Texto Luciana Leitão | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
Jovens dos 12 aos 21 anos perfilam-se, ordeiramente, à espera de instruções. Ao som dos comandos em português “Continência! Direita! Volver!”, apesar de o chinês ser a língua veicular, movem-se em consonância, em marcha. Assim se dá início a uma das actividades semanais do grupo 12 da Associação dos Escuteiros de Macau.
No átrio do Colégio Yuet Wah, a MACAU assiste à reunião semanal do grupo 12, que junta exploradores (secção dos 12 aos 16 anos) e pioneiros (secção dos 16 aos 21 anos). Os mais jovens estão concentrados, sobretudo, em volta de um mini-fogão eléctrico para aprender a arte da culinária. “Hoje em dia, os pais não deixam sequer que os filhos entrem na cozinha. E se eles acamparem, precisam de saber cozinhar”, esclarece a vice-comissária da Associação dos Escuteiros, Francisca Vong Kin Chen, enquanto os jovens, entre gargalhadas e sucessivos falhanços, tentam apurar a técnica à volta da frigideira.
Ao mesmo tempo, os pioneiros preparam o mastro para hastear a bandeira. Cheong, 18 anos, interrompe a actividade para conversar com a MACAU. “Entrei nos escuteiros quando tinha oito anos. A minha mãe achou que era uma boa actividade, quis que eu aprendesse a liderar”, diz. Agora, que já se encontra a treinar para ser um líder, Cheong afirma que ao longo dos anos “aprendeu muito sobre a amizade e ganhou muitos amigos”.
A sua actividade favorita é acampar, e gostava que se organizasse mais vezes. Aliás, gosta tanta que este ano conseguiu, pela primeira vez, participar num Jamboree (acampamento mundial) no Japão. “Conheci culturas diferentes e fiz amigos da Malásia, Índia e Taiwan.” E, no âmbito de um programa especial de paz do país anfitrião, foi ainda nomeado para representar Macau em Hiroshima.
Quanto à actividade que menos gosta, é a marcha. “Não é interessante, é cansativa e não é fácil”, afirma. Cheong é neste momento treinador dos Lobitos. “Temos um sistema de divisão de trabalho. Há quem esteja encarregue dos treinos, há o tesoureiro, toda a gente tem uma função diferente”, esclarece Christine Kuan, professora no Colégio Yuet Wah, que é também membro da Associação dos Escuteiros.
Já o explorador Lai, de 12 anos, afirma que juntou-se ao grupo porque é “divertido”, além de poder aprender coisas úteis. Particularmente interessado nos acampamentos, afirma que gosta bastante dos jogos, das cantorias e, até, de cozinhar. No futuro, pretende ser um líder.
No fim das actividades do dia, exploradores e pioneiros alinham-se numa formatura sob o comando “Escuteiros formar!”, seguindo de um “À vontade!” para assistir ao hastear da bandeira, no mastro preparado pelos jovens.
De 200 a 5000
A Associação dos Escuteiros de Macau nasceu em 1983 e contava apenas com 200 membros, mas lentamente acabou por angariar mais elementos, contando hoje em dia com 5000. “No início, preocupámo-nos em treinar líderes, para que depois estes pudessem ser distribuídos pelas nossas três secções”, explica a vice-comissária, Francisca Vong Kin Chen.
Ao longo destes 31 anos de actividade, porém, Francisca diz que vê um número cada vez menor de jovens a aderir ao movimento. E afirma que o motivo por detrás de tal descida é uma mudança de mentalidades. “Os pais mudaram. Quando ingressei, queria servir a comunidade e os meus pais incentivavam-me dizendo ‘muito bem, serve mais’”, recorda. Há 10 anos este conceito de “servir bem e melhor ainda era visível”, mas hoje os pais preocupam-se mais com o excesso de trabalho das crianças. “Acham que as crianças não deviam trabalhar tanto.”
A associação conta com três secções que separa os jovens em função das idades: os lobitos (dos sete aos 12), os exploradores (dos 12 aos 16) e os pioneiros (dos 16 aos 21). Francisca tem assistido a um número menor de membros sobretudo entre os exploradores e os pioneiros, já que os adolescentes vêem-se ocupados com os trabalhos das diferentes associações juvenis. Por outro lado, o número de membros tem vindo a aumentar mais na secção dos lobitos, já que os pais se entusiasmam com as actividades ao ar livre.
Os escuteiros estão repartidos por 36 grupos, alguns dos quais formaram-se a partir de associações, outros foram criados a partir das escolas e ainda há os “grupos abertos”, que estão sob a égide directa da associação. E todos, independentemente do sexo, religião ou etnia, são aceites. “Algumas associações são de índole religiosa, como a YMCA. Mas se alguns escuteiros não professarem nenhuma religião, podem juntar-se ao grupo aberto”, esclarece.
Inquirida sobre o interesse que tem a religião dos membros da Associação dos Escuteiros, Francisca afirma que “até gostava de ter essa informação, mas as respostas no território não são lineares”, referindo-se ao sincretismo que é tão típico de Macau. “Alguém nos diz que é cristão, mas depois perguntamos pelo certificado de baptismo e não há”, acrescenta.
Todos os elementos falam chinês, mas não quer dizer que seja vedado a falantes de outras línguas. “Já tivemos um grupo que se expressava em português, mas acabou por fechar. E se a língua veicular de uma escola for o inglês, também podemos ter grupos que só comunicam em inglês.”
A diferença na língua
Robert Stephenson Smith Baden-Powell criou o Movimento Escutista em Inglaterra em 1908, depois dos seus feitos militares na Guerra do Transvaal em 1889. Em 1920, após reunir escuteiros de várias nacionalidades num acampamento mundial intitulado Jamboree, o britânico foi aclamado como chefe mundial.
Os princípios e os métodos da Associação dos Escuteiros de Macau inspiram-se nos estabelecidos por Baden-Powell no século XX. “Queremos treinar os jovens a tornar-se bons cidadãos, despertar-lhes o gosto pela natureza e pelas actividades ao ar livre. Queremos educá-los”, refere.
Entre as principais actividades que cada um dos 36 grupos organiza, contam-se várias ao ar livre – escalar montanhas, caminhadas, actividades de orientação e acampamentos -, que podem ter lugar em Macau ou fora do território. Na RAEM, estas actividades têm lugar junto ao Farol da Guia ou em Coloane, mas também podem ocorrer em alguns monumentos da cidade.
Cada escuteiro precisa de aprender determinados ensinamentos. “[Dependendo da secção a que pertençam] tem de saber acender uma fogueira, cozinhar ao ar livre, montar uma tenda”, refere Francisca, acrescentando: “Se quiserem participar no Jamboree [acampamento mundial], têm de fazer todo este tipo de coisas, incluindo lavar a louça”. Mas as actividades que têm de cumprir são proporcionais às idades. “Os lobitos, por exemplo, não marcham como os outros. Viram-se só para a direita e para a esquerda.” Quando à formatura e à marcha, afirma que são componentes importantes para assegurar “disciplina”, algo que a Associação dos Escuteiros pretende incutir nos seus jovens.
Dada a falta de espaço do território, Francisca declara que têm vindo a pedir ao governo um espaço para organizar as actividades. Neste momento, dado o seu número de membros, não conseguem organizar, por exemplo, um acampamento conjunto no território. “No máximo, conseguimos reunir 40 pessoas para actividades exteriores.”
É de pequenino…
Vestidos a rigor, com os seus uniformes, alguns Lobitos do Grupo de Escuteiros Lusófonos (GELMac) juntam-se na sede para a reunião semanal. A confusão é grande dada a idade dos elementos, e os dirigentes têm, por vezes, de elevar a voz para garantir alguma paz. “Os lobitos são 26 miúdos, divididos em três bandos”, explica uma das chefes da secção, Cláudia Brandão.
Repartidos por três pisos, cada um dos bandos prepara as actividades do dia. A MACAU começa por observar o segundo piso, onde se encontra o bando preto, que está a jogar uma versão muito própria da cabra-cega. O objectivo é encontrar “um queijo” vendados e mediante instruções dos colegas.
No andar de baixo, encontram-se os elementos do bando cinzento, sentados no chão numa roda, a discutir o seu grito. Entusiasmados, berram, em uníssono: “Nós somos o bando cinzento e gostamos de acampar. Adoramos os nossos chefes e adoramos o bando.”
Descendo as escadas, chega-se ao piso térreo, onde está o bando branco, que prepara uma peça de teatro. “Atenção, temos meia hora. O que falta fazer de actividades?”, pergunta Cláudia.
Entretanto, é hora de almoço e os três bandos reúnem-se no rés-do-chão. Um dos três chefes ergue o braço, aguardando pelo silêncio das crianças. “Alerta! Alerta! Alerta!”, diz, com voz forte, procurando captar a atenção. Antes da refeição há que proceder a uma pequena oração.
Pedro, o guia do bando preto, tem nove anos e diz que entrou nos escuteiros em Portugal. Agora em Macau, enquanto guia, tem por função “tomar conta” dos restantes meninos. Entusiasmado com a responsabilidade, é a primeira vez que tem tal responsabilidade. “Dantes era secretário e tinha de marcar tudo e fazer resumos. Mas ser guia é mais giro.”
Milena é a subguia do bando e gosta das funções que desempenha. “Alinho as pessoas para não estarem tortas na formatura, e quando o guia pergunta uma coisa, o subguia dá resposta”, esclarece. Gosta de todas as actividades, só perde o interesse se tiver de repeti-las. Há já dois anos neste grupo, Milena afirma que continua porque faz “muitos amigos”.
As diferenças
Tal como a Associação dos Escuteiros, o GELMac divide os seus membros por secções, apesar de as idades variarem ligeiramente: os lobitos (dos seis aos 10), os exploradores (dos 10 aos 14) e os pioneiros (dos 14 aos 18). Quanto aos caminheiros (dos 18 aos 22), secção que se encontra em Portugal, não existe em Macau. “Os nossos jovens terminam o 12.º ano e vão estudar para fora”, justifica o chefe do GELMac, Nelson António.
Aliás, um dos maiores obstáculos ao crescimento do GELMac é a falta de líderes para preparar os jovens. “Somos 11 adultos e estamos a formar mais gente. Precisamos sempre de adultos disponíveis para levar o projecto adiante”, afirma. Mas é difícil, dado que exige grande disponibilidade. “Temos adultos suficientes nas três secções para trabalhar como queremos e, por isso, houve também um acréscimo de escuteiros.”
Com mais adultos e, portanto, mais jovens, ingressar no GELMac torna-se também mais apelativo, já que há um “aumento qualitativo das actividades”, com mais acampamentos e deslocações ao exterior. Neste momento, contam-se 63 crianças e jovens.
Ao longo dos anos, o número de membros tem sofrido grandes variações. “Quando começamos em 1997 éramos mais de 150, depois em 1999 houve aquela debandada de portugueses e passamos a ser à volta de 100. Nos anos seguintes houve um decréscimo para 80-85 e posteriormente voltamos a baixar mais um pouco para 60-70”, recorda. Nos dois últimos anos, tem havido um aumento do número de membros, reflexo também da chegada de mais portugueses na RAEM.
A maioria dos jovens e crianças do GELMac estuda na Escola Portuguesa de Macau, mas nem sempre foi assim. “Já tivemos chineses, macaenses e oriundos de países lusófonos”, diz. A língua veicular é o português, mas quando alguma criança não percebe tão bem, tentam adaptar-se às necessidades.
Sob a égide do Corpo Nacional de Escutas, o GELMac é católico, mas não significa que não aceitem crianças que professem outras religiões. “A nossa identidade é católica, vamos passar estes valores para dirigentes e crianças. No entanto, há uma abertura grande para outras crianças e jovens que não sejam católicos”, aponta Nelson António.
Recorda-se, inclusivamente, de há alguns anos, por ocasião da investidura – que é um juramento feito pelos escuteiros, dentro da igreja, e que recorre a um texto de índole religioso – de alguns pais se terem insurgido contra. “Acharam que não seria bom fazer este compromisso quando não eram católicas.” Decidiu-se então que “o importante era ter uma componente espiritual e que este compromisso fosse feito em consonância com a crença de cada um”. Claro que faz parte das actividades idas regulares à missa ou professar textos religiosos, mas o GELMac aceita que, em casos pontuais, se salte tais rituais. “Em Portugal, há uma maior rigidez”, afirma.
A divisão em patrulhas
As secções dividem-se em patrulhas/grupos e cada uma tem o seu guia, havendo ainda um conjunto de dirigentes a coordenar esse grupo. Cada um dos jovens assume uma função. “Procuramos que os jovens ganhem o máximo de autonomia possível, gerindo-se a eles próprios com um dirigente que está presente para ajudar, e não tanto para interferir nas actividades”, esclarece.
Entre as principais actividades contam-se aquelas ao ar livre, mas dadas as especificidades do território acabam por ter de ser criativos. “Temos de ginasticar muito para oferecer coisas diferentes, mas tentamos com alguma regularidade levá-los para fora de Macau, para Hong Kong, por exemplo”, diz Nelson António, acrescentando: “Agora estamos a fazer contactos com escuteiros de Taiwan e da Tailândia e em princípio este ano teremos actividades de intercâmbio.” Já organizaram, em anos transactos, actividades na Tailândia e na Malásia.
Quanto a colaborações entre o GELMac e a Associação dos Escuteiros de Macau, afirma que todos os anos tentam “estreitar os laços”, organizando algumas actividades. “Neste momento, estamos em contacto com dois grupos [da Associação dos Escuteiros] para levar a cabo uma actividade conjunta, eventualmente em parceria com Hong Kong.”
Macau, o berço do movimento
O movimento escutista deu os primeiros em Macau em 1911. Os seus impulsionadores regressaram a Portugal e fundaram, em 1913, a Associação dos Escuteiros de Portugal. Mas o Corpo Nacional de Escutas – Escutismo Católico Português foi criado 10 anos depois, em 1923.
Entretanto, em Macau várias escolas foram contribuindo para o reaparecer esporádico do movimento, mas só em 1983 nasceu a Associação dos Escuteiros de Macau, reconhecida pela Organização Mundial de Escutismo como a representante do território. “Em 1997, alguns elementos, parte do Corpo Nacional de Escutas, que então residiam em Macau, ajudaram um grupo a formar-se para o crisma. E pensou-se: Por que não formar também aqui em Macau um grupo do Corpo Nacional de Escutas?”, conta o chefe do GELMac, Nelson António.
Lançou-se então o desafio aos alunos da Escola Portuguesa, conseguindo juntar-se 160 jovens numa actividade ao ar livre. Foi então que se decidiu avançar com o GELMac. “Fomos filiados no Corpo Nacional Escutas em 1999 e, desde então, temos estado sempre activos no território.”
Acabaram por formar um grupo diferente do da Associação dos Escuteiros de Macau, dada as diferenças nalgumas questões cruciais. “Primeiro, a língua. Eles falam chinês e nós português”, afirma, acrescentando: “Outra questão é o método pedagógico – para eles, é mais rígido e militar, enquanto a nossa dinâmica é totalmente diferente.”
Porém, não desvaloriza a importância da disciplina. “Também usamos um uniforme como forma de disciplina, e fazemos a formatura. Perfilamos uns ao lado dos outros, obedecemos a dadas ordens, mas é uma forma de disciplina mais suave”, garante.