Cultura | “Estamos a viver um bom momento do teatro lusófono”

Durante três dias falou-se português com sotaque do Brasil, Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau no palco do auditório do Instituto Politécnico de Macau na I Mostra de Teatro dos Países de Língua Portuguesa.

Teatro Brasil

 

Texto Filipa Queiroz | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro e Jorge de Palma

 

“Soltar as amarras! Vamos partiiiir!” O actor repete as mesmas palavras aos gritos, com vozes diferentes, os braços erguidos para o alto e as pernas agitadas para trás e para a frente, para trás e para a frente. Johan Padan, o veneziano malandro e fanfarrão, embarca em Sevilha numa caravela de Cristóvão Colombo rumo às Américas. Estamos em 1492. Depois de dias e dias a navegar, os espanhóis chegam finalmente a uma ilha “tão florida tão florida que mais tarde veio a chamar-se… Florida”.

Durante uma hora e 20 minutos de monólogo com muito humor ouvimos a narração das aventuras do “Italiano”, a criação do dramaturgo Dario Fo recriada pelo actor e encenador brasileiro Julio Adrião. Um espectáculo com tanto sucesso que está há nove anos na estrada. Mais de 500 apresentações em todo o mundo, sobretudo no Brasil.

“É um espectáculo que vai aos pouquinhos, vai chegando e as pessoas vão se envolvendo, acredito que graças ao facto de ser uma história muito próxima das pessoas que são fruto desse grande período de colonização por parte de vários países da Europa e não só”, explica Adrião à porta do auditório do Instituto Politécnico de Macau (IPM).

A Descoberta das Américas abriu a novidade da edição deste ano da Semana Cultural da China e dos Países de Língua Portuguesa, organizada pelo Secretariado Permanente do Fórum Macau – o Teatrau, I Mostra de Teatro dos Países de Língua Portuguesa, coordenada pelo Instituto Português do Oriente (IPOR). “Pareceu-nos que o teatro em língua portuguesa era uma área que precisava de algum impulso”, comenta João Laurentino Neves, director do IPOR. “O teatro é talvez nas artes performativas aquele em que a língua desempenha o papel mais importante do ponto de vista de trazer até nós o que é uma representação cultural, e o que temos em palco são leituras que companhias fazem daquilo que é a sua cultura, a sua identidade.”

Julio Adrião considera que a peça do Nobel da Literatura de 1997 permite ao público reflectir sobre factos que, não sendo engraçados, são transmitidos numa chave de uma certa pureza e ingenuidade. Por isso, “proporciona uma reflexão sobre o que aconteceu, mas também sobre as coisas que ainda hoje acontecem como diferenças, imposições e violência, todas presentes no quotidiano da civilização. Esta é uma oportunidade para pensar sobre elas”.

Teatro Brasil

Sintadu

Reflexão é a palavra chave do trabalho do Grupo de Teatro do Oprimido (GTO) da Guiné-Bissau, que também usa factos reais para passar ao público uma mensagem e receber uma resposta. Sintadu foi a peça que apresentaram em Macau. Duas mulheres de duas gerações diferentes trabalham a terra quando um jovem, neto de uma delas, decide usurpar o terreno e destruir as colheitas para construir por cima. Na Guiné, sintadu significa harmonia e uma boa relação de vizinhança. A peça trata o conflito da posse de terras, problema que estraga precisamente o sintadu e que actualmente é um problema que, segundo José Carlos Correia, está a crescer no país africano.

No final da apresentação, o actor e encenador pergunta ao público se tem alguma proposta de solução para o problema daquelas duas mulheres, e o público acede. Uma espectadora sobe ao palco e substitui uma das personagens fazendo um discurso diferente, completamente improvisado. Depois dela outros sobem ao palco, inclusive uma criança que se ajoelha no chão a pedir clemência.

“Fiquei impressionada! A criança conseguiu fazer o opressor mudar de ideias”, confessa a actriz Edilta da Silva. Ela e Elsa Gomes fazem parte do GTO desde a fundação, há dez anos. Antes faziam parte de um grupo de teatro convencional. “Todas as formas de teatro sensibilizam, mas esta em particular é uma metodologia e uma forma mais fácil de criticar as coisas que não estão bem”, explicam.

Teatro Guiné

O Teatro do Oprimido foi fundado nos anos 1960 pelo dramaturgo brasileiro Augusto Boal e alia a arte à acção social. As técnicas e práticas difundiram-se pelo mundo e são hoje largamente empregadas, não só por aqueles que entendem o teatro como instrumento de emancipação política, mas também nas áreas de educação, saúde mental e sistema prisional. “Todos os seres humanos são actores porque actuam, e espectadores porque observam”, disse Boal.

O GTO da Guiné inclui um programa de reinserção de vítimas de guerra e aborda temas que vão desde o casamento precoce, escolarização da rapariga e excisão feminina até à corrupção, sempre com recurso a elementos cénicos que identificam a origem. “É útil porque levamos a peça à comunidade para trabalhar com eles uma solução para os problemas”, conta José Carlos. “Nas muitas regiões onde fomos houve uma resposta positiva. As pessoas têm a coragem de dizer: ‘É isto que temos de fazer!’ Sabemos que o conflito não é fácil nem rápido de resolver, mas aos poucos vai havendo uma mudança de mentalidade e por isso trouxemos esta peça a Macau, para mostrar um outro mundo.”

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Adão e Eva

Apesar de não ser a versão bíblica que todos conhecemos, porque o texto é do escritor e músico Mário Lúcio Sousa, e apesar de usar uma conjugação de linguagens, como o teatro e a dança contemporânea, há detalhes ao nível da expressão corporal e do ambiente sonoro e visual da peça de Cabo Verde que são marcadamente representativos do país. A cestaria, a música, o balanço do corpo, por exemplo.

João Paulo Brito e Raquel Monteiro são Adão e Eva dos Sikinada, uma companhia com cinco anos que aposta no experimentalismo, sem uma linha estética definida mas com vontade de inovar, e cuja criatividade tem sido alimentada, entre outras coisas, pelos encontros no espaço da lusofonia. “Apesar das crises, o intercâmbio entre companhias lusófonas tem sido muito grande. Há vários festivais no Brasil, em Portugal e em Cabo Verde – como o Mindelact, que já é um festival de referência –, por isso algumas das pessoas que encontrei aqui em Macau já conhecia. Vamo-nos cruzando pelo mundo”, explica João Paulo.

O também director nacional das Artes de Cabo Verde diz que os frutos estão à vista em forma de diálogos que resultam em co-produções, que por sua vez representam uma troca de experiências enriquecedora e revitalizante para os artistas. “O nosso teatro vai enriquecendo, vai saindo e ganhando uma dimensão para além do nosso espaço. Fazíamos teatro há uns anos muito direccionado para Cabo Verde, mesmo ao nível da linguagem.”

Geralmente a companhia opta por representar em língua portuguesa. “Há espectáculos que pela sua natureza não se traduzem, mas mesmo fazendo em português é um português cuja construção frásica é diferente do português que se fala em Portugal, completamente perceptível, mas onde se percebe que há um jogo de palavras diferente. Acho que é uma riqueza termos essa possibilidade de, dentro da mesma língua, dizermos: ‘Ah, isso é teatro falado em português mas é angolano ou é da Guiné’”, conclui.

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Órfã do Rei

O público deste primeiro Teatrau foi escasso. Mel Gamboa, que apresentou Órfã do Rei, da companhia HenriqueArtes de Luanda, diz que foi o “único ponto negativo”, mas garante que quem foi, gostou. “Foram poucos mas foi muito bom. Disseram-nos que se sentiram surpreendidos, que gostaram muito e que ficaram com vontade de ver mais”, conta a actriz que interpretou um monólogo do escritor angolano José Mena Abrantes sobre a partida para Angola de uma órfã criada num asilo real, no final do século XVI.

Segundo Mel Gamboa, em Angola o panorama é similar, agravado pela falta de salas e o preço elevado dos bilhetes. Pela experiência nas oficinas que os grupos também fizeram em instituições de ensino de Macau, a actriz arrisca que mais do que divulgação, Macau precisa de formar público teatral.

O GTO da Guiné-Bissau desdramatiza. “Para nós é muito normal fazer teatro até para uma pessoa. É muito bom ter a sala cheia mas não importa, mesmo menos cheia nós vamos trabalhar”, diz Edilta Silva.

No Brasil o teatro é prolífico. Julio Adrião explica que no interior do país a arte performativa é uma forma de comunicação muito forte, além de uma ferramenta de educação e de troca a outros níveis que não só o do entretenimento. Mas cada vez que faz um espectáculo, o actor pensa sempre que há alguém que está ali pela primeira vez e que para voltar uma segunda depende do trabalho que ele fizer. “Acho que embora o teatro não seja um alimento necessário para o corpo, ele acaba por ser um elemento muito importante para a alma. É um lugar onde você se renova, onde você pensa sobre coisas muito próprias. Por isso, tem uma função e vai continuar a ter.”

Num contexto global, em que as atenções estão voltadas para as novas tecnologias, o cinema e a televisão, Adrião considera que o teatro está a salvo, precisamente devido ao seu carácter único. “O teatro só acontece naquele momento em que ele acontece. Cada espectáculo que faço é como se tivesse uma memória própria. Aqui em Macau, por exemplo, é ainda mais especial – realmente inesquecível.”

João Paulo não tem dúvidas: “Estamos a viver um bom momento do teatro lusófono.” E João Laurentino Neves espera para o ano poder repetir a dose. “O facto de podermos ter teatro com leituras completamente diferentes é uma oportunidade excelente para aprofundarmos aquilo que temos vindo a dizer que Macau pode ser, que é essa plataforma de encontros, de diálogos, dessas competências interculturais que queremos desenvolver para todos dentro da mesma língua, reconhecendo as nossas diferenças e sobretudo valorizando-as.”

A manter-se o evento, segundo o director do IPOR, para o ano haverá uma II Mostra de Teatro dos Países de Língua Portuguesa e com uma peça original de Macau.