“Ela é pequenina mas enche uma sala”

Traçar o perfil de Maria Amélia António não se afigura tarefa simples nem mesmo quando confiada a amigos. Mas Filomena McGuire, Frederico Rato e Maria Antónia Espadinha aceitaram o desafio

 

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Texto Diana do Mar

 

Começar é sempre o mais difícil. Vêm os adjectivos, sobrepondo-se uns aos outros, com significados idênticos, engrossando a narrativa. Os risos são uma constante na hora de contar histórias com Maria Amélia António como protagonista.

Quando se conheceram em Macau há 30 anos, perceberam ter “muito em comum”. Andaram em “caminhos muito próximos” em Lisboa “sobretudo ao nível do sentimento e da luta antifascista”. Mas, por vezes, e não obstante a pequenez da cidade, passa-se um ou dois meses sem um encontro. Porém, sempre que uma ocasião, mesmo que mais formal, o proporciona, fazem a “festa”. Aí, “cumprimos os nossos rituais e conspiramos, porque gostamos muito de conspirar”, diz Frederico Rato.

Amélia António “foi e continua a ser uma mulher de causas, dotada de sentido de humor – às vezes um pouco ácido, quando quer deixar algum recado – mas é uma mulher com sentimento, que ama e barafusta e também se irrita com situações menos desejáveis”, descreve o advogado, ‘puxando’ de um episódio.

Estávamos em 2010. O então primeiro-ministro português José Sócrates encontrava-se de visita a Macau e previa-se uma passagem pela Casa de Portugal, onde faria um discurso de circunstância. Quando o esperavam, o carro em que seguia avançou para a área junto ao consulado. “Quando ela percebeu que não abrandava, e que ficavam goradas expectativas de se exporem problemas que deviam ser alvo da atenção dele relativamente à comunidade portuguesa, irritou-se, saltou para a via, e disse em alto e bom som: ‘É aqui que deve parar’”.

“Foi um acto impressionante, não só pela audácia, mas também pelo atrevimento físico. Claro que o senhor primeiro-ministro e a comitiva perceberam logo o ar de protesto e de irritação legítima da nossa presidente e, depois da parte institucional do consulado, ele dirigiu-se a pé às instalações da Casa de Portugal, cumprimentando e perguntando, com um ar muito desportivo e risonho: ‘Pensavam que vinha a Macau e não vinha à Casa de Portugal?’ Ela ficou um pouco mais possessa com o ar displicente como ele quis passar por cima do episódio, mas disse o que tinha para dizer e pronto. Foi um episódio demonstrativo da sua personalidade em várias facetas: a cómica, a séria, do sentimento pelas situações, foi marcante! Ela exigiu que o senhor primeiro-ministro tivesse tempo para ouvi-la e ele teve de arranjar mesmo.”

Uma peripécia “engraçadíssima”, nas palavras de Maria Antónia Espadinha, que também se lembra bem quando, dois anos mais tarde, Amélia António “enfrentou” Paulo Portas, à época ministro dos Negócios Estrangeiros e hoje vice-primeiro-ministro.

 

“Medalha” de mérito altruísta

A professora universitária Maria Antónia Espadinha “cruza-se” com Amélia António numa época em que se procurava alguém para “pegar” na Casa. Hoje, avalia, “foi uma boa aposta”, sobretudo “por causa do coração do tamanho do mundo” que lhe devia valer não a Medalha de Serviços Comunitários, com a qual foi agraciada, mas a de “mérito altruísta”. “Ela ajuda toda a gente. Quando pensamos, por exemplo, no que ela e um grupo de pessoas fizeram por Timor…”

Essa causa também marcou a médica Filomena McGuire. Participou numa “segunda parte” da missão, iniciada com uma visita à jovem nação, onde eram berrantes as dificuldades. “Eles primeiro arranjaram a escolinha e depois conseguiu-se organizar outra viagem que os miúdos, incluindo os meus e os dela, nunca mais vão esquecer. Nunca vi tantos órfãos juntos… Houve muita entreajuda, mas ela foi o grande motor”, sublinha a médica pediatra. Frederico Rato também participou activamente ao lado de Amélia António como seu vice-presidente: “Ela como maestrina e nós como executantes”. Apesar do trabalho a várias mãos, “o que avulta foi a dedicação que ela, em concreto, deu a essa causa e o bem e o conforto que proporcionou a muitas pessoas”, destaca o advogado.

“Ela quando acha que tem de se fazer uma coisa, vai para a frente. Fala, pede. Não pede para ela, mas para outros. Vai procurar soluções e as pessoas não fazem ideia que é ela que as arranja, porque nem sempre se conseguem apoios”, enfatiza Maria Antónia Espadinha.

Contudo, pelo meio, também sofrerá “desilusões”. “Houve um grupo de timorenses que veio estudar presuntivamente para cá, logo a seguir à independência. A ideia era formar quadros e veio um grupo de dez jovens. Só que aquilo não estava bem organizado e ela acabou por deitar-lhes a mão, dando-lhes casa e um lugar para estudar e eles estavam a usar isso mal… Foram investimentos grandes, feitos de coração, e depois eles não corresponderam. Ela fez muito por essas pessoas e é desse tipo de coisas que não se fala. Eu sei porque estava por dentro”, partilha.

Para ajudar as vítimas do sismo de Sichuan, a Casa de Portugal desdobrou-se em acções para angariar fundos. Filomena McGuire recorda a exposição de xilogravuras feitas por alunos de um atelier, em que as vendas reverteram a favor da causa, em mais uma iniciativa da sua presidente. “Foi uma forma que ela conseguiu encontrar para ajudar”, realça.

“Ela abdica de muito. Quer do ponto de vista pessoal, profissional ou económico, acho que ela só perdeu. Penso que poucos valorizam ou se apercebem disso. Às vezes são óptimos a fazerem críticas destrutivas e ela até isso põe para trás das costas. É uma presença importante, haverá outras, mas com altruísmo tão grande não sei… não haverá muita gente com esta dedicação e disponibilidade”, diz Filomena McGuire, falando de “uma mulher com M grande”, “extremamente ponderada e sensata” e principalmente “muito humana”. “Segui um caso de adopção em que achei muita piada à estratégia dela: ela criou no juiz a necessidade de dizer que a criança estava tão enraizada que seria um crime tirá-la dali, avançando ao contrário. Ela cria primeiro e pede os apoios depois, é preciso coragem”.

“Se há crítica que lhe posso fazer é o facto de ela desvalorizar as suas queixas de saúde. Ela deixa-se para último lugar”, diagnostica Filomena McGuire, que estima os sábios conselhos de uma mulher com “grande capacidade inventiva” que “arregaça as mangas e sabe fazer de tudo. “Ela é pequenina mas enche uma sala”.

“Além de tudo, é uma mulher empenhada e dedicada, que se forjou numa luta pela vida e pela liberdade. Foi uma activa antifascista e é uma mulher de armas”, sintetiza Frederico Rato, sem esquecer o papel de Amélia António no quadro da advocacia em Macau: “Ela foi pioneira, antes de mais, na criação de oferta de serviços jurídicos e de advocacia alternativos na primeira metade da década de 1980”.

Depois, há a própria Associação dos Advogados. “É ela que assina o Código Deontológico, publicado em Boletim Oficial em 1992, ainda hoje em vigor. Também ocupou desde logo na organização da classe cargos de direcção e é nessa qualidade que também, embora colectivamente, participa na criação da infra-estrutura legal da associação”.

 

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A “comédia” de “Amor e Dedinhos de Pé”

Foi um “pagode”, conta Frederico Rato, quando se lembra do “mítico” dia das filmagens, no jardim Lou Lim Ioc, de Amor e Dedinhos de Pé, realizado por Luís Filipe Rocha, que viria a “contratar” os amigos para serem figurantes. “Levantávamo-nos às cinco da manhã para ficarmos maquilhados e prontos para entrar em cena. Éramos cinco ou seis casais, todos muito bem vestidos com trajes da época e muito bem caracterizados. Aparecemos durante dez segundos no filme depois de dez horas de grande divertimento”, relata, entre risos, sublinhando que sem Amélia António “não teria sido tão engraçado”. “Foi ela que dinamizou aquela equipa, que entrou de alma e de coração nas filmagens e na preparação e, de facto, esse episódio é inesquecível na vida daquele grupo”. Além disso, “serve para demonstrar que uma mulher de causas também pode ter causas pessoais e cómicas de participação na vida social de Macau”.