Cultura | Vidas pintadas de fresco

Se por acaso vir um quadro parecido com os de Denis Murrell mas assinado com outro nome não se espante. Com oficinas de pintura esgotadas em 2014, há dezenas de jovens chineses a desenvolver a técnica única do artista australiano radicado em Macau. A Fundação Rui Cunha juntou mestre e discípulos numa exposição.

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Texto Filipa Queiroz | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Há quem diga que imitação e criatividade são inseparáveis. Quando olha para os quadros dos alunos, muito semelhantes aos seus na fase inicial da carreira, Denis Murrell sente apenas orgulho. “É só o ponto de partida”, diz, junto às obras dos alunos na Galeria da Fundação Rui Cunha.

Natural de Melbourne, na Austrália, o pintor contou à MACAU, semanas antes da inauguração, que nos tempos de estudante de Arte em Sidney teve professores “bastante iluminados que não deixavam copiar”. “Éramos criticados se copiássemos, tudo tinha de vir da nossa cabeça”, explica. ”Davam-nos um tema para explorarmos sozinhos e de forma completamente livre. Era um estilo de ensino muito diferente do chinês.”

Quando se mudou para Macau em 1989, Murrell, formado também em ensino do Inglês como Segunda Língua, trabalhou como professor do idioma e ao mesmo tempo começou a explorar a paixão antiga pela pintura. Com o passar do tempo foi aliando as duas disciplinas, alicerçadas pelo seu forte instinto pedagógico, e condimentando com a própria experiência multicultural.

Engraçado, dinâmico, gentil e amigo são adjectivos repetidos pelos alunos a quem, entre outras coisas, Denis Murrell ensinou a sua técnica sui generis de combinação de tinta acrílica com tinta da china e papel absorvente. “Sem limites e sem restrições”, é como Elaine Koon a descreve. A aluna do pintor diz que o método é “divertido e interessante”, porque “estimula a criatividade e o sentido artístico” e não é limitada a quem tenha bases de pintura.

Ela foi uma das cerca de 40 jovens a frequentar as oficinas de pintura de Murrell no Museu de Arte de Macau no ano passado, muitas sem qualquer experiência artística prévia. “Eu nunca tinha tido aulas de pintura, nem sabia desenhar muito bem, mas o Denis fez-me sentir confiante e feliz”, diz Phoebe Choi. Um amigo recomendou-lhe as aulas do pintor que, segundo a jovem, a par com as paletas e os pincéis eram repletas de “alegria e sorrisos”.

“Eram livres”, resume Helen Leong. “São muito diferentes, ele não tem muitos alunos de cada vez porque gosta de interagir com eles; respeita as nossas ideias e ajuda-nos a alcançar os nossos objectivos.” Helen diz que tinha nove anos quando conheceu Denis Murrell. O pintor recorda-se dela com sete. Ensinou-lhe Inglês até ir para a universidade. Foi o primeiro estrangeiro com quem teve contacto directo.

“Claro que tinha medo dele no início”, confessa Helen. Murrell conta que depois de ela ter ido estudar moda para Taiwan, não conseguia encontrar emprego em Macau e foi ter com ele para lhe pedir para experimentar fazer um quadro. “Quando vi a pintura achei que era belíssima, tinha claramente talento”, recorda o pintor. “E na oficina ela brincava com toda a gente, era muito livre, às vezes os outros até já lhe iam pedir conselhos em vez de virem ter comigo”, continua. Helen, por seu lado, confessa: “O Denis foi um óptimo professor e eu considero-o o meu benfeitor, apesar de nunca lho ter dito.”

 

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Lição número 1

“Digo sempre aos meus alunos: nunca se comparem com os outros, compitam com vocês mesmos”, responde Denis Murrell quando lhe perguntámos se costumava comparar a sua pintura com a de outros artistas de Macau quando começou a entrar no círculo artístico local, do qual faziam parte nomes como Ung Vai Meng, Mio Pang Fei e Konstantin Bessmertny.

“Costumávamos jantar muitas vezes. Era conversar, beber e dizer mal dos quadros um dos outros”, atira. “Mas não demasiado para ninguém sair magoado. Mas como é que se pode competir quando as pessoas têm ideias completamente diferentes? E de qualquer forma eu descobri uma maneira diferente de pintar.”

Foi em 1991, por acidente, que Murrell deixou cair um pouco de tinta no chão que limpou com um lenço. Sentiu-se de tal forma inspirado pela mancha de acrílico vermelho no papel absorvente que acabou por incluí-la numa instalação. “Agora está no museu. Não tem nome. Naquela altura cheguei a dar nomes a alguns quadros mas depois desisti porque acho que [a pintura abstracta] é como a música clássica: não tem palavras, cada pessoa quando ouve tem uma ideia diferente.”

Elaine Koon fez um curso de pintura a óleo antes de ter aulas com Denis Murrell. Queria pintar coisas com um significado para oferecer a alguém especial. Ia para o estúdio e pintava a partir de fotografias ou imagens que gostasse, mas admite que não sentia grande inspiração. Pelo contrário, sentia-se frustrada de cada vez que um quadro não ficava parecido com a imagem que tentava replicar.

“Quando terminei o curso fui por curiosidade a uma sala de aula do Denis, vi os pedaços de papel a secar com padrões e cores muito bonitas e perguntei o que iam fazer com aquilo”, conta. Quando deu por ela, estava a inscrever-se na oficina do artista. “Nas aulas do Denis não fica definido à partida como vai ser um quadro, vou fazendo à medida que sinto. Quando chego a um ponto em que não sei o que fazer o Denis dá-me sugestões mas não ordens, encoraja-me a experimentar”, diz Elaine.

As oficinas foram um sucesso. Tiveram tantos candidatos que o Museu de Arte teve de recorrer à selecção aleatória feita por computador para escolher as turmas de apenas 15 eleitos. A esmagadora maioria do sexo feminino. Muitos dos trabalhos foram expostos ao público em Janeiro na mostra colectiva Ponto de Partida, em conjunto com os de outros alunos que passaram pelo estúdio do artista.

A exposição foi organizada pela Fundação Rui Cunha pela facto de um dos seus objectivos ser estimular a criatividade artística, e por possibilitar que os jovens exponham os seus trabalhos juntamente com o mestre, como explicou Tubal Gonçalves à MACAU. “Serviu também para prestar homenagem ao mestre Denis Murrell expondo alguns dos seus trabalhos”, acrescentou.

“Um dos melhores quadros da exposição é o de uma menina que tinha 12 anos quando o fez”, conta Murrel. “Ela é muito tímida e detesta pintar, gosta é de dançar, mas os pais pediram-me para falar com ela para que pudesse praticar o inglês antes de ir estudar para o estrangeiro e acho que está a resultar.”

O mesmo aconteceu com outras duas crianças que não queriam aprender inglês mas os pais insistiram e pediram para que o professor os cativasse. Um está agora a estudar em Taiwan, a outra continua a ser acompanhada pelo artista e quer continuar a pintar. Na óptica de Murrell, a arte é uma terapia. “Antes não sabia mas pode de facto mudar a vida das pessoas de uma forma que nem imaginam.”

 

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Lição número 2

Para pintar é preciso espaço. Uma coisa que em Macau não abunda, antes pelo contrário. É um problema sério, agravado com o aumento do preço das rendas, ao qual nem veteranos como Murrell estão imunes. O estúdio privado do pintor apenas lhe permite receber cerca de três alunos de cada vez. Zero quando tem grandes encomendas.

Elaine Koon gostava de ser artista a tempo inteiro “se não tivesse de pensar em (se) sustentar”, mas considera que o facto de ter estudado fora de Macau já lhe permitiu ter um maior contacto e sensibilidade no que toca à arte. Tal como viajar até países como a Itália onde “coisas tão insignificantes como uma maçaneta, a maneira como as pessoas se vestem ou a cor que usam para pintar as paredes” lhe “abriram os olhos e a mente”.

A jovem lamenta, no entanto, que de um ponto de vista global a arte na cultura chinesa seja vista como “um luxo, algo que uma pessoa vai apreciar ao museu apenas quando não tem mais nada para fazer”, mas reconhece que o sentido artístico tem aumentado. Em grande parte graças ao investimento no desenvolvimento da arte e da cultura nos últimos anos por parte do Governo, que trouxe a Macau exposições como Neo-Idolatria do célebre pintor chinês Yue Minjun; o “esforço notável” do sector privado, como por exemplo a abertura do Espaço de Arte do resort MGM onde estiveram patentes mostras como Venus de Botticelli, e o trabalho das organizações sem fins lucrativos como a Art For All.

“Gostava de ver o ambiente artístico de Macau aproximar-se dos padrões internacionais, tal como a cidade em si se está a aproximar de um centro de turismo mundial”, sugere Elaine.

Phoebe Choi diz que mais do que ser pintora profissional quer ser uma pintora feliz, e para tal prefere manter a arte como passatempo. Apesar de tudo, não nega que o meio artístico local “está melhor”. Diz mesmo que “qualquer pessoa pode ser artista” com a ajuda das redes sociais, do governo e das instituições de ensino.

Helen diz que não conhece muitos artistas mas vê “muitas pessoas a fazer exposições” o que lhe dá alguma esperança. “Não tenho sonhos mas gostava de um dia poder fazer quadros grandes se tivesse sítio para os pintar.” Até lá, vai frequentando o estúdio de Murrell. “Sinto-me livre quando pinto, não tenho de me preocupar com o que os outros dizem. É algo que pertence a mim e a mais ninguém. A minha mente abre-se e sinto que posso fazer qualquer coisa.”

 

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Lição número 3

Exposições, prémios e contactos são muito importantes. O tal “ponto de partida”, primeiro passo para Helen, Phoebe, Elaine e colegas. Para Denis Murrell, que a curiosidade e uma agenda de contactos oferecida por alunos de Macau em Melbourne trouxe ao território há 25 anos, o processo não foi tão simples. Partiu de um desses alunos. Cristina Mio, filha do pintor Mio Pang Fei. Segundo Murrell foi ela que, à chegada a Macau, o encorajou a pegar nos pincéis e meter mãos à obra.

“O pai andava por aí e muita gente estava a fazer arte abstracta, coisa que sempre quis fazer, por isso pulei a cerca do semi-abstracto e atravessei o rio até ao abstracto – o que requer algum esforço, sabe? Não foi fácil”, confessa. “Li muitos livros, comprei muitas revistas, falei com pessoas do Instituto Cultural, pratiquei, fiz vários pequenos quadros que ofereci a pessoas até que um dia fiz a exposição na Casa Garden, organizada pelo Círculo dos Amigos da Cultura”, pronuncia o artista em português quase perfeito. Apenas o nome do Círculo, porque a aprendizagem do cantonês foi onde, há muitos anos, o pintor decidiu apostar todas as fichas.

No mesmo ano, 1994, Murrell expôs também na galeria da Livraria Portuguesa e depois disso em vários locais, dentro e fora de portas. China, Hong Kong, Japão, Malásia, Filipinas, Coreia, Estados Unidos, Canadá, Portugal. “Cheguei a ser convidado para ir viver para Portugal e ser um pintor português!”, revela. Fã de Maria Helena Vieira da Silva, em 1996 dois portugueses propuseram-lhe residência em Setúbal, onde chegou a fazer algumas exposições. “Mas depois o governo mostrou-se contra o apoio ao trabalho de estrangeiros e acabei por não ficar.”

Murrell venceu o 1.º e 2.º Prémios de Pintura Ocidental na Bienal de Arte de Macau em 1995 e 1997, o 1.º Primeiro Prémio da XIII Exposição Colectiva de Artistas de Macau em 1996, e levou para casa o Prémio de Bronze na Forte Cup XX Century Asian PacificArt Competition (em Washington D.C.). “Esse foi o empurrão, tal como o apoio dos artistas de Macau”, diz o pintor. Entre eles o actual presidente do Instituto Cultural, Ung Vai Meng, que esteve presente na inauguração da exposição colectiva de professor e alunos em Janeiro.

“Além de um excelente professor e grande artista, o Denis introduziu às gerações mais jovens uma forma diferente de pensar, uma forma diferente de expressar as emoções”, disse Ung Vai Meng. “Ele é, sem dúvida, um membro da nossa família de Macau cuja postura e trabalho tão jovem e tão colorida nos inspira.”

Aos 67 anos, é com carinho e um brilho nos olhos que Denis Murrell fala da cidade onde inspirou e foi inspirado, dos alunos e do futuro. Não vive da arte mas vive com arte. “Tenho muitos amigos locais, especialmente chineses, sou convidado para casamentos e aniversários”, conta, divertido. Os presentes são geralmente pinturas.

Mas e agora que vários jovens fazem quadros iguais aos seus? “Não me fará clientes, eles não têm a minha experiência, vão ser sempre diferentes e à medida que o tempo passar vão mudando de estilo.” Não tivessem tantos outros mestres inspirado novos artistas e criado correntes no passado, por isso o pintor pretende continuar a ensinar não só pelo prazer como pela perpetuação da técnica. “Não vim para Macau para ser rico, se vender o número de quadros suficientes para viver sou um homem feliz”, diz.

Mas e se fosse rico? “Gostava de financiar as escolas mais pobres para que tivessem departamentos artísticos. Algumas precisam de edifícios melhores, gostava de lhes dar dinheiro para isso e para financiar bolsas de estudo aos meus alunos para estudarem no estrangeiro.”

Denis Murrell tem na calha mais oficinas no Museu de Arte e foi convidado para leccionar um curso na Universidade de Ciência e Tecnologia. Em 2016 vai ter uma exposição individual no Centro UNESCO de Macau.