapazes aprendem a comportar-se dentro do autocarro, no hotel, no campo e a respeitar-se uns aos outros. “Para muitos, é a primeira vez que lidam com saudades de casa e da família. Queremos levar de volta meninos que, apesar do ambiente em que vivem e do relacionamento difícil com os familiares, aprendam a valorizar a família, sentindo saudades de casa e das pessoas que normalmente têm por perto”, explica Vilarinho.

Depois de ter ficado no fim da tabela no torneio do ano passado, a equipa venceu desta vez os cinco jogos que disputou, marcando 24 golos, com apenas um sofrido devido a um penálti. “Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Vou guardar [esta experiência na memória] para sempre”, disse João Victor, do núcleo da Mangueira, no regresso ao Rio e apesar do cansaço das mais de 20 horas de viagem.

 

Bom exemplo

Escolas, projectos sociais, clubes e academias de futebol amador encontraram-se em Pequim para o Torneio da Grande Muralha. “O objectivo do torneio é desenvolver adultos socialmente responsáveis através da beleza do desporto”, disse a organização do evento. Fora do campo, os jovens participaram em lições de kung fu e de caligrafia chinesa, visitaram a Grande Muralha e divertiram-se em mostras de talento e festas.

Apesar do exemplo brasileiro, muitos meninos carenciados que vivem em favelas africanas na Tanzânia e jogam futebol na Escola Internacional do Morogoro, não tiveram tanta sorte – não voaram até Pequim. O treinador, Fred Tchalewa Ndeki, contou que a escola não tem meios financeiros para pagar a viagem das crianças carenciadas. “São órfãos, filhos de mães e pais solteiros, pedem nas ruas. Muitos estão malnutridos e desistem da escola porque não têm o que comer”, explica o treinador, com os olhos quase em lágrimas.

“Na escola de futebol as crianças fazem duas refeições por dia e passam o seu tempo num ambiente saudável, em vez de estarem em casa, onde não têm bons exemplos e têm que lidar com problemas de gente adulta.” Ndeki treinou cerca de mil rapazes das favelas em dez anos. Sob a asa do técnico, dentro e fora do campo de futebol, alguns rapazes abandonaram o morro onde viviam e hoje estudam na universidade ou têm uma profissão. “Às vezes nem jogamos, só falamos acerca da vida”, comenta Ndeki, contando como estas sessões contribuem para nutrir a auto-estima e o respeito nas crianças.

Tal como no projecto brasileiro, é obrigatório ir às aulas na escola local para jogar futebol na escola do Morogoro, onde Ndeki treina crianças carenciadas e não carenciadas dentro do mesmo campo. O instrutor tanzaniano só conseguiu levar até Pequim os filhos de advogados, contabilistas e juízes – os pais que podiam pagar a viagem. “Treinamos jogadores de futebol, mas antes de mais, educamos. O intercâmbio cultural com crianças de outros países, culturas e condição social é uma oportunidade para interiorizar os valores positivos que o desporto promove, como a camaradagem, o fair-play e o gosto por uma actividade lúdica que é saudável.”

Sem um histórico de violência e com poucos modelos futebolísticos, a China não possui iniciativas sociais ancoradas no futebol. “Sabemos e somos testemunhas dos benefícios que o futebol pode oferecer a crianças de comunidades carenciadas internacionais. Podemos melhorar nesse campo”, refere Shine Liu, director-executivo do torneio.

“O nosso objectivo futuro será a abertura gradual do evento a mais comunidades carenciadas, oferecendo-lhes treino e equipamento desportivo”, ressalta o “Acreditamos que o Torneio da Grande Muralha pode mudar a vida de alguns jovens para sempre.” Liu assinala que a China ainda tem que encontrar o seu próximo Yao Ming, herói nacional do basquetebol, no futebol. “As crianças têm de sentir-se inspiradas para desenvolverem o seu potencial e perceberem a forma como o futebol pode influenciar positivamente as suas vidas”, diz o organizador. “Quando emergir uma super-estrela chinesa no futebol, a popularidade do desporto vai disparar e o Governo investirá mais em projectos como este torneio.”

 

Plataforma internacional

Enquanto o torneio oferece aos brasileiros uma arena para superarem problemas sociais e aumenta a esperança dos tanzanianos de poderem seguir as pisadas do Projecto Escola Zico 10, outras equipas encaram o evento como uma plataforma de visibilidade e profissionalismo. Dez árbitros estrangeiros participaram no torneio deste ano.

“Temos poucas oportunidades de sair do país, esta competição é bastante importante para nós”, afirma Wang, treinador do Futebol Clube Beijing Sangao. “Jogar com adversários de alto nível, como as equipas brasileira e australiana, é uma oportunidade para aprendermos um estilo e técnicas de jogo diferentes. É assim que começamos a preparar as equipas domésticas numa conduta de profissionalismo e estatuto internacional”, sublinha Wang, reconhecendo que a experiência do torneio vai além do campo de futebol e não é mensurável em golos.

O Torneio da Grande Muralha é um evento não lucrativo que pretende transformar-se no melhor torneio juvenil de futebol na Ásia nos próximos cinco anos. O certame é organizado pela Associação de Desenvolvimento Olímpico de Pequim (BODA, na sigla inglesa), pela Associação de Futebol de Pequim e pela empresa de eventos China Sports Tour.

“Esperamos utilizar o GWC como uma plataforma para ajudar a desenvolver o futebol juvenil na China convidando equipas internacionais que ajudem os jovens chineses a aprender, compreender e respeitar o futebol de outros países”, frisa Liu. “A China é uma nação que ainda está em crescimento na área do futebol, mas o entusiasmo já é visível nos jogos em várias cidades do país. Cada vez que há jogo de futebol do Beijing Guoan [equipa treinada pelo português Jaime Pacheco], o trânsito pára, o estádio enche e a atmosfera e entusiasmo dos fãs é comparável a qualquer outra cidade estrangeira que ama o futebol.”

Liu explica que o torneio é um palco para dar a conhecer a China e o futebol chinês bem como promover Pequim como capital internacional. Desde que o torneio foi criado há três anos que a organização investiu em campos de treino, oficinas para treinadores e jogadores durante o ano, com o objectivo de atrair cada vez mais equipas nacionais e internacionais, bem como abrir o torneio a equipas femininas. “Lançar boas infra-estruturas e condições [para a prática de desporto] é fundamental para qualquer país que pretenda preparar uma nação de jogadores de alto nível,” aponta o responsável chinês. “Temos esperança que outras associações de futebol na China sigam o modelo do Torneio da Grande Muralha para criar mais oportunidades para que equipas e jogadores a nível local possam ter uma experiencia internacional.”

O torneio está aberto a equipas de todos os países, incluindo Portugal que, segundo a organização, seria muito bem-vindo a apresentar a sua candidatura e a participar. A próxima edição decorre no Verão de 2013.