Cuju, o primo direito mais antigo do futebol

Significa literalmente "chutar a bola" e é um antigo jogo de futebol com semelhanças ao futebol actual. O cuju foi reconhecido pela FIFA como um dos principais precursores do futebol moderno. Registos literários e artísticos da Dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.) comprovam que afinal o berço do desporto-rei está na China

jogador de cuju

 

Texto e Fotos José Simões Morais

 

Viajando pelo Norte da província de Shandong chegámos a Linzi, capital do Reino Qi durante 800 anos e onde ergue-se um templo dedicado a Jiang Taigong, a quem fora oferecido este reino pelos serviços prestados aos primeiros reis da dinastia Zhou. Aí, estranhamente, também encontrámos o Museu do Futebol.

Na China, o jogo de futebol como hoje o conhecemos é recente e só em 1994 foi formada a Liga Chinesa de Futebol Profissional, aparecendo dez anos depois a Super Liga. No entanto, o cuju (蹴鞠), a forma mais antigo do desporto-rei, já aí reinava muito antes disso.

Nos anos 1970, muitos países reclamavam ser o berço do futebol e a Inglaterra proclamou-se o país onde o desporto nasceu. Ainda assim, a Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA) achou necessário criar um grupo de investigação para recolher informações e analisar registos históricos dos locais onde o futebol ter-se-ia originado. Em Julho de 2004, os 36 investigadores envolvidos nesta missão realizaram uma votação com base nas suas descobertas e, por unanimidade, declararam Linzi como o berço do desporto-rei.

Na Cerimónia de Abertura do Campeonato Asiático de Futebol em Pequim, em Julho de 2004, altura que também se realizava na capital chinesa a Terceira Exposição de Futebol na China, o presidente da FIFA, Joseph Blatter, anunciou oficialmente que o jogo de futebol tal como conhecemos hoje tem origens no cuju, prática desportiva da China antiga. Ainda no mesmo ano, na comemoração dos 100 anos da FIFA, Blatter reconheceu ter sido na China, mais propriamente em Linzi, pertencente a Zibo, actual província de Shandong, que se iniciou o jogo com bola usando os pés.

 

cuju dinastia Tang

 

Origem do cuju

Há 4000 anos as pessoas utilizavam bolas de pedra como armas de caça que foram evoluindo até se tornarem num equipamento diário de diversão. Três dessas bolas, encontradas num túmulo em Banpo da dinastia Shang (1600-1046 a.C.), são a prova de que o jogo com bola era já nessa altura praticado. No final do Período Primavera e Outono, um desporto com regulamentos claros nasceu em Linzi e foi criado para a preparação física e estratégica do exército do Reino Qi. Conhecido por cuju, está descrito em dois antigos livros de história, que registaram os seus primórdios. Em Estratégia dos Reinos Combatentes – Reino Qi, Liu Qian refere ser Linzi uma região rica, onde os seus habitantes gostavam de tocar instrumentos musicais e de praticar ‘taju’. Este é um dos outros nomes pelo qual o cuju é conhecido – outras forma incluem, por exemplo, cuqiu, cuyuan, zhuqiu e tiyuan. Sima Qian, na obra Memórias Históricas (Shi Ji) escritas durante a Dinastia Han do Oeste, refere-se expressamente ao jogo cuju, existente já no Reino Qi, na capital Linzi.

Esses registos apontam para que cuju tenha aparecido na China em 685 a.C., quando Guan Zhong, o primeiro-ministro do Duque Huan do Reino Qi, pretendia dotar o seu reino com uma poderosa força militar. Por isso, agrupou as pessoas de acordo com apetências específicas para o desempenho de ofícios. Nos tempos de paz, as diferentes equipas trabalhavam na terra e preparavam-se militarmente através da prática intensa do cuju. Com regras estabelecidas, as equipas jogavam com uma bola, pontapeando-a e assim os caracteres referentes à Cu (蹴), usar os pés para jogar, e Ju (鞠), bola feita de couro, foram combinados dando origem ao termo cuju. Até à Dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.) o jogo tinha grandes parecenças com o futebol moderno.

Quando Liu Bang fundou a Dinastia Han do Oeste e se tornou o Imperador Gao Zu (206-195 a.C.) fez a sua capital em Chang’an, hoje Xi’an na província de Shaanxi. Proveniente de uma família de Xuzhou, na actual província de Jiangsu, o imperador pediu aos pais que se mudassem para a capital, para viverem num luxuoso palácio dentro da corte. Contra as suas expectativas, o pai não se sentia feliz, pois estava habituado a viver com pessoas simples, que gostavam de lutas de galos e de jogar cuju. O imperador ordenou então a construção de uma nova cidade, recriando aquela que o pai e mandando vir os velhos amigos dele, voltando assim a poder jogar cuju, segundo a história escrita por Ge Hong na obra Registos Xijing, da Dinastia Han.

 

Xieshu de baixo 1

 

Treino militar e diversão para todos

A prática tornou-se ainda mais popular durante a Dinastia Han do Oeste, porque tanto possibilitava um intenso treino militar aos soldados como servia também de entretenimento para membros da família real e comuns mortais. A mestria dos jogadores no pontapear e controlar a bola ganhou grande pujança e o jogo tornou-se cada vez mais rotineiro, com várias equipas a entrar em campo. Daí evoluiu para um desporto de alta competição, regido por regulamentos profissionais muito semelhantes aos do futebol de hoje.

Jogado num estádio próximo ao Palácio Imperial, o imperador tomava-o tão a sério como a inspecção do seu exército. Os jogadores eram divididos em diferentes grupos e competiam em confrontação directa, como numa batalha. No livro Ju Cheng Ming da Dinastia Han do Leste, Li You descreveu o necessário para um jogo de cuju: “Bolas redondas e paredes quadradas como o yin e yang; balizas em forma de lua opostas uma à outra; cada lado tem seis, igual em número; selecciona os capitães e aponta o árbitro; baseado em imutáveis regulamentos; não considera família e amigos; não satisfaz a parcialidade; mantém justiça e paz. Se tudo isto é necessário para regular o jogo, quanto mais é preciso para direccionar a nossa vida.”

Mais tarde, o Imperador Wu Di (140-87 a.C.) reuniu-se na capital Chang’an com uma assembleia de mestres de cuju de todas as partes da China, tendo aí se realizado um grande jogo. Com o rápido desenvolvimento da economia durante a Dinastia Han, passou a haver mais espaço para a diversão e o jogo de cuju passou a ser o desporto de eleição da corte e do povo.

Com golos ou sem eles, a prática tinha na essência a qualidade de controlar a bola de couro com os pés e o corpo, excepto com os braços e mãos. Podia ser jogado por uma pessoa, que dava uns toques na bola, e quando jogado por duas, ou mais, passavam a bola entre si, mas sem formarem equipas. Essa técnica de controlar a bola era designada por xieshu e estava dividida em três partes: xieshu de cima (controlo da bola pelos ombros, peito, costas e cabeça), xieshu médio (joelho, cintura e barriga), e xieshu baixo (perna, peito do pé, tornozelo, pontas do pé e calcanhar). Diferentes combinações dos três xieshu podiam ser temporariamente utilizados para dar resposta aos ressaltos de bola e fazê-la dirigir para continuar o jogo.

 

Xieshu de cima 2

 

O retorno da ‘febre’

Com a China a regressar a um período de guerras, do final da Dinastia Han até ao século VI, o cuju serviu para treino militar, mas já sem os grandes desafios de competição no estádio. Esses nunca mais se fizeram e os espectáculos de controlar a bola passaram a ser realizados pontualmente em festivais, com talentosos jogadores a demonstrar as suas habilidades no domínio da bola.

Na Dinastia Tang o jogo regressou em força e evoluiu no sentido do espectáculo. Deixava de haver duas balizas e a bola ganhou outra qualidade, sendo dividida em oito partes e no seu interior havia uma tripa que era insuflada com ar, ficando assim muito mais leve. As mulheres também começaram a praticá-lo. Bem aceite pela sociedade, tornou-se numa moda, sendo o Festival do Qingming um dia especial para este jogo.

Não havia confronto directo entre as equipas, já que a única baliza – feita de dois paus de bambu de 6,7 metros de altura, separados por dois metros entre si e com um aro vertical chamado de fengliuyan – era agora colocada no meio do campo. Quando a bola cruzava o aro central, era assinalado golo. Noutras ocasiões, o jogo era disputado sem a meta de se marcar golos. O baida cuju, que surgiu na dinastia Tang e continuou pela Song, focava-se na habilidade de pontapear e controlar a bola. Quem se distinguisse em dar os melhores toques era aplaudido efusivamente. As equipas, formadas por entre um a dez indivíduos, usavam apenas a bola para os seus ‘espectáculos’.

Na Dinastia Tang, a prática estendeu-se à Coreia e ao Japão, e na Dinastia Song, o cuju atingiu o seu apogeu. A bola feita de couro estava dividida em 12 partes, tomando uma forma muito mais redonda. Qingyuanmiao Daozhenjun era o ‘deus’ do cuju, respeitado e colocado nas casas dos amantes da modalidade. Os praticantes faziam até cerimónias de sacrifício e queimavam incenso ao deus, para mostrar o seu respeito antes de entrarem no recinto de jogo. Ainda assim, nem todos eram talentosos. Nos registos de Cuju Tu Pu, da Dinastia Song, lê-se que “é difícil encontrar um excelente jogador de cuju e entre mil, apenas aparecem dois”.

Para alcançar o sucesso, os jogadores deveriam aprender com bons mestres e darem tudo de si para atingirem a perfeição. Na comunidade Qi Yun, era essencial aprender todos os passos da cerimónia de respeito e um jogador que quisesse entrar para o grupo deveria oferecer um banquete e prendas ao mestre. Com as regras já bem definidas e de forma madura, a competição era feita a nível nacional e passou a ter uma matriz comercial. As crianças também jogavam o cuju como forma de divertimento, tentando imitar habilidosos os toques que viam nas feiras.

Na Dinastia Song, muitos foram os imperadores amantes do cuju, mas nenhum como Hui Zong (1100-1125), que teve dois primeiros-ministros mestres deste desporto. Na Dinastia Song do Sul, havia já muitas associações de cuju, com a dos Jogadores Profissionais de Cuju comparável às actuais associações de futebol, apesar da modalidade ter uma forte vertente recreativa e cultural e muito pouco de competição.

O declínio do cuju ocorreu com a chegada da dinastia mongol Yuan (1271-1368), mais afeita ao arco e flecha, tal como ao pólo, que passaram a ser os desportos favoritos. O cuju continuou aos poucos a perder adeptos até eclipsar-se do quotidiano chinês nos finais da Dinastia Qing, por ser meramente uma forma de entretimento e não um jogo de competição, o que levou ao desinteresse das pessoas.

O jogo do cuju atingiu uma larga influência na China por mais de dois milénios, penetrando em muitos aspectos da vida cultural da sociedade da altura, actuando como estímulo ao desenvolvimento da literatura, desporto, música, sendo retransmitida aos vizinhos da Coreia e Japão. Com a sua expansão para fora da China, o cuju tornou-se gradualmente o mais popular dos desportos no mundo. “O futebol originou-se na China e daí passou para o Egipto. Depois atingiu a Grécia, Roma, França e finalmente chegou ao Reino Unido”, afirma, sem dúvidas, Joseph Blatter, presidente da FIFA.

 

Museu do Futebol em Linzi