O Leal Senado de Macau (1784-1874)

A cidade num edifício

 

Leal Senado

 

Margarida Saraiva e Tiago Quadros

 

O Leal Senado foi fundado no ano de 1582-83 por uma assembleia de moradores, convocada por iniciativa de D. Melchior Carneiro, e que escolheu para sua administração a forma senatorial baseada nas franquias municipais outorgadas pelo Rei a algumas cidades em Portugal. No ano seguinte foi adoptado o nome de “Senado da Câmara”, sendo composto por dois juízes ordinários, três vereadores e um procurador da cidade, todos escolhidos anualmente por eleição popular. Em Abril de 1586, o Vice-Rei da Índia – D. Duarte de Meneses –, autorizou o Conselho Municipal de Macau a eleger os seus oficiais por um triénio, mantendo a composição original e sendo o procurador da cidade – representante da mesma junto das autoridades chinesas.

O senado possuía amplos poderes políticos, judiciais e administrativos. Os juízes ordinários decidiam as causas civis. Quando se tratasse de negócios extraordinários reunia-se o Concelho Geral Composto pelo Governador do Bispado, pelos Superiores das Ordens Religiosas e cidadãos principais[1]. Em 1595 foram-lhe concedidos os mesmos privilégios que à cidade de Évora. O imperador Wan Li (1573-1620) aprovou também o regime municipal, outorgando ao procurador o grau de mandarim.

Quando em 1623, D. Francisco Mascarenhas foi nomeado o primeiro Capitão Geral de Macau, este e os seus sucessores exerceriam apenas poderes militares sobre as fortalezas e a tropa. Quem continuou a governar Macau foi o Senado até Janeiro de 1834, data na qual foi publicada a “Nova Reforma Administrativa Colonial”. Até então nunca tinha havido presidente, sendo as sessões e os Conselhos Gerais presididos por um vereador, em cada mês, por rotatividade[2].

Quanto ao primitivo edifício não existem provas materiais relativas à sua localização. Tudo leva a crer que se situasse no centro da cidade, exactamente no local onde hoje se ergue o edifício dos Assuntos Cívicos e Municipais. A mais antiga representação do edifício é uma gravura chinesa incluída na Ou Mun Kei Leok, uma monografia sobre Macau, publicada em 1751, da autoria de dois magistrados chineses, Tcheong Ulam e Ian-Kuong-Iam, que se deslocavam frequentemente a Macau no exercício das suas funções. A gravura em questão representa um pavilhão completamente diferente do edifício que existe actualmente. A imagem mostra uma estrutura simples, cuja entrada se fazia por uma pequena escada conduzindo a um pórtico e finalmente ao edifício. Toda a área pertencente ao Senado estava vedada por um muro e o acesso fazia-se por um portão.

Segundo testemunha Luís Gonzaga Gomes, “o risco actual do edifício data de 1783, pois como se verifica um documento que se encontra nos arquivos do Senado, em 6 de Dezembro desse ano, o Juíz-Sindicante, Joaquim José Machado da Cunha, oficiara, remetendo a planta da reconstrução dos Paços do Concelho e da Cadeia, que lhe estava anexa, e comunicando ter ajustado com o senhorio a compra das casas e do terreno necessários para esse fim.” Desta passagem se depreende que para alem da recuperação do edifício, ele foi igualmente ampliado. As obras foram aprovadas em 25 de Abril de 1784 por D. Frederico Guilherme de Souza: “Aprovo o acordo que o Senado da Câmara tomou conforme o parecer do Desembargador Juiz Sindicante Joaquim José Machado da Cunha para fazer cazas de cadeya, e se reedificar a casa do Despacho, e mais oficinas do Senado na forma do risco que me apresentou o dito Desembargador sindicante” (Goa, 25 de Abril de 1784).

O projecto da reedificação e ampliação do Edifício do Leal Senado é da autoria do Padre Frei Patrício de São José. Desta época, conhecem-se ainda alguns relatos do edifício, entre os quais se destacam os de George Staunton (1792-1794) e de Andrew Ljungstedt (1836). George Staunton refere que o edifício era construído “em granito e com dois andares” e que tinha “várias colunas do mesmo material, com caracteres chineses gravados, representando uma solene cedência do local por parte do imperador da China”. O testemunho de Andrew Ljungstedt (1836) é ligeiramente mais detalhado: “o edifício público onde se reúne o governo tem a designação de casa da Câmara. Trata-se de um edifício de dois andares, com base de granito, sendo o resto de tijolo e cal, tal como as colunas (…). O entablamento assenta em colunas e a cornija é ornamentada com vasos verdes de louça vidrada. Este espaçoso edifício foi construído em 1784 (…). Possui uma capela consagrada a Nossa Senhora da Conceição, onde os membros do Senado assistem à missa antes das sessões de trabalho”. Para além destes relatos, há ainda uma gravura de George Chinnery que data de cerca de 1830. A gravura do artista britânico reveste-se de particular valor histórico e permite-nos verificar que em 1830 o edifício tinha aproximadamente a mesma volumetria que o edifício tal como o conhecemos hoje.

O tufão de 1874 teve consequências devastadoras em muitos dos edifícios da cidade, entre os quais o edifico dos Paços do Concelho. O edifício do Leal Senado “soffreu estragos nos telhados, nas paredes, portas e janellas; porém não foram elles tão grandes como era d’esperar do seu estado de ruína, o que prova não ter o tufão exercido sobre elle a mesma acção destruidora que exerceu sobre outros edifícios”. Contudo, o estado em que ficou o edifício impôs a sua recuperação. A 13 de Setembro de 1875, o secretário da Junta da Fazenda de Macau e Timor enviava ao Governador o projecto e orçamento de reconstrução da fachada principal do edifício do Leal Senado. A memória descritiva do projecto refere:

“O projecto que acompanha este orçamento mostra na maior parte os detalhes dos trabalhos que é preciso executar para a construção da fachada principal do Edifício do Leal Senado. Toda a fachada do antigo edifício é construída de novo, não só por carecer confiança em relação à sua estabilidade e segurança, como por não se adaptar ao estilo da arquitectura adoptado no novo projecto”. Assim se assumia claramente a adopção de um novo estilo arquitectónico. De acordo com o autor da memória descritiva era também necessário “(…) demolir e reconstruir de novo três muros de divisão interior transversais”. A fachada “que tem 43 metros de comprimento e 14 de altura é dividida em três corpos de igual comprimento, sendo do mehio coroado por um frontão e com uma pequena saliência sobre os lateraes (…).”

Em finais de Fevereiro de 1887, verificou-se a derrocada da cobertura do edifício do Leal Senado. A planta datada de 1887, parte integrante do projecto de reconstrução da cobertura do edifício, permite-nos visualizar, com rigor e pela primeira vez, a divisão interna do espaço. No rés-do-chão situava-se: o vestíbulo principal, a secretaria das Obras Públicas, a prisão n. 8, o pátio da cadeia, uma arrecadação, o pátio, a cozinha, o quarto dos serventes e o gabinete do Director das Obras Públicas. No primeiro piso estavam localizados a Administração do Concelho, uma sala de entrada, a sala das sessões, uma Capela, a secretaria da Câmara, dependências do Senado, o Museu Municipal, a prisão de Europeus e o pátio da cadeia. No interior do edifício do Leal Senado existiam dois pátios: um pátio principal que pertencia ao corpo central do edifício e um pequeno pátio que servia os presos da cadeia, que, como já referimos, tinha as suas instalações no mesmo edifício. É muito provável que o edifício tenha crescido por justaposição paralela de construções, seguindo a tradição chinesa, como refere o Arquitecto Francisco Vizeu Pinheiro no seu artigo “Using a comparative graphic method in the analysis of the evolution of the Macao Senate”[3], dada a espessura das paredes paralelas que dividem o corpo da frente, do corpo central e do tardoz.

Torna-se evidente que, ao longo da sua história, o edifício do Leal Senado foi sendo utilizado para fins diversos. De acordo com um dos primeiros documentos citados neste texto, em 1783/84, o edifício albergava a Casa dos Despachos, a Cadeia, Dependências e Oficinas do Senado. Em 1887, e como já referimos, o edifício tinha o primeiro andar destinado à Secretaria das Obras Públicas, ao Gabinete do Director das Obras Públicas e à Prisão n. 8, entre outros serviços, e o segundo andar ocupado com a Administração do Concelho, a Secretaria da Câmara, o Museu Municipal e a Prisão de Europeus, entre outros serviços. Relatos mais tardios, de cerca de 1898, referem que o edifício tinha “um salão nobre que occupa quasi todo a parte da frente do edifício onde o Leal Senado faz semanalmente as suas sessões” e “uma capella dedicada a Santa Catharina de Senna, patrona de Macau, e que outr’ora servia para os presos ouvirem missa nos dias de guarda, por isso que a cadeia civil fica contigua e comunicava interiormente com o edifício, de que estamos tratando. No andar inferior, fica à direita o posto medico-estatistico, e à esquerda, o posto municipal, a que está anexo o depósito do material de desinfecção”. Durante muitos anos o edifício compartilhou o seu espaço com outros Serviços da Administração e conheceu múltiplas utilizações. Para além das instituições já mencionadas, também ali funcionou uma estação dos correios, até 1931, data da inauguração do actual edifício dos Correios. O Tribunal Judicial também ocupou as instalações do Leal Senado no decurso da década de 1940. Ainda hoje há nas paredes do edifício vestígios desta multifuncionalidade. A razão pela qual o Leal Senado apresenta nas suas paredes “diversas pedras com valor histórico” descobertas em diferentes locais da cidade fica a dever-se ao facto de ali ter estado instalado o Museu Municipal, como pode ser comprovado na planta de 1887.

Actualmente, o edifício do Leal Senado é totalmente ocupado pelos serviços do Instituto dos Assuntos Cívicos e Municipais. A sua fachada, que se mantém praticamente inalterada desde a última transformação na década de 40, reconhece-se lisa, sem reentrâncias nem saliências substanciais. O edifício mantém a sua composição em dois pisos, pelo menos desde 1830. No interior do edifício destacam-se a bela escadaria que dá acesso ao jardim interior, o salão nobre e uma biblioteca, cujo projectista pretendeu evocar a Casa da Livraria joanina da Universidade de Coimbra. De todas as construções civis da cidade de Macau, é no antigo edifício do Leal Senado que mais se reconhece a vida da cidade. A cidade num edifício – o Leal Senado de Macau.

 

 

FONTES DOCUMENTAIS

“Relatório dos Estragos que soffreram as edificações públicas de Macau, causados pelo tufão que teve lugar no mez de Setembro de 1874, acompanhado da cifra quanto possível aproximada, da quantia precisa aproximada para por tudo no seu anterior estado”, por Francisco Jerónymo Luna, Coronel de Engenharia do Exército de Portugal, in Boletim da Província de Macau e Timor de 30 de Janeiro de 1875.

 

Memória Descritiva do projecto de reconstrução da fachada do edifício do Leal Senado, 30 de Outubro de 1875.

 

Memória Justificativa e Descritiva da Reparação do Edifício do Leal Senado, 22 de Agosto de 1887, assinada pelo Director das Obras Públicas, José de Sousa Horta e Costa.

 

Relatório do estado dos edifícios públicos de 1886 e 1887”, por José de Sousa Horta e Costa, Director das Obras Públicas, in Boletim da Província de Macau e Timor de 3 de Novembro de 1887.

 

Orçamento e Licença de Obras de Reparação do edifício do Leal Senado, 1887.

 

Diário do Governo n. 202, 1ª Série de 30 de Agosto de 1937.

 

 

BIBLIOGRAFIA

AAVV (Julho 2005). “Macau Património Mundial in Revista Cultura – n. 15, Macau, pp. 6-59.

BASTOS, António (20 de Maio de 1898). “Jornal Único”, editado em celebração do IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia.

BELTRÃO COELHO, Rogério (1995). Leal Senado: esboço de um edifício, Macau: Leal Senado.

BURNAY, Diogo (1994). Modern Architecture in Macau. Architecture, modernism and colonialism in Macau, Londres: The Bartlett, University College London: Dissertação de Mestrado em Arquitectura apresentada à University College London.

GONZAGA GOMES, Luís (Dezembro 1950). “Macau Património Mundial in Mosaico (órgão do “Círculo Cultural de Macau”), Vol. I.

LJUNGSTEDT, Sir Andrew (1836). “An Historical Sketch of the Portuguese Settlements in China and of the Roman Catholic Church and Mission in China”, Boston.

MATTOSO, José (2010). Património de Origem Portuguesa no Mundo – Ásia, Oceânia, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

SAUNTON, Sir George (1797). “An Authentic Account of an Embassy from the King of Great Britain to the Emperor of China”, Londres.

TEIXEIRA, Manuel (1980). As Vozes das Pedras, Macau: Imprensa Nacional.

VIZEU PINHEIRO, Francisco (Julho 2005). “Using a comparative graphic method in the analysis of the evolution of the Macao Senate” in Journal of Asian Architecture and Building Engineering – Vol. 4, n. 1.

WONG SHIU KWAN (Julho 2005). “Macau Architecture – An Integrate of Chinese and Portuguese influencesin Separata do Boletim do Instituto Luís de Camões – Vol. IV, n. 2 e 3.



[1] TEIXEIRA, Manuel (1980). A Voz das Pedras de Macau, Macau: Imprensa Nacional, p. 38.

[2] Ibidem.

[3] VIZEU PINHEIRO, Francisco (Julho 2005). “Using a comparative graphic method in the analysis of the evolution of the Macao Senate” in Journal of Asian Architecture and Building Engineering – vol. 4, n. 1.