Arquitectura | Conjunto edificado no Tap Seac (1903-1910)

conjunto edificado no Tap Seac. Projecto da autoria do arquitecto espanhol J. M. Casuso, experiência de construção de um conjunto habitacional integrado numa concepção global de planeamento urbano em Macau – o Bairro de São Lázaro. Com este texto procuramos pensar ou percepcionar a “casa” como visão de uma consciência que é a sua e que é intencional, subjectivamente virada para o seu objecto de pensamento (a realidade e o mundo)

Tap Seac

 

Texto Margarida Saraiva e Tiago Quadros | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Antes de mais, e se calhar sem mais nada, é preciso dizer que sempre vimos na literatura, muitas e muitas arquitecturas. Algumas das questões mais importantes resultantes da experiência literária são a busca do sentido e da nossa identidade, na relação com outras identidades, e na forma como esta pode ser evocada e renovada. O processo da leitura pode constituir uma revisão de como nos vemos a nós próprios (o eu) e o outro, de como imaginamos e construímos (na espacialidade) o projecto do homem (na temporalidade). E assim também acontece com a arquitectura. A construção da nossa identidade, só pode ser feita no corpo lembrado das nossas casas. Como num álbum de fotografias, em que nos reconhecemos apesar da imagem da casa se modificar continuamente.

Vem isto a propósito do conjunto edificado no Tap Seac. Projecto da autoria do arquitecto espanhol J. M. Casuso, experiência de construção de um conjunto habitacional integrado numa concepção global de planeamento urbano em Macau – o Bairro de São Lázaro. Com este texto procuramos pensar ou percepcionar a “casa” como visão de uma consciência que é a sua e que é intencional, subjectivamente virada para o seu objecto de pensamento (a realidade e o mundo). As Casas do Tap Seac dizem-nos que os nossos mais recônditos pensamentos e as nossas acções, a alegria e a dor, exprimem a nossa necessidade de abertura ao sentido, sentido esse que impregna culturalmente comportamentos, emoções e vontades, em busca da felicidade, do prazer, da verdade, mesmo que situadas historicamente. E nós, mesmo que afastados desse tempo, lembramos os espaços que não conhecemos como um espelho sem lados falsos. À procura de nós e menos dos outros – à espera do dia em que a Casa, se nos revele.

Tap Seac

“O hibridismo sino-português reflectiu-se claramente na construção de habitação ao longo do século XX em Macau. Um gosto profundamente ecléctico, reflectindo esse encontro de culturas entre o Ocidente e o Oriente, vai protagonizar uma vontade de mudança e afirmação de famílias e lugares. Entretanto, a progressiva utilização do ferro e, depois, do betão na construção, vai estimular a aplicação de uma nova gramática, capaz de desenvolver dispositivos de espaços de transição como galerias, avarandados, consolas para sombreamento ou reixados para ventilar. Também a utilização de muretes com platibanda ou balaustradas a rematar uma cobertura que deixa de ser visível confere uma inusitada feição moderna e contemporânea à maioria das habitações unifamiliares.

Muitas destas casas simbolizam as famílias ricas macaenses. Construídas como símbolos da sua riqueza, o declínio económico das famílias e consequente impossibilidade de manutenção como residências, proporcionou em muitos casos uma reconversão de funções, nomeadamente para equipamentos escolares.”

Tap Seac

Mesmo que desenvolvida a uma certa distância dos paradigmas e paradoxos da ‘nova’ arquitectura moderna e internacional, bem como dos debates europeus em torno dos programas sociais e políticos gerados no início do século XX, a casa privada foi em Macau o principal veículo a partir do qual inovações, sobretudo ao nível tecnológico, foram introduzidas. Estas casas eram “representações sociais de uma produção luxuosa de prazer e desejo”. Poder-se-ia dizer que se revelavam a partir de reproduções não apenas de “formas metropolitanas” (King, 1990:60) mas também de formas imperiais importadas de outras cidades periféricas, de outros sistemas coloniais e depois integradas numa rede que pode denominar-se de trans-imperial e trans-colonial.

A razão da aglutinação nas grandes cidades, onde os espaço vital se deteriora, reside na exiguidade da liberdade de movimentos, mas também no número de regras indispensavelmente estabelecidas para salvaguardar o controle dos direitos do poder sob a capa da salvaguarda de direitos. Para além de uma peça de resistência na Macau contemporânea, o conjunto edificado no Tap Seac é promessa de felicidade porque contraria a maneira de subordinar a cidade a uma só visão. Porque vivemos barricados num território de distopias, pequenos mundos organizados para uma função determinada, com as suas hierarquias, a arquitectura do conjunto edificado no Tap Seac combate um tempo em que todo o espaço seja já percurso para algo, em que toda a representação de corpo nos lugares seja já percurso para algo, em que toda a representação do corpo nos lugares seja invisível, em que o sujeito não reconheça em si mais que uma peça da engrenagem.

Tap Seac

Hoje, as sociedades organizadas concorrem para a satisfação da necessidade social da espécie humana, acumulando grupos que se identificam como entidades congénitas institucionais levadas ao paradigma da escala de poder onde uns parecem ser mais que outros. Que espécie humana permite essa escala que pejora a relação saudável da sociedade onde está sujeita a necessidade de presença do semelhante, como um castigo, e onde a quietude não tem lugar? Onde vamos calcorreando vagarosamente os caminhos das Casas do Tap Seac?

A apreensão visual de um determinado espaço pressupõe um observador que a realize e a consideração da existência de tal observador vem enriquecer, pela criação de situações várias, o dimensionamento do espaço. A esse propósito recordamos uma passagem de Terna é a noite, de Scott Fitzgerald: “Abriu a porta do seu quarto e dirigiu-se directamente à secretária, onde recordava ter deixado o relógio. Estava ali. Enquanto o colocava no pulso, olhou a carta diária para a sua mãe e terminou mentalmente a sua última frase. Foi então que se apercebeu gradualmente, sem se virar, de que não estava sozinha no quarto”.

Tap Seac

Num quarto habitado há sempre objectos refrangentes em que mal se repara: madeira envernizada, metais mais ou menos polidos, prata e marfim, além desses milhares de reflectores de luz e sombra, tão apagados que dificilmente os vemos como tais: topos das molduras, gumes de lápis ou de cinzeiros, de objectos de porcelana ou cristal. Toda esta refracção – que apela para reflexos igualmente subtis da visão, assim como para fragmentárias associações subconscientes que parecemos reter, como um vidreiro guarda fragmentos de vidro que mais tarde lhe poderão ser úteis – pode justificar aquilo que mais tarde Rosemary descreveu, misticamente, como a “compreensão” de haver mais alguém no seu quarto, antes de o ter propriamente visto. Mas quando compreendeu tal, voltou-se rapidamente, numa espécie de passo de ballet, e viu um negro morto deitado na sua cama”.

Tal como o tempo não se percebe à margem dos acontecimentos, também o espaço não se percebe à margem dos objectos. E é tão simplesmente isto que as Casas do Tap Seac, da forma mais bela, nos contam – a separação entre espaço e objecto não tem sentido, como não tem sentido a separação entre tempo e evento.

Com o presente artigo encerramos a selecção de obras edificadas em Macau até 1911. Como sabemos, a implantação da República em Portugal em 1910 e, no ano seguinte, na China, constituem factos da maior importância no âmbito de um novo quadro político apostado no progresso e nas possibilidades técnicas do mundo contemporâneo. De facto, a nova república portuguesa empenhar-se-á numa acção mais decisiva e concertada do que tinha sido praticada até então e, para além do mais, no novo quadro político as tensões entre os dois países atenuar-se-ão. A entrada de Macau no século XX será determinada pela abertura dos portos da China ao Ocidente, bem como pela afirmação crescente dos ingleses em Hong Kong.

 

CAIXA

Conjunto edificado no Tap Seac

Avenida Conselheiro Ferreira de Almeida, n. 93/95

 

1903/1910 – J. M. Casuso realiza o projecto do conjunto edificado no Tap Seac

2008 – Venda do Conjunto edificado no Tap Seac, por parte da Fundação Oriente ao Governo da RAEM