Livros | Viagem por Macau reeditada e melhorada

Cecília Jorge e R. Beltrão Coelho lançaram-se há cerca de 30 anos na aventura da descoberta e redescoberta, colecção e estudo de textos, imagens e biografias de viajantes estrangeiros que visitaram Macau, reunindo um corpus documental de vulto que indiscutivelmente integra o património literário de Macau.

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Texto Tereza Sena*

*Centro de Estudos das Culturas Sino-Ocidentais, Instituto Politécnico de Macau

 

É um projecto de vida que têm divulgado na imprensa; nesta Revista entre 1992 e 2004; em álbuns e exposições fotográficas que produziram, e na obra Viagem por Macau, agora com nova edição, em quatro volumes, corrigida e ampliada, uma parceria da editora Livros do Oriente com o Instituto Cultural.

Acrescenta esta edição 36 títulos à anterior, em dois volumes, publicada em 1997 e 1999 com o título Viagem por Macau: Comentários, descrições e relatos de autores estrangeiros (séculos XVII a XIX), que teve circulação algo restrita. Passa a abranger também parte do século XX, incluindo substancial desenvolvimento das biografias dos autores citados, embora, e compreensivelmente já que de uma obra de divulgação se trata, por recurso a obras de referência geral e não ao vastíssimo mundo da bibliografia especializada.

Se não é já uma edição de luxo cartonada e forrada a seda como a anterior, a qualidade gráfica e estética mantém-se, sendo de referir o design das capas que ao longo dos volumes vão sendo animadas com retratos dos autores e ilustrações inclusas nas obras, da autoria de João Jorge Magalhães, e a redução da dimensão (e peso!) dos volumes, o que sem dúvida facilita a leitura.

Viagem por Macau reúne excertos de 95 obras publicadas em livro (apenas), de carácter não historiográfico, produzidas por viajantes estrangeiros – leia-se, ocidentais não portugueses –, que, por uma razão ou outra, passaram por Macau em visita breve, nela residiram temporariamente ou até se lhe referiram a partir de conhecimento indirecto. Contemplando obras que vão do século XVII à primeira metade do XX, a maior parte dos títulos concentra-se nos séculos XIX (60 por cento) e XX (21 por cento) e limitam-se aos publicados nas línguas francesa, inglesa, espanhola, italiana, alemã e neerlandesa. Ao texto original junta-se uma cuidada versão portuguesa.

A organização também diverge. À divisão inicial agrupando os textos de acordo com a natureza da viagem (embaixadas, missões, expedições, etc.), preferiram os editores uma ordenação meramente cronológica ditada pela data da publicação da obra utilizada, critério que merece alguma discussão.

Ainda que esta ordenação cronológica seja mais flexível e proporcione uma visão mais panorâmica e sincrónica da matéria seleccionada, é também passível de algumas inconsistências, que aqui não cabe precisar. Por isso, e para a sua melhor utilização como obra de referência, seria desejável maior precisão na datação (mesmo por recurso à datação crítica) dos excertos seleccionados, tal como na passagem dos respectivos autores por Macau, tal como a introdução de um índice remissivo.

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Imaginário ocidental

Como já tem sido abundantemente referido, estes testemunhos veiculam quase sempre uma imagem negativa, crítica, depreciativa de Macau e das suas gentes, da política à economia, religião e sociedade, pelo que aqui não o repetirei, remetendo o leitor para a esclarecedora “Introdução” da obra.

Salvam-se a beleza da paisagem, a bondade do clima, a pacatez e a tranquilidade do lugar, os luxos e prazeres que nela se podiam desfrutar, o exotismo de edifícios, templos, trajes e cultos das suas gentes. Imortaliza-se, assim, de par com a referida crítica e, algo paradoxalmente, a imagem de uma Macau luxuosa, exótica, requintada, por via de uma literatura artificial, romântica e aventureira que fez escola; da iconografia, mas também de relatos orais que foram sendo perpetuados pela tradição familiar. Cria-se o estereótipo que passa a integrar o imaginário ocidental, que ainda hoje persiste e compõe a sacola do turista ocidental que a visita, do jornalista que a procura e, mesmo até, do escritor ou do investigador que a quer desvendar.

É a conflitualidade europeia transposta para o cenário asiático, a concorrência mercantil, religiosa e territorial que, desde os seus primórdios, torna Macau num centro de convergência da crítica ocidental face à frustração das suas tentativas de penetração, fixação e acesso directo ao mercado e espaço chineses, privilégios que os portugueses de Macau (reinóis, luso-descentes e aculturados) guardaram ciosamente, que nesta colectânea vemos representada, demonstrando também um total desinteresse e incapacidade de compreensão do estatuto de Macau.

Não estamos, nem ele o pretende ser, perante um trabalho exaustivo ou, sequer, acabado já que se trata – como referi – de um projecto, ditado pela lógica e perspectiva do coleccionador, que todos reconhecemos em Beltrão Coelho e Cecília Jorge, mas também fortemente influenciado por uma visão europeia (anglófona e francófona, sobretudo) da literatura e escritas de viagem, aventureira, positivista e etnocêntrica veiculada pelo explorador, marinheiro, comerciante, diplomata, “repórter”, viajante, cientista dos séculos XVIII e XIX, que também dominam, como sabemos, o mercado do livro raro internacional.

Para trás ficara a postura experimentalista e humanista do explorador, navegador, viajante meridional (português, espanhol e italiano, sobretudo) e, por vezes até do missionário, de percepção e apreensão da alteridade, à medida que multiplicava a sua experiência pelo espaço geográfico, tão comum nos séculos precedentes. Davam-se então os primeiros passos no conhecimento e descrição da China (incluindo Macau) e do conhecimento sinológico, a que a sinologia moderna tanto deve, mas que tanto esquece, o que aqui não me é possível detalhar.

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Uma “arca” de conhecimentos

Contributo importante para a história do livro, da edição e da iconografia, aspectos que cada vez mais vão prendendo a atenção de estudiosos, investigadores e especialistas do mercado livreiro, trata-se de uma obra de divulgação séria e fundamentada, mas que, e por isso mesmo, é passível de ser re-utililizada e exponenciada de outras formas, como aliás é reconhecido pelos seus compiladores. Uma “arca” que espero não fique no sótão.

Limitações de espaço não me permitem desenvolver muitos dos aspectos e reflexões que a obra suscita, tal é a vastidão do tema e a diversidade das perspectivas que os textos nela compilados abrem, o que reservo para outra sede. Contudo, há um deles que ainda gostaria de referir, tendo sobretudo em vista a possibilidade de extensão dum projecto desta natureza, naturalmente que com outros meios, atendendo à anunciada vontade institucional de criação de um Museu da Literatura de Macau.

Independentemente da discussão em torno do conceito de “estrangeiro” que tem, como sabemos, diferentes conotações de acordo com a perspectiva em que nos colocamos, há todo um outro universo que cruza este. Refiro-me aos visitantes asiáticos, comerciantes, diplomatas, políticos, escritores, jornalistas, espiões e contrabandistas que também visitaram e viveram em Macau ou nela exerceram a sua actividade até enquanto parceiros comerciais, nomeadamente no período em que se concentram os textos reunidos nesta colectânea.

Constituirão decerto mais uma das vertentes desse universo de Macau tema ou objecto literário (no sentido lato) que urge explorar de forma inovadora, restituindo-lhe a sua dimensão verdadeiramente universal enquanto ponto de cruzamento de rotas, mundos e civilizações, que simultaneamente lhe garante a diferença e a identidade por que a cidade quer e deve pugnar.

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