Filatelia | Macau, selo a selo

São pedaços de identidade com uma polegada e meia que podem valer milhões. Encerram um sem fim de história e de histórias e são um dos melhores cartões de visita para quem quer saber mais sobre a arte, a arquitectura, as tradições ou as idiossincrasias culturais de um povo, de um país, de um território. Os selos emitidos pelos Correios de Macau são dos mais procurados do continente asiático e há quem tenha dedicado milhares de horas e milhões de patacas a estudá-los e a coleccioná-los. A MACAU aventurou-se no delicado mundo da filatelia

 

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Texto Marco Carvalho/TDM | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Um selo habita as primeiras memórias de Manuel José da Rosa. O primeiro selo do coleccionador macaense pode ter sido uma estampilha evocando o agonizante reinado de Carlos Bragança Sabóia Bourbon e Saxe-Coburgo-Gotha, um exemplar da série “Ceres” ou qualquer outro. Aos 70 e poucos anos, o passado é para Manuel José da Rosa um lugar distante, mas a filatelia permanece para o antigo funcionário judicial uma paixão sempre presente, ainda que enraizada numa infância já longínqua. Um avô materno, que cuidava dos selos com a mesma delicadeza com que se afagam borboletas, foi quem o introduziu no fascinante mundo dos selos, dos envelopes de primeiro dia, das pagelas e das vinhetas postais. “Desde pequeno que a minha vida se cruza com selos. Ia a casa do meu avô, brincava, dava uma vista de olhos na colecção que ele tinha. De vez em quando, o meu avô dava-me um selo explicava-me o que era e como podia ser valioso”, recorda.

O coleccionador está longe de ser caso único. O primeiro amor nunca se esquece e Io Ho Kuong mantém há mais de meio século a chama da filatelia acesa. Nascido no Camboja em 1946, o presidente em exercício do Clube Filatélico de Macau escapou à perseguição da comunidade chinesa no seu país, viveu o auge da Revolução Cultural na República Popular da China, fez amigos, perdeu amigos, mas o fascínio que desde cedo nutriu pelos selos manteve-se intacto. “Colecciono selos há mais de 50 anos. Os primeiros exemplares da minha colecção datam de quando eu frequentava o ensino secundário em Phnom Penh.”

Manuel José da Rosa e Io Hong Kuong tratam por ‘tu’ os selos de Macau, conhecem-lhes a história, os segredos e o toque. Derby Lau afina pelo mesmo diapasão. A directora dos Serviços de Correios de Macau vê os selos como impressões digitais da história, da cultura e das tradições de um lugar. “Uma leitura atenta dos selos permite ler a história não apenas dos Correios, como entidade emissora, mas também a própria história de Macau”, defende. Carlos Roldão Lopes, antecessor de Derby Lau nos Correios, concorda: “Os selos são, por excelência, um veículo de promoção de Macau por todo o mundo. São dos melhores embaixadores turísticos que um território com a riqueza cultural de Macau pode ter.”

 

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Retalhos reinventados de identidade

Aromáticos, em braile, com ouro incrustado, em porcelana, a três dimensões ou inteiramente em seda. São muitas as inovações ao longo de mais de um século e meio de história. A estampilha postal foi obrigada a reinventar-se, para não perder lugar face aos novos métodos de comunicação. O recurso a novos materiais e novas tecnologias é hoje uma estratégia a que os Correios de todo o mundo recorrem com frequência, com o objectivo único de valorizar o selo como produto filatélico. A entidade emissora de Macau não é excepção. Há um ano, no dia em que sopraram 130 velas, os Correios da RAEM assinalaram a efeméride com o lançamento de um selo especial: “Emitimos um bloco comemorativo impresso em seda pura italiana, que é um material mais caro. Cada selo faz-se acompanhar por um certificado do impressor. Esta emissão, apesar de ter um preço mais alto que o habitual, fez grande sucesso. Esgotou-se em menos de um mês”, aponta Derby Lau.

Há em Macau quem tenha investido milhares de horas e milhões de patacas na aquisição, no estudo e na catalogação dos selos emitidos ao longo dos últimos 130 anos pelos Correios. “Tenho praticamente todos os selos de Macau. O que me falta são as cartas, com os tais selos circulados. Isto é que é difícil ter todas, porque são objectos únicos. Ainda consegui adquirir umas duas ou três”, refere Manuel José da Rosa.

O macaense é um dos mais reputados coleccionadores privados da RAEM. Secretário do Clube Filatélico de Macau e proprietário de um espaço comercial dedicado à filatelia e à numismática, Manuel José da Rosa herdou do avô materno o gosto. Dono de uma livraria, Thompson Lou foi durante a primeira metade do século XX um dos principais entusiastas do estudo filatélico no território e um dos maiores embaixadores dos selos de Macau no mundo. “O meu avô mandou muitas, muitas cartas para o exterior, para muitos comerciantes e coleccionadores estrangeiros. Enviou cartas para todo o mundo: para a América, Europa, para Portugal. Hoje em dia é possível encontrar à venda em leilões muitos envelopes e muitas peças filatélicas criadas pelo meu avô. Algumas eram cartas a solicitar selos, mas outras eram encomendadas por coleccionadores estrangeiros”, explica Manuel José. Quando Thompson Lou se começou a notabilizar nos meios filatélicos locais (não apenas a enviar selos de Macau para o mundo, mas também a adquirir selos de Portugal e de outros países, que depois vendia a entusiastas como Pedro José Lobo), os selos do território já eram um marca, ainda que limitada, de identidade quase há meio século.

A história dos selos de Macau teve início com a emissão, a 1 de Março de 1884, das primeiras estampilhas com a franquia de Macau. Produzidos em Lisboa, com motivos comuns a todos os territórios então administrados por Portugal, a sua concepção esteve sob a alçada das autoridades de Lisboa até ao início dos anos 1980. Foi necessário aguardar quase cem anos para que os selos circulados no território fossem concebidos e emitidos pelos Correios de Macau, com cunho e identidade própria. “Temos o nosso próprio design, temas e os nossos próprios motivos, concebidos por artistas e criadores de Macau desde os anos 1980”, esclarece Derby Lau.

Produzidos em Portugal com referências esporádicas a Macau, os selos que até então circulavam não reflectiam a variedade sociológica e a riqueza patrimonial da região. “Se formos olhar para todas as séries publicadas a partir da década de 1980, podemos compreender aquilo que é Macau através dos selos. Os selos não abordam apenas as questões sociais e culturais, mas são também um bom guia para o entendimento da arquitectura e do património. Os selos de Macau das três últimas décadas cobrem perfeitamente essas áreas: sociológica e os valores patrimoniais”, defende Carlos Roldão Lopes.

A emissão de selos com motivos próprios ajudou a dotar o Estatuto Orgânico, aprovado pela Assembleia da República Portuguesa em 1976, de uma maior densidade, ao facultar o território com uma maior autonomia não apenas a nível político, mas também a título filatélico. Os coleccionadores e os entusiastas locais acolheram a mudança de braços abertos. Io Ho Kuong acredita que os selos se tornaram mais interessantes aos olhos dos filatelistas. “Os elos são mais coloridos e os residentes de Macau deram por bem-vindas essas mudanças, porque os selos começaram a exibir cenas e monumentos de Macau, assim como algumas características culturais. É por isso que se tornaram tão populares”, considera o presidente do Clube Filatélico.

 

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Da República Portuguesa à República Popular

No dia 19 de Maio de 1987, na sequência da assinatura da Declaração Conjunta entre Portugal e a República Popular da China, um selo comemorativo do Festival dos Barco-dragão exibiu pela primeira vez os caracteres chineses relativos ao nome de Macau. As alterações mais significativas, no entanto, registaram-se apenas em 1999. A série “Macau Retrospectiva”, emitida a 19 de Dezembro de 1999 e concebida pelo arquitecto Carlos Marreiros, foi a última a ostentar a designação “Macau, República Portuguesa”. “Foi com muito prazer que aceitei o convite para fazer a última emissão filatélica de Macau sob administração portuguesa. O tema era muito interessante, difícil de abordar, mas aliciante”, recorda Carlos Marreiros. “Escolhi quatro temas que englobassem este abraço de culturas, essa forma de construção entre os chineses que já estavam em Macau e os portugueses que aqui chegaram”, sintetiza o arquitecto e artista plástico.

Um dia depois, a 20 de Dezembro de 1999, vê a luz do dia a primeira emissão relativa à nova realidade político-administrativa, com a designação “Macau, China”. A emissão foi concebida por Ren Guoen e por Yang Wengqing, artistas plásticos do Interior da China e bateu todos os recordes de venda. “Tivemos filas de mais de um quilómetro de pessoas que esperavam até um ou dois dias pela sua vez. A emissão também era limitada, embora com valores altíssimos comparativamente com aquilo que agora se produz. Havia compradores que se prestavam a impulsos especuladores, porque compravam a seis patacas e, dois minutos depois, vendiam-nos a 60”, recorda o então director dos Correios, Carlos Roldão Lopes.

A demanda por selos de Macau disparou com a aproximação à data de transferência, mas nos últimos anos a tiragem das emissões produzidas pelos Correios estabilizou e ronda actualmente os 200 mil exemplares por cada nova série. Motivos como o Ano Novo Lunar ou alusivos à tradição chinesa são habitualmente os mais vendidos. A emissão do Ano da Cabra foi lançada a 5 de Janeiro e até ao final do ano a Direcção dos Serviços de Correios deverá colocar em circulação mais de uma dúzia de novos selos.

Os selos produzidos pelos Correios nem sempre são quadrados ou rectangulares. Entre os selos mais originais estão os circulares, hexagonais ou os debruados a ouro. Tais emissões suscitam junto de coleccionadores e investidores um interesse particular e correspondem a uma aposta com propósitos bem definidos por parte da própria Direcção de Serviços de Correios. “De vez em quando tiramos uns truques da cartola: produzimos selos em diferentes formatos, com o recurso a diferentes materiais e tecnologias e em quantidades mais diminutas”, confidencia Derby Lau. “Em 2010 emitimos um selo relativo à Exposição Universal de Xangai. Da série fazia parte um bloco comemorativo que de forma propositada imprimimos de forma irregular, com quatro partes distintas. A peça filatélica é pouco habitual, mas as pessoas gostam e suscita muita procura junto dos coleccionadores.”

As emissões de selos e de produtos filatélicos são responsáveis por uma fatia significativa do orçamento dos Correios. “Se tivermos em conta as receitas geradas apenas pelo sector postal durante o ano de 2013, estas equivalem a 33 por cento. Se abordarmos esta questão da perspectiva das receitas gerais dos Correios de Macau, então a filatelia representa cerca de 17 por cento do total das receitas geradas”, remata Derby Lau.

 

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Colecções que valem ouro

Se para a entidade emissora a filatelia é uma fonte de receitas importante, para os coleccionadores uma colectânea bem estruturada pode valer milhões. Manuel José da Rosa já perdeu a conta aos selos que tem no seu acervo, mas sabe de cor o ano, as características e o contexto em que surgiram as peças que lhe fazem falta. “Uma das lacunas da minha colecção é um selo bastante raro. Segundo os registos dos coleccionadores, assim como os registos dos próprios Correios devem existir para uns 56 selos, no máximo. São duas folhas, cada uma com 28 selos. Acho que é o selo mais raro de Macau”, admite o coleccionador macaense.

Os leilões e as exposições filatélicas são os principais pontos de encontro dos entusiastas a nível internacional e a participação em mostras e exibições já rendeu a Manuel José da Rosa várias distinções.

Os acervos de Manuel José da Rosa e de Io Hong Kuong são valiosos, mas não fazem sombra à colecção da própria Direcção de Serviços de Correios. Exibida a título parcial no Museu das Comunicações, parte substancial do acervo foi adquirida na década de 1980 a José Correia Nunes, um médico português que viveu em Macau durante mais de três décadas.

Em 2007, uma delegação dos Correios de Macau, então dirigidos por Carlos Roldão Lopes, rumou aos Estados Unidos com o objectivo de adquirir aquela que era até então tida como a mais valiosa e mais completa colecção de selos de Macau. O acervo, angariado ao longo de décadas por Frederic R. Mayer, foi colocado à venda após a morte do coleccionador. “Os herdeiros queriam três milhões de dólares e nós oferecemos 2,5 milhões, mas não se chegou a nenhum acordo e eles acabaram por não vender a colecção completa. Foi depois sendo vendida de forma segmentada, o que rendeu mais do que três milhões de dólares”, aponta Carlos Roldão Lopes.

A colecção de Frederic R. Mayer era, até a sua morte, uma das mais exaustivas do planeta, cobrindo a história postal de Macau desde 1796 a 1990. O acervo incluía selos, envelopes circulados e outros objectos postais, cobrindo também o período anterior à entrada em circulação dos primeiros selos de Macau. A colecção continha objectos postais e peças filatélicas de companhias privadas de navegação, do chamado Correio Marítimo, de serviços de Correio privado e do Correio das entidades britânicas que operavam no Sul da China. Havia ainda conteúdos relativos à história filatélica de Macau, com quase todas as peças colocadas a circular pelos Correios de Macau entre 1884 e 1990.

Apesar do valor intrínseco dos selos e das fabulosas quantias pagas por objectos postais raros, a filatelia é uma arte em declínio. Na era do email e da comunicação instantânea parecem longínquos os dias em que a carta era o grande meio de comunicação. Da troca de correspondência nasceu o hábito de coleccionar, estudar e investigar os selos postais. A prática conheceu um enorme sucesso durante décadas a fio, mas num mundo cada vez mais globalizado vem perdendo pontual e incontornavelmente espaço. “Hoje a filatelia já não é muito popular. Não são muitos os jovens que queiram fazer parte da nossa associação porque agora não faltam formas de passar o tempo. O mundo da Internet está cheio de atractivos que são bem mais aliciantes que os selos”, lamenta o presidente do Clube Filatélico de Macau. “Os selos são um tanto ou quanto aborrecidos. É preciso ter método e paciência para coleccionar. Ainda assim, temos de nos continuar a esforçar para atrair sangue novo ao Clube Filatélico, mas esta não é uma tarefa fácil”, admite Io Ho Kuong.

 

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