Mio Pang Fei e a arte que se respira

Mio Pang Fei é um dos mais conceituados artistas contemporâneos da China. Em Macau desde os anos 1980, prepara-se para representar o território na Bienal de Veneza. Uma distinção que não esperava, a caminho dos 80 anos. O desafio foi aceite. Ou não fosse a arte o ar que ainda hoje respira

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Texto Sofia Jesus | Fotos Carmo Correia

 

Mio Pang Fei tinha cinco ou seis anos quando se apaixonou pela pintura. Foi nas paredes e portas da sua casa, em Xangai, que começou a desenhar os tigres e leões que via com os pais no jardim zoológico. Uma trapalhada que era preciso limpar, dizia a mãe; já, para o pai, a bicharada era prenúncio de um talento que haveria de desabrochar. E assim foi.

Nascido em Xangai em 1936, Mio Pang Fei é hoje uma referência incontornável na história da arte contemporânea da China. Porque a idade não perdoa, longe vão os dias em que pintava telas gigantescas. Mas continua a criar, dedicando-se, sobretudo, à caligrafia.

Foi com surpresa que Mio soube que tinha sido seleccionado pelo Museu de Artes de Macau para representar a RAEM na 56.ª Bienal de Veneza, que decorre entre Maio e Novembro deste ano. Caminho: Aventura de um Artista é o nome da exposição que vai montar no Pavilhão de Macau na cidade italiana.

A mostra, que inclui pinturas e instalações, vai oferecer uma retrospectiva do trabalho de Mio e deverá dividir-se em três partes, explica o artista: uma inspirada nos tempos da Revolução Cultural, para que o público conheça melhor os “anos terríveis” que a China atravessou; outra dedicada à série Margem das Águas; e uma terceira onde serão exibidos trabalhos da série Pós-Caligrafia.

Chegar onde chegou não foi fácil. Pelo meio há uma história de perseguições e perseverança. Uma história que anda de braço dado com a da própria China.

 

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Arte clandestina

No liceu, Mio Pang Fei enveredou pela área das engenharias, mas nos tempos livres o esquiço era outro. Fazer cálculos à volta de materiais de construção era coisa que o “aborrecia muito”, por isso, e depois de ter tido algumas aulas particulares de desenho, acabou por decidir estudar Belas-Artes em Fujian.

Foi na então Faculdade Normal de Fujian que reparou num hiato no ensino da história de arte. Ausente das aulas estava o que foi feito no Ocidente, a partir das últimas décadas do século XIX. Curioso, inconformado, deitou mãos à obra e começou a investigar. Foi nessa incursão insubordinada por livros e revistas que descobriu o impressionismo, o fauvismo e o cubismo, movimentos que influenciariam o seu percurso como artista.

Terminada a licenciatura, Mio ainda trabalhou alguns anos em Fujian, onde chegou a participar na produção de grandes painéis de homenagem ao socialismo, usados em exposições da época. No início dos anos 1960, regressou a Xangai e improvisou um ateliê em casa, onde deu aulas de desenho durante cerca de dois anos. Depois arranjou emprego como desenhador de embalagens de brinquedos, até ao início da Revolução Cultural.

Famílias como a de Mio, proprietária de uma fábrica, sentiram na pele as represálias do novo regime. O artista culpava as políticas desadequadas pela fome que afligia milhares de chineses, e terão sido opiniões deste género, partilhadas com as pessoas erradas, que, a par do seu contexto familiar, levaram a que fosse “punido”. Os castigos, garante, não lhe alteraram as convicções. Nem a paixão pela arte. Se o dia era marcado pela dureza do trabalho fabril forçado, à noite fechava as cortinas de casa e desenhava em segredo. A sua arte não era bem vista na China da época e acabou por destruir algumas das obras que produziu nessa altura.

Foi no clima restritivo da Revolução Cultural que Mio começou a estudar caligrafia e pintura chinesas, procurando formas de incorporar ideias do mundo ocidental na arte tradicional da China. Um longo trabalho de investigação que culminaria na concepção do que é hoje conhecido como neo-orientalismo, uma abordagem artística que visa reconstruir uma estética oriental e marca de forma única a obra de Mio Pang Fei.

 

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Fuga para Macau

Na década de 1980, determinado em pegar na família e abandonar a China, Mio tentou obter um visto de estudante para os Estados Unidos, mas o pedido foi recusado devido à sua idade. Tentou também emigrar para Hong Kong, onde a mulher tinha familiares, mas sem sucesso. Foi então que Macau, onde morava um irmão, surgiu no horizonte.

Chegou a Macau no final de 1982. Sem grandes expectativas. No bolso, recorda, trazia apenas 100 dólares de Hong Kong. Na mente, a imagem pré-concebida de uma cidade vincada pelo jogo e mergulhada numa situação económica pouco favorável.

A primeira impressão não foi a melhor, confessa: “um lugar antiquado”, com pessoas de mentalidade “pouco aberta”, “relutantes em aceitar novas ideias vindas de fora”. Por outro lado, não foi fácil encontrar emprego devido à idade e ao facto de não dominar nem o cantonês nem o português. Valeu-lhe um contacto de Hong Kong que lhe arranjou trabalho como desenhador em projectos de hotelaria para o Interior da China. Mas não demoraria muito até que a arte voltasse a cruzar-se no seu caminho.

 

A primeira exposição

Um dia, por acaso, mostrou fotografias de algumas das suas obras a uma pessoa que ficou tão impressionada com a sua qualidade que lhe sugeriu que fizesse uma exposição em Macau. Mio ainda respondeu que “não tinha dinheiro” para isso, mas foi-lhe garantido apoio e, em Dezembro de 1985, acabou por conseguir expor no antigo Museu Luís de Camões, em conjunto com a mulher, Un Chi Iam, também ela pintora.

Bem-disposto no olhar que deita ao passado, Mio ainda se lembra de quando estava em casa a preparar as pinturas abstractas para essa exposição e alguém lhe disse que era melhor fazer algo que agradasse mais ao público chinês, como “flores” ou “peixes” ou símbolos de “boa sorte”. Ignorou o conselho.

Terminou os quadros na própria manhã do dia da inauguração. Mas, mesmo com “o óleo ainda por secar”, a mostra foi um sucesso. Pediram-lhe que fixasse preços para os seus quadros, mas esta era uma prática a que não estava habituado e, para que ninguém comprasse as obras, optou por colocar preços bastante acima do que lhe tinham recomendado. O truque saiu-lhe furado: foram muitos os compradores. A sorte de Mio estava finalmente a mudar.

 

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A arte de ser feliz

Depois da exposição, visitada por vários dirigentes locais, foi-lhe dada a oportunidade de integrar uma delegação e viajar meio ano pela Europa, para ver ao vivo as obras de arte que há tanto tempo esmiuçara à distância, às escondidas. Depois, em 1986, ele e um grupo de artistas fundaram o grupo Espaço de Arte do Albergue, que desempenhou “um papel muito activo” na promoção do desenvolvimento local das artes. Desde então, admite, Macau mudou. Hoje, nota, as pessoas “estão mais abertas ao que vem de fora”, há mais jovens a participar em actividades artísticas e há também “mais interessados” em arte moderna.

Mio teve uma longa carreira como pintor profissional, investigador e educador. Foi docente na Academia de Artes Visuais de Macau, antecessora da actual Escola Superior de Artes do Instituto Politécnico de Macau. Deu também aulas na Universidade de Artes de Nanjing, no Colégio de Belas-Artes da Universidade de Xangai e ainda na Universidade de Wolverhampton, no Reino Unido.

Mio tem peças integradas em várias colecções espalhadas pelo mundo, foi galardoado com diversos prémios e, em 1999, o Governo de Macau atribuiu-lhe a Medalha de Mérito Cultural. São dezenas as exposições em que já participou, em Macau, no Interior da China, ou em países como Singapura, Malásia, Japão, Austrália, Portugal e Bélgica.

Recentemente, a sua história foi registada pela lente do realizador português Pedro Cardeira, no documentário Mio Pang Fei. No cinema como ao vivo, em casa, frente a uma chávena de chá, vê-se que a arte é o ar que respira.

Pintar, explica, fá-lo sentir-se “feliz”, ainda que por vezes o processo de criação seja “doloroso”. No mundo, pouco mais há que lhe interesse, diz. Já nos tempos da faculdade, conta, entre risos, preferia ir virando a camisa do avesso a perder tempo a lavar a roupa. Ainda hoje gosta de viver “uma vida simples”, “longe de sarilhos”.

Brinca que não sabe tomar conta de si próprio e é com um brilhozinho nos olhos, espelho de gratidão, que elogia a dedicação da mulher a cuidar da família durante todos estes anos, sacrificando a sua própria carreira artística para que Mio se concentrasse na dele. Mio transpira arte, sim. Mas, aqui e ali, deixa perceber também que a arte não é a sua única paixão.