A integração a 12.656 quilómetros de casa

“Balato, balato…” ou barato em crioulo, é uma das primeiras palavras que os chineses residentes em Cabo Verde aprendem a falar. Uma palavra útil para o comércio que vieram expandir nas ilhas há mais de 20 anos e que hoje se estende a todo o território. Falam perfeitamente o crioulo e há quem ouça as célebres mornas de Cesária Évora. Deixaram-se conquistar pela tradicional cachupa e alguns renderam-se aos encantos da mulher cabo-verdiana, com quem constituíram família. Muitos já guardam Cabo Verde no coração, mas a maioria mantêm-se fiel a uma das culturas mais antigas e consolidadas do mundo. Este é o retrato dos chineses em Cabo Verde

 

Chineses em Cabo Verde

 

Texto Gisela Coelho | Fotos Pedro Moita, em Cabo Verde

 

Há quem diga que são muitos e que estão espalhados por cada esquina do país mas, na verdade, segundo dados da Embaixada da China em Cabo Verde, são apenas cerca de 3000 os chineses a residir no arquipélago, com maior presença nas ilhas de Santiago, Sal e São Vicente. São poucos, se comparados com a comunidade chinesa em Angola, que ronda os 200 mil habitantes, mas em número mais que suficiente para que, hoje em dia, não haja um município cabo-verdiano sem a presença característica de uma loja chinesa e das suas gentes. Vieram sobretudo das províncias de Hebei (norte) e Zhejian (leste). Inclusive, a população de Zhejian é conhecida mundialmente pela fama de “bons comerciantes” e há mesmo quem diga que nasceram para fazer negócios.

A presença nas ilhas crioulas remonta há pouco mais de duas décadas, altura em que aportaram no arquipélago os primeiros comerciantes chineses. Hoje convivem lado a lado com uma mescla multicultural de povos que habitam Cabo Verde, entre eles portugueses e negros da Costa Africana, sobretudo da Guiné Bissau e do Senegal.

Comparativamente a estes emigrantes, os chineses são pouco expressivos, mas nem por isso deixaram, ou deixam, de ter um papel de destaque no desenvolvimento social e económico de Cabo Verde. Há quem diga que os chineses vieram trazer “mais e melhor” qualidade de vida ao dia-a-dia da população mais carenciada do país, com o acesso a bens de comércio geral a preços mais competitivos.

Ouve-se com frequência e em tom de brincadeira que as crioulas passaram a ficar mais bonitas e na moda com a entrada do vestuário made in China no país. De facto, estes comerciantes trouxeram consigo uma gama de produtos variados, que de outra forma seriam de difícil acesso à maioria da população. Na maioria dos lares cabo-verdianos sente-se a marca inconfundível dos produtos chineses.

Com uma presença sóbria, minimamente integrada no país, mas com um vínculo notório à sua terra natal, os chineses em Cabo Verde estão a 12.656 quilómetros de casa, ou seja, a 7864 milhas de distância entre Xangai e Cabo Verde. Apesar da distância, a maioria faz questão de se manter fiel às tradições, usos e costumes, não fosse a China uma das culturas mais antigas e consolidadas do mundo. Mesmo assim, vão coabitando de forma pacífica e estável em Cabo Verde.

 

 

Chobo, o chinês com Cabo Verde no coração

Chobo, como é carinhosamente conhecido He Yu Yan entre chineses e cabo-verdianos, guarda um sentimento de pertença à China, mesmo depois de estar há mais de 20 anos radicado em Cabo Verde. Do arquipélago da Morabeza guarda um dos diamantes mais preciosos que a vida pode dar a alguém, duas filhas que carregam o sangue crioulo nas veias. No entanto, afirma-se, acima de tudo, chinês, fiel às origens, mas já com Cabo Verde no coração.

A sua aventura em terras crioulas remonta a 1992, quando aterrou, pela primeira vez na ilha do Sal e desde logo se encantou pela voz da diva dos pés descalços, Cesária Évora, que então se fazia ouvir no aeroporto internacional Amílcar Cabral. Mesmo sem entender nada do que ela cantava, deixou-se levar facilmente pelo sentimento da sua voz e mal sonhava que, pouco tempo depois, iria ele próprio compreender a dimensão da palavra “sodade” por ela cantada.

Hoje Chobo fala perfeitamente o crioulo e é em crioulo que propõe contar um pouco da sua história em Cabo Verde, que facilmente se pode se confundir com a história de outros chineses que escolheram as ilhas como destino de emigração.

Na ilha do Sal chegou a ter dois restaurantes, mas um ano após a sua chegada quis tentar a sorte na capital, Praia, na ilha de Santiago. Para aqui importou, pela primeira vez, um contentor de 20 pés directamente da China e depressa recuperou o investimento. “Na altura vendia no Sucupira [o maior mercado de Cabo Verde] e lembro-me que consegui vender todos os produtos rapidamente”, conta Chobo.

Com a demanda do mercado, este comerciante deixou o Sucupira e abriu a sua própria loja na Praia, para mais tarde se mudar para a Assomada, no município de Santa Catarina, também na ilha de Santiago. É com orgulho que afirma ter sido o primeiro chinês a chegar à Assomada e, hoje, é um dos membros mais activos dos cerca de 115 chineses que residem nesta localidade, distribuídos por 80 estabelecimentos comerciais, só neste município.

Chobo chegou a ser proprietário do Restaurante Macau e de uma escola de karaté, ambas na Assomada, mas agora gere uma loja grande de comércio geral. “Longe vai o tempo em que os chineses faziam bons negócios em Cabo Verde”, afirma. A crise internacional que também afecta o arquipélago, aliada à subida das taxas e impostos no país, tem ditado o encerramento de algumas lojas. Chobo afirma que há compatriotas a regressar à China ou a partir rumo a outros destinos.

Não será o caso dele, garante. “Quero ficar em Cabo Verde para sempre”, diz com convicção de quem já criou raízes e não esconde que gosta muito de “cozinhar cachupa”. A sua integração, assim como a de outros chineses é bem visível, não só ao nível da língua como dos hábitos e relacionamento com a população local.

É que este empresário é também presidente da Associação de Comerciantes Chineses da Assomada, uma entidade criada há três anos e que tem contribuído para a integração dos chineses neste município. “Servimos de ponte entre a comunidade e as autoridades locais. Ajudamos a resolver problemas ao nível da saúde, licenças de lojas e outros documentos”, explica.

 

He Yu Yang

 

 

Gus Ping fugiu à crise de Portugal

Ao contrário de Chobo que pertence à primeira vaga de emigrantes chineses para Cabo Verde, Gus Ping ainda está em fase de reconhecimento do território. Oriundo da província de Zhejiang, aterrou nas ilhas há menos de um ano, fugido da crise que se vive em Portugal, mais concretamente no Algarve, onde estava radicado há 15 anos.

O facto de nesta ex-colónia se falar o português foi “decisivo” para colocar o arquipélago na sua nova rota de emigração. Consigo trouxe a família, pai, mãe, mulher e filhos, sendo que o seu mais recente descendente nasceu já na capital de Cabo Verde. No entanto, o futuro parece também ser incerto por terras crioulas.

“O negócio em Cabo Verde também está fraco. Há pouco poder de compra. A minha loja tem produtos de maior qualidade do que as outras lojas, porque importo de Itália, França e Espanha. São produtos um pouco mais caros do que os produtos chineses e, talvez por isso, não vendem tão bem”, desabafa Gus Ping.

Este comerciante é proprietário da maior loja chinesa na cidade da Praia, com 350 metros quadrados, e é um dos poucos que abre as portas ao domingo, empregando duas funcionárias. Apesar da sua estada recente, Gus Ping e a família têm tentado a integração no país, a começar pela gastronomia. “Vamos fazer compras ao mercado. O peixe de Cabo Verde é muito bom e gostamos de comer também búzios, percebes e lagosta, assim como a papaia.” À gastronomia local juntam-se ou passeios em família na praia ou no único centro comercial da capital, construído por uma empresa chinesa.

No entanto, este empresário, não esconde a necessidade de se manter ligado às origens. Além das viagens periódicas à China, os chats chineses no telemóvel e os canais chineses disponíveis por cabo somente na ilha de Santiago aproximam cada vez mais esta comunidade da sua terra natal. Tudo à distância de um clique.

 

Gus Ping

 

 

Jin Ding Fu, o empresário

Jin Ding Fu, actual director executivo da Boom T V, chegou a Cabo Verde em 1998 a convite de um amigo, que na altura já tinha negócios em Cabo Verde, e logo se interessou por vir investir no país. Natural de Zhejiang, este empresário é formado em Direito, mas assume-se um autodidacta com conhecimentos no ramo industrial, e não esconde que gosta de comprar livros técnicos para aperfeiçoar os seus conhecimentos na área.

Ao contrário da maioria dos chineses no país, que optaram pelo ramo comercial, Jin Ding Fu quis investir na indústria. Juntamente com dois sócios, também chineses, começou por abrir uma fábrica de sacos de plásticos para minimercados, para depois criar a Euroalumínios, uma empresa muito conhecida na capital. Em Outubro de 2011, Jing Ding Fu e os sócios decidiram alargar o ramo de actividade e compraram a actual Boom TV, antiga Xinnuoli.

A Boom TV é um caso de sucesso com 33 canais, dois deles chineses e cerca de 3672 clientes só na ilha de Santiago. Número que será expandido com o alargamento do negócio à ilha de São Vicente, onde vão abrir até ao fim de 2013 uma filial.

Quando recorda a sua chegada ao país, Jing Ding Fu lembra que na altura “não havia muitos chineses” e conta que não veio apenas “para ganhar dinheiro”, mas sim para “expandir a experiência profissional e investir na área que gosto de trabalhar”.

A integração não foi fácil, sobretudo ao nível da língua. “No início foi difícil aprender a língua. Frequentei aulas de português no Centro Cultural Português e aprendi o crioulo aos poucos, a falar com os cabo-verdianos. Convivia e estava mais interessado em falar com cabo-verdianos do que com chineses”, conta.

Enquanto muitos chineses residentes no país trouxeram consigo as respectivas famílias, Jing ing Fu veio sozinho. Na China ficaram mulher, filhos e os pais, sempre com muita saudade no coração. “Normalmente vou à China duas vezes por ano. Tenho lá os meus pais, a minha mulher e os meus filhos. Não penso trazê-los para cá. Os meus pais não poderiam passar tanto tempo num avião. Os meus filhos também estudam, por isso é melhor ficarem na China.”

 

Jim Fu

 

 

Unidos pela cooperação

A República Popular da China e Cabo Verde guardam marcas de uma longa e amistosa era de cooperação, que tem evoluído nas suas mais diversas formas e áreas ao longo dos anos. Desde o início da história da cooperação entre os dois países que a China tem promovido a construção de grandes obras no país, como a Assembleia Nacional, o Palácio do Governo e a emblemática Barragem do Poilão, que pela sua estética visual é considerada por muitos como um marco histórico da presença chinesa em Cabo Verde.

A República Popular é considerada uma das maiores e mais promissoras potências no mundo, o que tem fomentado a aposta numa cooperação bilateral nas relações China-Cabo Verde. “Nas últimas 30 décadas tem-se registado uma ajuda unilateral da China para Cabo Verde. Mas, para isso ser sustentável e para a cooperação se prolongar no tempo tem que haver benefícios recíprocos. Já temos alguma cooperação bilateral em áreas como a governação electrónica, em que Cabo Verde recorreu ao empréstimo de bancos chineses e isso permitiu acumular experiência numa área nova.  Também na área da habitação social, onde a China disponibilizou uma linha de crédito com taxas de juros baixas para financiar 1400 moradias no âmbito do projecto Casa para Todos”, destaca Su Jian, embaixador da China em Cabo Verde.

Actualmente, Cabo Verde tem recebido comitivas de empresários chineses que, segundo este diplomata, têm forte interesse em investir em áreas como a pesca, telecomunicações, energias renováveis, construção civil, construção de portos e outras infra-estruturas. Trata-se de uma aposta do investimento privado chinês no arquipélago, que segundo Su Jian irá certamente contribuir para o desenvolvimento do país e para a criação de emprego, indo de encontro à diversificação da cooperação prevista no Fórum de Cooperação Sino-Africano.

Nesse sentido, Su Jian destaca que o seu país tem procurado “trazer investimento chinês para Cabo Verde, sobretudo, agora, que o arquipélago enfrenta algumas dificuldades para pedir mais empréstimos devido à crise, e é preciso procurar outras formas de financiamento, como o empréstimo directo privado”.

Além dos cerca de 3000 chineses residentes no país, Cabo Verde conta também com a presença de mais de duas centenas de técnicos e trabalhadores especializados que estão a executar grandes obras, no âmbito das ajudas de cooperação entre os dois países.

Esta mão-de-obra temporária pertence a cerca de quatro grandes empresas de construção civil chinesas, que estão a trabalhar em obras como a recuperação do Palácio da Presidência, do novo Estádio Nacional e ainda nas obras de ampliação do Hospital Agostinho Neto, na cidade da Praia. Mas esses são só alguns exemplos. O embaixador realça ainda que a China tem apoiado Cabo Verde em áreas tão díspares como saúde, educação e cultura, em quantias que não pode precisar, mas que garante serem “avultadas”. E avança que o futuro das relações China-Cabo Verde se perspectiva “brilhante”.

O embaixador mostra-se também satisfeito com a integração dos chineses em Cabo Verde e realça que, durante essas duas décadas de imigração, a comunidade chinesa “tem sido bem tratada pelos cabo-verdianos”. Su Jian aponta ainda que a presença diplomática da Embaixada da China em Cabo Verde representa um papel “muito importante nas relações e aproximação entre dois povos” e a sua “missão é responder aos apelos da comunidade chinesa em Cabo Verde, mas também sensibilizar a comunidade para respeitar as leis, hábitos e tradições culturais do país e aprenderem, cada vez com mais força, as línguas locais”.

Por isso, a embaixada tem colaborado com algumas organizações não-governamentais na abertura de aulas de língua portuguesa e crioulo para facilitar a integração e convívio entre as duas comunidades. Outra das missões dessa representação passa também pela promoção de actividades culturais com espectáculos de artistas chineses e exposições de arte para que as duas comunidades aproveitem “esta plataforma de troca de experiências”.

 

 

No coração dos cabo-verdianos

Criada em Outubro de 2011 por um grupo de antigos alunos cabo-verdianos que estudaram na China, a Associação Amizade Cabo Verde-China (AMICACHI) é hoje uma referência nas relações entre os dois países. José Correia, formado em Economia, é o actual presidente da associação, que integrou a primeira leva de dois alunos que foram estudar para a China em 1996. Desde então apaixonou-se pelo país, pelas gentes e pela cultura, afirmando que hoje tem duas pátrias.

O apreço pelo contributo desse país na sua formação profissional e pessoal traduziu-se quando regressou em Janeiro de 2011 na vontade de “criar uma plataforma da sociedade civil para a promoção das relações Cabo Verde-China, numa óptica de complementar as relações governamentais já existentes”, explica.

E assim nasceu a AMICACHI, que tem trabalhado na promoção da língua e cultura chinesa em Cabo Verde, no fomento das relações económicas entre os dois países e na integração dos chineses que residem no arquipélago, mas também dos alunos cabo-verdianos que prosseguem estudos na China ao abrigo de programas de cooperação entre os dois países.

“No ano ano passado, fizemos o primeiro curso de Introdução à Língua e Culturas Chinesa em Cabo Verde, em parceria com a Universidade de Cabo Verde e o Ministério do Ensino Superior, direccionado para que os cabo-verdianos que iam prosseguir estudos na China tivessem um primeiro contacto com esse país ainda em Cabo Verde”, refere o presidente da AMICACHI. Um curso que já está na sua segunda edição, para os jovens que estão agora de partida.

No sentindo inverso, a associação está também empenhada em contribuir para a integração da comunidade asiática no país. No Verão deste ano, por exemplo, arrancou o curso de Introdução a Língua e Cultura Cabo-verdianas destinado a chineses residentes em Cabo Verde e que conta com mais de 20 inscritos.

Segundo José Correia, o objectivo é permitir o acesso a conhecimentos básicos da língua, cultura e história cabo-verdianas, de forma a facilitar a integração dos chineses na sociedade local e a promoção de conhecimento sobre o arquipélago. “A adesão a estes cursos tem sido muito boa”, realça.

Entre as actividades promovidas pela associação destacam-se as culturais, sobretudo, espectáculos de dança artística e música tradicional da Chin, não apenas na capital, mas também em outras ilhas. No entanto, este ano as actividades adquiriram novos contornos e a cidade da Praia acolheu a primeira Semana Cultural da China, realizada ao nível de África. “Esta semana foi muito importante porque a cultura é um instrumento de comunicação que não precisa, digamos assim, que falemos a mesma língua. A cultura por si já é uma língua. Durante esta semana quisemos que os cabo-verdianos ficassem a conhecer mais a China, mas também que a comunidade chinesa interagisse mais com a nossa sociedade”, salienta o presidente.

O próprio Embaixador da China em Cabo Verde, Su Jian, reconhece o trabalho da associação e realça o “dinamismo” da mesma, afirmando que tem contribuído “para a difusão do mandarim e tem ajudado vários comerciantes chineses a resolverem alguns problemas”. Por outro lado, refere ainda o importante papel desempenhado nos intercâmbios bilaterais e espera que a mesma continue a fomentar as relações de amizade entre China-Cabo Verde.

Segundo dados da Embaixada da China em Cabo Verde, já foram concedidas bolsas a cerca de 1000 estudantes locais. Só neste ano lectivo, mais 300 cabo-verdianos rumam a várias universidades chinesas para prosseguirem os estudos.