Indústria de panchões de Macau

O cartucho de pólvora revestido por papel vermelho típico das festividades chinesas foi durante mais de um século uma das principais indústrias do território, com grandes exportações para as comunidades chinesas espalhadas pelo mundo. Hoje desaparecida, da indústria de panchões de Macau resta apenas uma fábrica desactivada – a Iec Long, na Taipa – e embalagens coloridas em sites de leilão.

Panchões

 

 

Texto Patrícia Cruz

 

Os chineses sempre usaram os panchões para afugentar a má sorte. Ou os inimigos, em guerras psicológicas à base do estouro. Uma lenda conta que o panchão assustava o monstro Nian, que comia pessoas e gado. Outra garante que servia para acordar o dragão que trazia a chuva da Primavera aos campos. Há quem acredite que com tais estalidos se queimam os pecados. Todos sabem que o vermelho e as faúlhas são bons presságios, assim como o fumo cria uma atmosfera positiva. E foi esta combinação que fez do panchão um modo de celebração irresistível, sobretudo no Ano Novo Chinês.

Em Macau, rebentar panchões é uma tradição antiga, não apenas reservada a épocas festivas, como acontece no resto da China. Foi também em Macau que primeiro se ouviu a palavra panchão, com raiz no chinês pau-tcheong (embrulho de pólvora). Ganhou expressão no mundo lusófono e consta até nos dicionários como regionalismo de Macau, significando “foguete chinês”.

O mais antigo alvará para estabelecimento de uma fábrica de panchões, que se encontra no Arquivo Histórico de Macau, remonta a 3 de Dezembro de 1881. Apesar de não fornecer a designação da fábrica, o documento contém várias informações importantes, nomeadamente o facto de já existir uma unidade do género no mesmo local. Por esta razão, supõe-se que a primeira fábrica de panchões do território terá surgido por volta de 1880.

A instalação deste tipo de unidades era regulada pelo Decreto de 21 de Outubro de 1863, que apresentava em anexo uma tabela de classificação dos estabelecimentos industriais, que se dividiam em 1.ª, 2.ª e 3.ª classes, consoante o grau de insalubridade, incómodo ou perigo. As fábricas de panchões, devido ao elevado risco que representavam, pertenciam à 1.ª classe, a mais perigosa.

A indústria de panchões evoluiu e, em 1913, existiam já sete fábricas. Este número foi variando ao longo do tempo, à medida que algumas unidades eram fechadas e outras abertas (ver caixa). Os dados da Estatística Geral da Província de Macau e do Anuário Estatístico de Macau comprovam que a indústria de panchões era das mais importantes da região, assegurando as necessidades internas e uma fatia considerável das exportações, e empregando milhares de trabalhadores (3969, segundo registo de 1960).

O fabrico de panchões aparece pela última vez no Anuário Estatístico de Macau de 1981. A indústria de panchões entrou em declínio em meados da década de 1970, devido à falta de mão-de-obra. Isto porque os funcionários das fábricas começaram a procurar trabalhos mais lucrativos e seguros nas fábricas de vestuário, o sector mais produtivo naquela época. Por outro lado, o mercado tornou-se cada vez mais competitivo e restrito. Os EUA, principais importadores dos panchões de Macau, diminuíram as encomendas após o estabelecimento de relações diplomáticas com a República Popular da China, o maior competidor de Macau no fabrico de panchões, em 1974. A juntar a esta situação, Hong Kong e Singapura cessaram as importações, depois de terem proibido o rebentamento de panchões por questões de segurança.

 

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Receita caseira

O processo de criação dos panchões decorria não só nas fábricas, como também em casas particulares, onde até as crianças se ocupavam de certas fases do fabrico. Depois de se abastecerem na fábrica com o papel necessário à confecção dos invólucros em forma de tubo, os artesãos efectuavam várias fases do processo em suas casas.

A primeira fase consistia em enrolar o papel várias vezes, numa espécie de prego comprido sem cabeça, comprimindo-o seguidamente, por enrolamento, num instrumento de madeira conhecido por chó pau ká. Esta operação era feita sobretudo por mulheres e crianças, normalmente no exterior das casas.

Após serem revestidos com papéis vermelhos, os tubos eram cortados num instrumento especial em forma de alavanca, o chit pau cheong ká, e agrupados em molhos de forma octogonal. De seguida, furavam-se, um a um, com um prego, e fechava-se uma das extremidades, batendo no topo. Levavam-se então à fábrica, onde eram cheios com pólvora. Posteriormente, os panchões eram entregues de novo aos artesões, que procediam à colocação dos rastilhos. Por fim, os panchões regressavam à fábrica, onde os tubos eram fechados e empacotados em maços, nos quais se colava um rótulo, com o nome da firma.

No início da década de 1910, a indústria de panchões começou a utilizar tubos compridos como invólucros dos panchões. Como em Macau só se faziam canudos curtos, a solução foi importar os invólucros da China, por via de Cantão. Só que em 1912, o Governo de Cantão proibiu a exportação de invólucros de panchões para Macau, o que ameaçava paralisar as fábricas de panchões.

Na sequência desta medida, o Governador de Macau pediu ao cônsul geral de Portugal em Cantão que averiguasse as razões da proibição. No ofício de resposta, é possível ler-se, ipsis verbis, o seguinte: “o Governo de Cantão pensou que era absolutamente ilógico permitir a exportação para Macau dos envolucros que depois eram importados sob a forma de panchões, quando essa fabricação poderia aqui effectuar-se em condições de preço muito melhores”. Ou seja, tratou-se de uma medida proteccionista.

O Governador de Macau convocou então uma conferência com os fabricantes de panchões, instigando-os a promover a indústria do fabrico de invólucros em Macau e oferecendo-lhes o auxílio que necessitassem. Todavia, os comerciantes de invólucros enviavam-nos para Hong Kong, onde existia uma fábrica de panchões. Só depois, mais caros, é que os invólucros voltavam a Macau.

Mais tarde, veio a comprovar-se que a proibição era uma retaliação devido a disputas territoriais e ao facto de Macau cobrar impostos em território chinês. Como Portugal não reconhecia a China republicana, a situação foi-se arrastando até Março de 1919, altura em que os proprietários das fábricas de panchões de Macau entregaram um requerimento ao Governador. Solicitavam a proibição da exportação de salitre e enxofre (produtos indispensáveis para o fabrico de panchões) para Cantão, a qual foi autorizada pelo Conselho do Governo no mesmo mês.

 

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Sombras na luz

Em meados de 1920, as fábricas de panchões começaram a utilizar métodos mais modernos e materiais mais perigosos. Foram passadas licenças a várias fábricas para a utilização da pólvora cloratada, também conhecida por pólvora branca, muito mais perigosa do que a tradicional pólvora negra. Embora tivesse aumentado a fiscalização, sobretudo para efeitos da renovação das licenças anuais, esta era pouco rigorosa, não tendo impedido que se registassem os acidentes mais trágicos da história da indústria de panchões.

A 26 de Novembro de 1928, por volta do meio-dia, ocorreu uma enorme explosão na fábrica de panchões Iec Long, que se ouviu em toda a península de Macau. Pereceram 12 pessoas, entre os seis e os 54 anos, e houve cinco feridos, entre os 14 e os 18 anos. No relatório da ocorrência, pode ler-se que “o desastre foi devido à falta de cuidado dos operários que estavam manipulando panchões, empregando clorato de potassa [utilizado na preparação da pólvora branca], numa das dependências da fábrica a esse fim destinada”.

O incêndio que se seguiu à explosão chegou a ameaçar toda a vila da Taipa, tendo destruído dez casas, dois estaleiros, uma cordoaria e quatro barracas (usadas como habitação). Para tal, contribuiu o facto de não haver meios na vila para combater o incêndio, que só foi extinto às 22h00.

Contudo, o maior acidente sucedeu na madrugada de 6 de Março de 1930, à 1h30 na fábrica Kuong Heng. Ouviram-se três explosões sucessivas, que provocaram a morte a 44 trabalhadores e feriram oito. Segundo o relatório oficial, o acidente foi causado por um raio.

Estranhando-se tão elevado número de vítimas àquela hora, foi ordenada uma investigação, tendo-se apurado que “para a manufactura de uma grande encomenda de panchões feita à fábrica, combinou o gerente com os seus operários, na maioria mulheres, fazerem serões, mediante uma gratificação de 20 avos e mais uma refeição durante a noite, além da importância que tivessem de receber pelo trabalho feito”. Uma situação proibida por lei. Além disso, o proprietário da fábrica também não tinha colocado os obrigatórios pára-raios. E a tragédia poderia ter sido ainda maior se a chuva torrencial não tivesse apagado de imediato o fogo.

Em ambos os casos, os proprietários das fábricas pagaram o seguro de vida às famílias das vítimas e assumiram todas as despesas dos funerais, apesar de a tal não serem obrigados.

 

 

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Números e destinos

Fábricas

1913 – 7

1920 – 6

1930 – 8

1940 – 5

1950 – 4

1960 – 10

1970 – 9

1980 – 2

 

Panchões exportados

1930 – 1.353.289 kg/MOP 507.446,18

1940 – 1.493.760 kg/MOP 328.627

1950 – 1.664.600 kg/MOP 3.570.215

1960 – 3.928.209 kg/MOP 6.957.788

1970 – 3.403.718 kg/MOP 17.506.671

1980 – 23.326/MOP 213.245

 

Destino das exportações

Hong Kong, Singapura, Timor, Austrália, Nova Zelândia, Índia, Líbano, Seicheles, Iémen do Sul, Somália, Quénia, Zâmbia, África do Sul, Portugal, Espanha, Bélgica, Dinamarca, Noruega, Canadá, Estados Unidos da América, México, Suriname, Barbados, Antilhas Holandesas e Aruba.