O sentir de aldeia no Bairro de S. Lázaro

O Bairro de São Lázaro foi noutros tempos a área de residência dos chineses católicos de Macau. Devido ao seu desordenado crescimento, no final do século XIX o Governo elaborou para aí um plano de urbanização e foram então construídas casas e ruas arranjadas. Recentemente renovado e com algumas vias de calçada à portuguesa, o bairro está destinado a ser uma zona artística, mantendo ainda as suas características de aldeia

P1240757

 

Texto e Fotos José Simões Morais

 

Conhecido em chinês por Móng Tâk T’óng Kôi, o Bairro de S. Lázaro, no centro da península de Macau, ocupa um pequeno vale pouco arejado, envolvido a Norte pela Colina de S. Miguel, a Sul e a Oeste pelo Monte da Fortaleza e à distância, mas fazendo de barreira a Leste, o Monte da Guia. Começou por ser um local onde se concentravam de forma isolada os leprosos, vindo daí o nome S. Lázaro, o santo protector dos lázaros ou leprosos. Para eles, a Santa Casa da Misericórdia construiu um hospício ao lado da Igreja de Nossa Senhora da Esperança e por detrás, a horta onde os leprosos cultivavam vegetais e criavam animais. Esta ermida pertencia à Santa Casa, que também tinha a seu cargo a leprosaria.

S. Lázaro começou por pertencer à freguesia da Sé e desde o início do século XIX foi-se constituindo como povoação. Os novos habitantes, a viver ao redor da Igreja de N. Sra. da Esperança, conhecida pelos chineses por Seng Mou Tong, desordenadamente construíram choupanas, criando assim um sem número de becos e travessas.

Adolpho Ferreira Loureiro, engenheiro português que visitou a zona em Março de 1884, não poupou críticas ao que presenciou: “Este bairro imundíssimo, cortado de pequenas ruas e de becos em escadas, com os canos de esgoto a descoberto e escorrendo líquidos infectos e repugnantes”. A zona conheceu a mortandade da peste e, por isso, teve de ser totalmente saneado, surgindo no início do século XX uma nova urbanização.

Adormecido bairro ostracizado pelo nome que ostentava, refúgio de famílias chinesas cristãs remediadas, os seus terrenos pertenciam maioritariamente à Misericórdia, que tomava conta do asilo para senhoras em fim de vida. Pouco tempo após a transferência de soberania, em 1999, o Bairro de S. Lázaro foi escolhido para ser a zona artística da RAEM, ganhando nova vida e importância. Pavimentaram-se as ruas com calçada à portuguesa, colocando-se candeeiros de rua ao estilo europeu e aos poucos, voltou a esperança de o ter como lugar nobre da cidade.

 

P1240952

 

Dúvidas sobre a igreja

Quando D. Melchior Carneiro chegou a Macau, em Junho de 1568, o bairro de S. Lázaro era pouco auspicioso por causa dos leprosos abandonados. Logo no ano seguinte, o jesuíta fundou a Confraria da Misericórdia, de que foi o primeiro provedor, sendo criado o Hospital dos Pobres e o hospício para leprosos. Existe a dúvida na localização da gafaria, já que poderia estar num compartimento anexo ao Hospital dos Pobres (S. Rafael) ou, situada junto à ermida. Também a existência ou não de uma igreja nesse local por altura da chegada deste jesuíta tem várias versões. Há quem afirme haver já uma ermida de madeira e de taipa, uma das primeiras erguidas na península entre 1558 e 1560, ou em 1563, segundo outras informações, onde ao redor se encontravam muitos leprosos.

Por isso, D. Melchior Carneiro decidiu a construção de um hospício para os lázaros no tardoz da igreja. No entanto, outros historiadores dizem que o padre jesuíta resolveu aí fundar a Igreja de N. Sra. da Esperança, pronta em 1570, para servir de apoio à leprosaria. O padre Manuel Teixeira, após inúmeras vezes repetir muitas destas informações, lendo atentamente os documentos onde se tinha baseado, em 1969 refaz toda a história e diz-nos que D. Melchior Carneiro, após um ano da sua chegada a Macau, fundou a Confraria da Misericórdia e um hospital para cristãos e pagãos, o Hospital dos Pobres, onde provavelmente haveria um anexo para os leprosos.

Já a versão de ter sido esta igreja a primeira Sé Catedral, após a criação da Diocese de Macau pelo Papa Gregório XIII na Bula Super Specula de 10 de Fevereiro de 1576, foi durante anos muito discutida, já que este lugar não se encontrava em nenhuma das zonas inicialmente habitadas pelos portugueses e, sendo ocupado pelos leprosos, não fazia grande sentido ser ali a Sé. Se o foi, a Igreja de N. Sra. da Esperança serviu de catedral até provavelmente ao ano de 1623, quando num outro lugar foi construída a Sé.

A península de Macau teve um grande incremento nos anos 80 do século XVI, mas os portugueses estavam impedidos de construir muralhas e fortalezas. Após as várias tentativas dos holandeses para conquistar a próspera cidade aos portugueses, os chineses, em 1622, permitiram a construção de uma muralha. Erguida a muralha entre 1623 e 1626, o local ficou fora da cidade cristã e os leprosos, mais isolados, apareciam frequentemente à entrada da Porta do Campo, que se encontrava no limite Sul de S. Lázaro.

Estando as celebrações sobrelotadas de fiéis nas igrejas das três paróquias, então existentes intramuros, foi a Igreja de N. Sra. da Esperança em 1633 elevada a paroquial. O adro e o cruzeiro de granito datam de 1637 e são o que resta da antiga igreja, também conhecida por S. Lázaro. Reparada em 1726, a igreja ficou registada por Chinnery num desenho de 1832.

Em 1726 viviam em S. Lázaro 115 leprosos, que em 1735, devido à grave crise financeira da Santa Casa, tiveram de ser sustentados pelo negociante M. Vicente Rosa. O enorme aumento populacional da cidade trouxe para a área de S. Lázaro novos habitantes e como a igreja servia os leprosos, em 1818 dez famílias chinesas erigiram, nas proximidades desta, a Capela de S. José, para assistirem à eucaristia.

Devido aos cristãos chineses levarem os mortos e pessoas gravemente doentes para a Capela de S. José, o padre de S. Lázaro queixou-se ao Bispo que, em 26 de Maio de 1847, oficiou o Provedor da Santa Casa. Assim se conseguiu um novo terreno onde se construiu uma escola e um necrotério, dependente da Capela de S. José. Dois anos depois foi aberto o Cemitério de S. Lázaro onde 220 cristãos chineses estiveram sepultados até 1910, quando foram transladados para o de S. Miguel Arcanjo, inaugurado em 1854, no outro lado da Estrada do Cemitério.

Em 1868, a Santa Casa passou a Igreja de N. Sra. da Esperança para a Diocese de Macau, voltando os cristãos chineses a celebrar aí a eucaristia, em lugar da Capela de S. José. O Governador Tomás Rosa mandou demolir a Capela em 1885 e como a igreja estava arruinada, foi edificada uma nova, concluída no ano seguinte. Até 1896, os leprosos tinham na nova igreja um compartimento separado por grades para assistirem às cerimónias religiosas, altura que fechou definitivamente o Hospício de S. Lázaro, transferido anos antes para outro local.

O Asilo de S. José, fundado em 1857 para os pobres chineses, encontrava-se no início instalado na Rua do Asilo mas, devido a um tufão, ficou em ruínas e um novo edifício, no adro da igreja, foi inaugurado em 1895.

 

P1240927

 

Povoamento de S. Lázaro

O sueco Andrew Ljungstedt escreveu sobre a povoação: “Passando as portas de S. Lázaro, temos à esquerda umas humildes choupanas de mistura com algumas casas de melhor aparência, colocadas à beira da rua que conduz para a Igreja de N. Sra. da Esperança. As primeiras habitações ali construídas foram ocupadas pelos novos cristãos, que um frade agostiniano espanhol conseguiu reunir em 1809.” O Padre José Seguí requerera, em 10 de Setembro de 1808, ao Senado um terreno baldio fora da cidade para habitação dos cristãos. Assim se começou a formar a povoação de S. Lázaro.

“Actualmente vivem ali promiscuamente cristãos velhos e novos.” A 25 de Outubro de 1818 o mandarim da Casa Branca enviou uma Chapa “ao Procurador da cidade de Macau, ordenando-lhe, (…), que mandasse recolher para aquém dos muros da cidade todos esses cristãos moradores na povoação de S. Lázaro, cujo número de fogos constava ter crescido a noventa e oito”, como refere Marques Pereira.

Adolpho Ferreira Loureiro escreveu: “É neste bairro que se aglomera toda a população china cristã, que não quer abandonar aquele local, pagando relativamente muito cara a renda dos miseráveis cubículos em que se aloja, e onde continua os antigos hábitos, costumes e práticas chinesas”.

O semanário Echo Macaense, de 21 de Fevereiro de 1897, refere: “Até 1871 as freguesias da Sé, S. Lourenço e Santo António eram as únicas onde estavam estabelecidas as residências de portugueses. Em 1878, estenderam-se elas já para S. Lázaro e em 1896, disseminaram-se pelos bairros chineses.”

Em redor da igreja, a população crescera e progredira até no sentido industrial, com pequenas fábricas de fio de seda ou mesmo tecelagem, a sair de dentro da cidade cristã e a virem instalarem-se aqui com os seus trabalhadores. Tornou-se num lugar imundo e sem nenhuma organização, em condições sanitárias tão más que, por ocasião da grande epidemia de peste bubónica em 1894, foi a zona mais castigada de Macau. Como todos os anos eram centenas as vítimas da peste, o Governador Eduardo Galhardo, no Boletim Oficial de 30 de Junho de 1900, mandava demolir e sanear o Bairro de S. Lázaro.

 

P1240775

 

Novo ritmo

Na primeira experiência em Macau de um planeamento de bairro, o então director das Obras Públicas, Abreu Nunes, traçou para o local uma nova urbanização. Após o acordo de expropriação de todas as propriedades, foi o projecto de saneamento levado a cabo, já no período do Governador Horta e Costa. Como as obras foram feitas sem autorização metropolitana, para conciliar com o ministro de Lisboa deu-se à rua principal o seu nome, que ficou sendo a Rua Conselheiro Ferreira de Almeida. De todas as antigas vias públicas da zona, a Rua Nova de S. Lázaro foi a única que continuou a existir.

O terreno anteriormente ocupado pela Capela de S. José, que segundo J. M. Braga era em frente à igreja, foi comprado à Santa Casa por proeminentes chineses que fundaram a Associação de Educação das Crianças Chinesas de Macau. Em 22 de Julho de 1916 foi aí iniciada a construção do imóvel para a Escola Primária Luso-Chinesa Kong Kau Hok Hao. Apesar de no edifício com o número 7 da Calçada da Igreja de S. Lázaro constar a data de 1918, este, por falta de dinheiro, só foi inaugurado a 27 de Maio de 1923. Esta associação paroquial contou com a ajuda principalmente de Joel José Choi (Anok) para a instalação da Escola Kong Kau.

Em 1942, devido à II Grande Guerra, a associação faliu e a escola fechou, ficando o edifício encerrado. Em 1978 o imóvel começou a ser reparado e no ano seguinte, foi aí fundado o Centro Paroquial de S. Lázaro, com um centro polivalente. Em 1992 foram efectuadas grandes obras no edifício, passando o professor e artista calígrafo Choi Chun Heng a estar à frente da Associação. Este descendente da família Choi formou em 2011 uma nova associação, a Tai Fong Tong, que transformou o imóvel num local de actividades artísticas e culturais, com exposições de quadros e mobílias da época distribuídas pelos três andares. Projectam-se novas obras para dotar o edifício de infra-estruturas viradas para os turistas, que cada vez mais afluem ao bairro.

 

P1240742

 

De cara nova

O terreno por detrás da igreja, onde está o Colégio Diocesano de S. José, foi inicialmente a Escola Primária Feminina Diocesana Mong Tak (Escola da Esperança) que, em 1933, teve o apoio do casal Fung Chok Man para ser construída. Registada no Departamento de Educação da Província de Guangdong, no ano seguinte foi aí criado o infantário e, em 1935, a Escola Secundária Feminina de Macau. Após uma série de reformas, a Escola Mong Tak passou a ser designada por Colégio Diocesano de S. José em 1979, funcionando aulas do ensino primário ao secundário. O recreio ocupa a antiga área da horta da leprosaria. Atrás desta escola, e com entrada pela Estrada do Cemitério, onde existiu a abegoaria, os edifícios são agora oficinas municipais, tendo numa tabuleta escrito “Comissão Administrativa – Agosto 1949”.

Já com a porta principal no número três da Rua de Sanches Miranda e o portão do jardim virado para as escadas da Calçada da Igreja de S. Lázaro com o número dez, encontra-se uma mansão de estilo neoclássica. Mandada construir em 1917 pelo negociante chinês Chan Kam Chun, ou Chan Chi, cujo nome cristão era António Chan, levou dois anos a terminar. Era ele dono também do terreno do Albergue, que o ofereceu à Misericórdia. Nunca habitou a casa e, em 1946, a sua única filha, Chan Cam ou Rosa Chan, recebeu-a como herança, aí vivendo desde 1958 até à sua morte, em 1979. Nos anos 1980 o Governo de Macau comprou o edifício para albergar a Comissão Contra a Corrupção e o Conselho do Ambiente de Macau. É onde hoje se encontra instalada a Fantasia 10 – Incubadora das Indústrias Criativas, inaugurada a 19 de Setembro de 2008.

Situado no número oito da Calçada da Igreja de S. Lázaro, entre o actual edifício do Fundo da Segurança Social e o Fantasia 10, está o Espaço de Arte do Albergue SCM. Com uma área de 1300 metros quadrados, já no ano 1899 se encontrava em construção o edifício conhecido por Po Tsai Vok (Casa das Avós). Começou por ter cinco pequenas casas, passando mais tarde a dois edifícios, com quartos para duas pessoas, onde chegaram a habitar 100 senhoras. No pátio central existem dois imponentes canforeiros e um poço. No lado esquerdo, de frente para quem entra, houve, em 1950, um necrotério onde se realizavam funerais. Depois passou a ser a cozinha comunitária para as senhoras do Albergue. Actualmente, além da Mercearia Portuguesa, aí estão instalados um restaurante de gastronomia portuguesa, um ateliê de arquitectos e uma sala de exposições.

Os edifícios da Calçada da Igreja de S. Lázaro foram, em Junho de 1984, classificados como Património Cultural da Cidade e por tal, não podem ser demolidos. Nem mesmo o incêndio num dos imóveis da rua conseguiu libertar o terreno, pois as suas paredes continuam há dezenas de anos entaipadas, sem possibilidade de aí ser construído um novo imóvel.

Em 1956, a Igreja de N. Sra. da Esperança foi restaurada, ficando com uma nova fachada. No edifício lateral à direita da igreja, onde estava o cartório paroquial, foi acrescentado mais um andar para servir de residência aos missionários. No início de 1967 começou a remodelação da igreja sob a direcção do construtor Vittorio Acconci. Onde anteriormente estavam a sacristia e o compartimento para os leprosos, em cada um dos lados do altar-mor foi acrescentada uma ala, ficando a igreja com a forma de um T. Em 17 de Dezembro de 1967, foi benzida e inaugurada, com a capela-mor modificada e com um novo altar – que foi remodelado novamente em 2012, para a instalação de um enorme órgão de tubos.

Numa tentativa de criar um ambiente artístico, ao fim-de-semana a Rua de S. Roque é fechada ao trânsito e montam-se mesas com exposição do artesanato. A rua serve por vezes para desfiles de moda devido à presença de alguns ateliês. Diariamente muitos são os fotógrafos que usam como cenários para os seus catálogos de casamento os edifícios do princípio do século XX do bairro, que ultimamente servem também para muitas cenas de filmes. É frequente haver grupos de música a tocar na rua. Todos os anos, o arraial de S. João é aqui realizado.

Bairro calmo, com uma certa dinâmica cultural, tem ainda um estar de aldeia, tão apreciado por quem vive em S. Lázaro.

 

P1240940