Um poeta no inferno

Lucas José de Alvarenga Jovem brasileiro governador de Macau (1809-1810)

 

Alvarenga_Puzzle Baia

 

Luís Sá Cunha

Jornalista da área cultural

 

 

Lucas José de Alvarenga não foi o único brasileiro a assumir funções de governador de Macau, no contexto da política de rodízio de funcionários político-administrativos no espaço do império. “Indo eu só para Macau, o primeiro que foi governar ali portugueses tão ricos e poderosos, alguns dos quais eram membros do Senado”, escreveu no seu diário. São bem compreensíveis os seus sentimentos de desamparo ante uma missão tão espinhosa, densa de condições objectivas tão adversas.

Portugal estava na iminência de desaparecer do mapa, esquartejado às mãos do poder napoleónico. A corte estava foragida e longe no Brasil. A Inglaterra aproveitava a sua forte presença político-militar intramuros para ambicionar gordas vantagens. Pretextando a ameaça real de uma conquista de Goa pelas armadas francesas, a Inglaterra, pela mão da poderosa Companhia das Índias, já lá se estabelecera e, sob o mesmo pretexto, acabara de acampar em Macau, quatro dias antes da chegada de Alvarenga.

Por outro lado, o jovem governador vinha no auge do braço de ferro entre Coroa/Governador e Senado pela supremacia do poder real em Macau, romanticamente munido das Providências da Rainha D. Maria I de 1783, que  passando a dar instrumentos de centralização dos poderes aos governadores, ameaçavam fazer derruir a permanente supremacia do Senado nos precedentes dois séculos. E mais, escaqueirar o sistema de poder local/regional, geometrizado no triângulo Senado/ comerciantes  dominantes/ mandarins  provinciais cantoneses.

A toda esta trama acresciam ainda dois poderosos factores: as incontroláveis forças navais das organizações piratas que enxameavam o Delta, e da Boca do Tigre controlavam os labirintos dos canais, e o domínio do carismático Ouvidor Miguel de Arriaga Brum da Silveira (“de cujas ideias era o Senado apenas o catavento”), o verdadeiro vértice do triangular sistema que hauria sustentação das operações ilegais do comércio do ópio.

Terrível cenário o da Macau da primeira década do século XIX para um jovem governador inclinado às letras e cuja chegada era oportuníssima dádiva aos interesses dos seus adversários e detractores. É que Alvarenga chegou a Macau no navio britânico Elphinston depois de ter sido escoltado por tropas britânicas na travessia da Índia até Bombaim, e sendo de imediato procurado pelo  comandante da armada ocupante, Almirante Drury. Isto mesmo foi invocado pelo mandarim de Heongshan para desaconselhar a tomada de posse do novo governador, decisão já tomada antes pelo Senado de Macau por inconveniência de alterações nos agentes da soberania em momento tão delicado.

Assim, a primeira coisa que acolheu Lucas Alvarenga foi o ser impedido de exercer funções e esperar até melhor oportunidade, num cenário onde se denuncia o manobrismo do génio maquiavélico de Miguel de Arriaga. No resto e sequente, foi vê-lo entre intrigas e disputas com o Senado e Ouvidor, num combate desigual, onde o seu desempenho nas operações da famosa derrota de  Kam Pau Sai e das numerosas forças piratas foi desmerecido e clandestinizado pelos agentes do sistema imperante e dos testemunhos politicamente mais correctos. Daí a necessidade que o moveu a escrever, já no Rio de Janeiro e quase 20 anos depois, as obras Memória e Observações à Memória, e outras notas biográficas, em desagravo à injustiça que recaía na sua imagem daqueles tempos.

 

Do Brasil a Macau

Como chega Alvarenga a Governador de Macau e em condições tão adversas?

Ele confessa em sua Memória o quanto questionou o governador da Índia, Conde de Sarzedas, quando este o chamou “à sua Câmara” para lhe comunicar  a decisão de o enviar para Macau, porque “apesar das aparências de talento com que elle me suppunha, eu me julgava sem a experiência necessária para o desempenho destas tão árduas Comissões [sobre o desembarque dos ingleses, e sobre os piratas]”, e também por ir enfrentar o Senado e o Ouvidor “mortais inimigos de todos os governadores”. Argumentava Alvarenga que a decisão do governador da Índia não combinava com a promessa feita sobre o tê-lo na Secretaria de Estado e com o estarem “sempre juntos”. Manteve o governador a decisão e a convicção de ser a melhor escolha, em conversa que, diz, “eu não posso nem devo proferi-la toda”.

Nesta curta e corrente evocação da figura de Lucas José de Alvarenga – longe de ser análise do contexto e factos históricos em que se moveu – parece-nos clara a razão da nomeação: em cenário tão gelatinoso e tão prestável a “deserções”, D. Bernardo José de Lorena pretendia, sobretudo, salvaguardar a fidelidade, e conhecendo o forte carácter do amigo e protegido e a sua inquebrantável  formação moral, tinha na sua nomeação a melhor solução.

Alvarenga conhecera Bernardo José de Lorena em Minas Gerais, depois de regressar dos estudos na Universidade de Coimbra. Lorena era o governador da Capitania, depois de o ter sido já de São. Paulo, e chamou-o para o seu serviço. Facilmente se imagina o agrado com que Bernardo Lorena conheceu e acolheu Alvarenga, depois de uma época em Coimbra onde nutriu o espírito na aturada leitura de todos os autores clássicos e no convívio dos grandes de França e Inglaterra, “os dois olhos do mundo”.

Alvarenga era sem dúvida naquela época o exemplo vivo e fascinante de um espírito culto animado do ideal iluminista e do sonho romântico de deixar marca pessoal na grande história, alma empregada nos exemplos dos mais notáveis heróis da história. A sua conversa, denso jorro de citações e sentenças dos mais notáveis pensadores, de parelhas com o realismo e sensatez dos seus juízos pessoais, encaminhavam-no a brilhante êxito diplomático.

Não é difícil concluir o porquê da atracção de Alvarenga às moradas mais discretas de Bernardo Lorena, irmão da Marquesa de Alorna, em cujo palácio de Lisboa acolhia a tertúlia de “francesistas”, dispersa  pela perseguição de Pina Manique. Assim terá sido desmantelada uma misteriosa “Sociedade da Rosa”, irmandade discreta polarizada nos ideais libertários e fraternalistas de que teria sido também frequentador o poeta Bocage, que igualmente andou por Cantão e Macau. Mas da “rosa” em Macau Lucas José parece ter colhido apenas os espinhos…

 

Cultura, uma obsessão

Alvarenga tinha um espírito inclinado às coisas da cultura e, como o confessou nas suas notas biográficas, tinha a obsessão da leitura e do conhecimento. O seu enciclopedismo era reflexo da atmosfera da sua época, mas era um enciclopedismo onde procurava haurir as traves-mestras de sólida arquitectura moral e de pensamento próprio. Entendia que “o hábil diplomata deve ter (além do carácter) a triplicada vantagem de ser homem de letras, homem do mundo, e homem de Estado”. De todas as enunciadas, ele foi sobretudo um homem de cultura vocacionado às letras, campo onde mais acabou por afirmar as suas potencialidades, em parte frustradas numa carreira política estanhada, e até  claudicante, se cotejada com os ideais grandiosos que o animavam nos inícios do seu currículo de vida.

Nascido em 1768 na Vila de Sabará, Minas Gerais, não tendo de nascimento “coisa de que se vanglorie, nem de que se envergonhe”, conheciam porém os seus pais “as vantagens de uma boa educação”. Depois da escola, entre os 16 e 17 anos, estava apto em Gramática Portuguesa, Latina e Francesa, em Lógica, Matemática, Ética, e ainda, em Retórica, Poética e Geometria, além de dois graus de aulas de Dança. Contemporâneo da abertura à nobreza de mérito, aplica-se disciplinadamente aos estudos por natural inclinação e também por crer que “é a educação e não o nascimento, ou a ilustre genealogia dos homens, que os faz distinguir entre os mais”.

 

O poeta no seu paraíso

O grande Alexandre era das figuras que mais idolatrava, porque “devia mais a Aristóteles seu Mestre do que a Philippe seu pai” e reservara o cofre de Dário, o mais rico e fulgente de gemas, para escrínio do mais precioso tesouro: o seu divino Homero. O jovem Alvarenga sensibiliza-se com a arte da música e evoca Shakespeare para apreciar o homem “que tem música em si mesmo”, ilustrando com os exemplos de D. Pedro I (“o heróico fundador do império do Brasil que não só compôs a música do Hino Nacional, mas até os divinos versos em que com as ideias mais liberais e as mais sublimes inspira aos seus súbditos sentimentos patrióticos e o amor da glória”) e do Senhor D. João IV.

Pela vida dispersa, foi versejando poemas posteriormente reunidos em livro. Com cândida ingenuidade, confessa-nos um momento lírico ao gravar no tronco forte de uma árvore de pagode em frente de um templo uma quadra, a deixar um “gosto europeu” esculpido nas partes da Ásia. Era 1815, ano então de regresso ao Brasil.

Já no Brasil, sua “pátria natural” que amava, é vê-lo mais dedicado às musas dos lavores literários, brilhando nos salões, nas elegantes competições das glosas a dados motes. Em Junho de 1822, principiou e concluiu “logo facilmente huma  bem extensa Peça Intitulada A Revolução”, que nos diz ter sido “mutilada em mais de três partes por motivos imperiosos [ou Imperiais]”. Entra no prelo em 1826, já “sob a forma de novella com o título de Statira e Zoroates”.

E eis aqui a obra que deixou fama a Lucas José de Alvarenga, merecendo-lhe a distinção de pai do romance brasileiro por ter marcado o início do romance-folhetim, um género mais prestável à intervenção política e moralizante, que Alvarenga pretendia para uma sociedade brasileira em busca de identidade e enfrentada à evolução urbano-industrial soprada da Europa – o modelo eleito pela classe controladora para destino do Brasil na história.

Para rematar esta curta evocação de um governador de Macau que foi poeta, deixamos agora à apreciação do leitor um extracto de poema com sabor da época, talvez aquele que Alvarenga elegesse para o recordar, um exercício de glosa a mote, onde transpira o vento triunfal do Brasil nascente, e que um amigo mandou dar à estampa em Paris.

 

Mote: O mundo há-de ver um dia/ neste céu sereno e azul/ prostra-se a Ursa do norte/ ante o Cruzeiro do Sul.

Glosa: Em vário giro rodando/ Sempre o Universo inteiro/ Vai de Janeiro em Janeiro/ Mil novas cenas mostrando./ A velha Europa ditando/ Por força as Leis ao Meio-dia/ Perdeu essa regalia./ E o Brasil rico e fecundo/ Dando também leis ao mundo/ O mundo há-de ver um dia.

Vate é o que vaticina…