Texto Fernanda Ramone | Fotos Naomi Cassanelli, em Pequim
“A arte é a magia libertada da mentira de ser verdadeira.” Era assim, com esta definição que o filósofo alemão Theodor Adorno classificava a arte. Em se tratando dessa matéria, a influência alemã em Pequim, mesmo que sem querer, acabou por virar referência. Passou dos vislumbres ideológicos comunistas de Mao ao que seria o futuro da indústria de base na China, para o mais famoso distrito de arte da capital, o 798 ou o Dashanzi.
O local, um complexo de fábricas com arquitectura inspirada na escola de Bauhaus, foi construído no final da década de 1950, com ajuda do governo da Alemanha Oriental. Foram usados fundos destinados a União Soviética como reparação aos danos da Segunda Guerra Mundial e o bairro industrial foi idealizado para ser o exemplo da colaboração harmoniosa entre os países socialistas.
No final da década de 1990, porém, com a sua progressiva desactivação, o complexo foi dando lugar a armazéns e espaços enormes vazios.
Cenário que correspondia exactamente às expectativas de alguns professores e intelectuais da Academia Central de Belas Artes (CAFA): grandes espaços a preços módicos para abrigar o departamento de escultura da universidade. Não demorou muito para que grupos de artistas independentes fossem atraídos para o local, logo convertido em estúdios, lofts, residências e espaço das efervescências.
O começo tímido gradualmente converteu-se em números significativos. No começo do ano de 2000, metade dos espaços das fábricas – aproximadamente 100 mil metros quadrados no total – já estavam alugados.
Dashanzi não cabe em si
Dashanzi há tempos que é um dos bairros exponenciais de arte em Pequim, mas nem todos os seus edifícios foram ocupados para este fim. A área conserva ainda algumas poucas indústrias em funcionamento, que juntamente com a arquitectura que deixa tubos de metais e ductos com vapores à mostra proporcionam ao ambiente todo um efeito especial.
A efervescência que se desprende de lugares não esperados, a ebulição criativa que encontra nos tijolos vermelhos, nos parapeitos, nas frestas, nos vãos, o palco para qualquer apresentação. É lá o único lugar permitido de toda uma Pequim para os grafites, os adesivos, as intervenções, o street art.
Não há parcimónias: alternativos, independentes, renomados, punk, bossa, rock’n’roll. Cabem todos em Dashanzi. Porque para além de artístico, Dashanzi está na moda. E também vive da moda. É reduto para desfiles da marca francesa Dior, ou simplesmente para sessões fotográficas para catálogos publicitários. É a passarela e o cenário de fundo para muitas fotos de casais de noivos chineses.
Dashanzi é itinerante, o calendário não acompanha todas as mostras, inaugurações e festivais. Dashanzi pulsa no ritmo frenético das batidas electrónicas de festas memoráveis que duram dias e atraem multidões. Dashanzi é arte, é moda, é música, é comportamento e é história. O bairro não cabe em si, ultrapassou as barreiras das possíveis definições.
Sendo também um dos tantos pontos turísticos de Pequim, a dificuldade do turista é de enquadrar tudo isso na foto. Mesmo com os ajustes, é preciso ainda focar no panorama multicultural (das galerias, dos artistas e do público) e torcer para que os megapixéis de uma imagem consigam estampar bem todo esta experiência.
De decadente, o 798 passou a ser o ponto mais in de Pequim. Há pelo menos quatro anos o bairro conquistou de vez e trouxe para o seu entorno planos de reurbanização. Cresceu e influenciou a dinâmica de um bairro tido como subúrbio. Com o plano do Governo em acção, abriram-se novos espaços para escritórios, prédios e mais prédios a perder de vista para comportar empresas de design, arte, arquitectura, tecnologia. O 798 entrou para o mapa da cidade como o bairro das artes e das inovações criativas.
Arte para todos
Com a firme proposta estampada já no nome, a AFA inclui a arte em todas as suas formas e para todos. Celebra há cinco anos em Macau e três em Pequim a jornada dupla e ilimitada de um vai-e-vem de intercâmbios culturais. Instalação, vídeo-arte, escultura e pinturas criam o universo do espaço. Até Janeiro deste ano, a artista de Macau Bianca Lei fez as honras da casa. Teve em exposição todos os exponentes da sua arte, que brinca com o pintar, o unir, o intercalar, a sobrecarregar com o mais alvo branco os elementos. Unindo arte e espaço numa surpreendente ilusão de óptica e trazendo o público para dentro da sua obra. A instalação a priori passava a impressão de se estar a flutuar no centro da sala. A leveza que gera a dúvida nos faz adentrar ali para o meio, e assim, nós também viramos arte.
Muito para ver, muito por vir, garante Judi Li, responsável pela AFA em Pequim. Num rápido panorama das exibições já realizadas, faz considerações acerca da receptividade do público chinês para com a arte de Macau. Não é fácil assentar num mercado competitivo. Os chineses são conhecidos pelo forte senso nacionalista e são ainda conservadores em relação à compra de obras de artistas internacionais pouco conhecidos. Ainda assim, Judi Li traça a receptividade para com os artistas de Macau em geral – apontando, por exemplo, observações interessantes dos chineses que visitam as exposições, como a sensibilidade em identificar a formação ou influência internacional expressa na arte de muitos.
Os visitantes locais apontam ainda a maior desenvoltura, a liberdade estética do processo e da própria criação dos artistas de Macau, que parecem ser guiados pelas inspirações ou aspirações artísticas sem estarem presos ao compromisso de produzir obras tidas como comerciais.
A preocupação comercial, entretanto, aos poucos vai mudando, acompanhando a velocidade característica das transformações chinesas. Judi Li observa as graduais mudanças, inclusive no perfil dos compradores chineses de arte. É capaz de traçar diferenças entre os diferentes residentes da China. Os de Pequim, por exemplo, “são os mais tradicionais, mas aos poucos iniciam-se na arte de adquirir arte contemporânea estrangeira”. Já os naturais de Xangai “são menos moderados”, enquanto que os de Hong Kong, Taiwan e Macau são vistos por Judi Li como “os mais liberais e assíduos na hora de comprar”.
Presente e actuante, é também em participações nas principais feiras de arte que a AFA conquista o seu espaço, armazena sabedoria, acumula experiências e promove encantamentos pela sensibilidade dos seus artistas. Foi assim durante a passagem memorável de Fortes Pakeong Sequeira na Feira de Arte de Pequim, em 2010. A performance ao vivo fez brotar em quem por ali passasse o deslumbramento do mundo quase onírico dos desenhos concebidos pelo jovem artista.
Outro indicador relevante é o reconhecimento do público chinês para com alguns artistas já de renome em Macau. Entre as exposições de maior êxito realizadas na AFA nestes dois últimos anos, destacam-se as de Carlos Marreiros, Konstantin Bessmertny e José Drummond.
Em termos de indicadores, o mercado de arte na China surpreende mesmo os especialistas. Em Novembro de 2012, por exemplo, a casa de leilões mais antiga do País, a China Guardian, fez uma estreia impressionante em Hong Kong. Atingiu o marco de 455 milhões de dólares de Hong Kong em vendas, mais do que o dobro de sua estimativa máxima. O evento contou com a presença de 20 dos maiores compradores chineses, além de grandes coleccionadores de Hong Kong. A região vizinha à Macau foi o local escolhido para sediar o evento não para alcançar um novo mercado, mas para oferecer um valor mais amigável aos clientes da China, longe das complexas taxas de vendas e inspecção que configura o cenário leiloeiro do Interior do País.
O lote era composto por pinturas modernas tradicionais chinesas. O grande desafio no mercado da arte contemporânea chinesa é justamente conquistar este público tido como mais conservador. A Guardian ocupa o quarto lugar no ranking das maiores casas de leilões do mundo, atrás da Poly Auctions (terceiro), Christie’s (segundo) e da Sotheby’s (líder do sector).
Transposições de movimento e miscigenações
É interessante perceber que os intervalos periódicos entre os três fenómenos de público – Carlos Marreiros, Konstantin Bessmertny e José Drummond – e a proposta dos três artistas permeiam o caminho investigativo da AFA: o de trilhar o diálogo entre as referências culturais através de heranças de processos de grandes movimentações e miscigenações.
A transposição ultrapassa os limites geográficos no exercício de acomodar Portugal, Macau e China, e vice-versa, nas galerias. E aproxima mundos, universos e referências tidos como tão díspares a um denominador comum, o olhar e as motivações humanas. Estas não apresentam fronteiras, nem idiomas; são planas, encontram-se e baseiam-se nas afinidades e nas vontades.
Do encontro das afinidades e vontades criam-se espaços para estimular tudo o que ainda não tem forma, nem cor, mas onde habitam as intenções de criações que devem materializar-se. E para isso há o laboratório mágico, as residências artísticas da AFA. Bem-sucedida em Macau, e prestes a abrir novo endereço em Pequim, as residências artísticas dão continuidade aos diálogos e conexões, seguindo e incluindo outras esferas de abrangência. O próximo passo para a AFA é trazer para perto e para todos a reflexão dos aspectos da arte – cumprindo a missão da galeria de Macau em oferecer a arte para todos.