Calçada portuguesa | Memórias de um mestre calceteiro

Não se dava bem na escola e o pai mandou-o ir aprender um ofício. Inspirado num vizinho calceteiro, Fernando Simões inicia-se na arte de calcetar aos 14 anos. Aos 27, o acaso trouxe-lhe a Macau, onde ainda é hoje o único calceteiro português

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Texto Vanessa Amaro | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Quando os mestres calceteiros iam almoçar, Fernando Simões começava a assentar pedras às escondidas. Aos 14 anos, começou a trabalhar lado a lado com os grandes nomes da arte da calçada portuguesa, mas o seu trabalho limitava-se a ir buscar água e areia. Volvidos três anos, começou a encaixar as pedras brancas do mosaico, enquanto os seus mestres faziam os motivos decorativos. Com a expansão de hotéis no sul de Portugal, rumou ao Algarve para a sua primeira grande obra de calçada. E lá conheceu o mestre Canoa, que o fez cruzar o mundo para calcetar Macau.

Fernando chegou a Macau em 1996, na segunda leva de 12 calceteiros contratados para trabalhar no Palácio da Praia Grande e em Santa Sancha. Vinha para ganhar “um balúrdio de dinheiro” e ensinar os chineses a manusear as pedras da calçada. Era para ser só uma ou outra obra, mas havia muito chão para adornar e Fernando foi ficando. Esteve no NAPE, no ZAPE, na Barra, no Centro Cultural, na Torre de Macau. Viu todos os colegas portugueses partirem e, em 2003, era já o único calceteiro de Portugal no activo em Macau.

Treinou trabalhadores chineses e recrutou-os para a requalificação das ruas do Bairro de São Lázaro. “Quando fui trabalhar na calçada do tempo de A-Má estava com 20 chineses. No início tinha um tradutor comigo, mas passadas uma semanas já não era preciso. Arte não precisa de palavras”, conta. Sem falar quase nada de chinês, foi criando laços com os colegas de ofício e reuniu uma espécie de equipa especializada na calçada.

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Para um metro quadrado de calçada é preciso pelo menos uma hora de dedicação minuciosa. Por isso, trabalhou de sol a sol e madrugadas adentro para cumprir prazos. E transformou-se num cartão postal da calçada. “Os turistas e residentes ficavam ali horas a ver-nos trabalhar. Juntavam-se multidões! Pediam para tirar fotos, gostavam de ver um português a fazer este tipo de trabalho artesanal lado a lado com os chineses. Até levavam a pedra de recordação!”

Os moldes de madeira vinham já definidos pelos arquitectos da obra. Ainda assim, Fernando viu sempre maneira de dar o seu toque pessoal e deixar a sua marca. “Um senhor disse-me que os portugueses tinham chegado a Macau pela primeira vez à zona do templo de A-Má, por isso fiz lá um motivo com essa representação. Mas os chineses também me pediram para fazer um desenho específico ali, para atrair boa sorte e fiz. A partir de então, os pescadores todos os dias davam-me peixe e fruta!”

Em 2004, já sem obra à vista em Macau, rumou a Espanha e em 2012 regressou com formação de escultura. Hoje, aos 45 anos, já não fica debaixo do sol a fazer a calçada. “Há muitos chineses, homens e mulheres, que fazem a obra.” Está mais dedicado à cerâmica e aos painéis de mosaico para decoração interior. Mas gostava de voltar a pegar no batente? “Claro que sim! Já ouvi dizer que uma empresa chinesa vai fazer uma grande obra de calçada em África e também há planos para a Ilha da Montanha. Se me quiserem, vou imediatamente. As pedras são a minha vida.”

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