Sandra Battaglia | Dança, um apelo maior

Fundou a primeira escola de dança quando estava no liceu em Lisboa. A bailarina e coreógrafa Sandra Battaglia continua a sonhar e a criar após um percurso de mais de 25 anos. E agora com Macau nos planos, depois de ter aceitado o desafio de ser a directora artística do “Desfile por Macau, Cidade Latina” em 2011

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Texto Fátima Valente | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

Dia Mundial da Dança, Oeiras, 29 de Abril de 2009. Vestido vermelho no corpo, nas mãos uns “sapatos lindos de verniz” que num ímpeto de liberdade não consegue calçar. É Sandra Battaglia no palco, prestes a receber a homenagem por “um dos percursos significativos da Dança em Portugal”. Dança sempre descalça? “Danço. [risos] Há um lado em mim que as pessoas não conhecem bem, porque me vêem calma, tranquila, mas tenho um lado selvagem, que é muito livre. Só a Isadora Duncan (bailarina norte-americana, 1877–1927) fazia estas loucuras de andar com sapatos na mão e panos por todo o lado”, assume, com um brilho nos olhos.

O momento impulsivo ajuda a descrever a personalidade da artista que é muitos nomes: “Na verdade chamo-me Ana Alexandra. Em termos profissionais conhecem-me por Sandra Battaglia, mas quando comecei a vir para Macau tive de escrever conforme o registo de nascimento e começaram a chamar-me Alexandra Battaglia”. Só que entretanto o nome Sandra acabou por se impor: “É mais curto, funciona melhor. E, às vezes, ainda uso o ‘AlSandra’, numa tentativa de juntar os dois”, adianta.  Complexa, esta batalha da identidade tem origem num terramoto, em Itália, no século XIX, que apanha dois irmãos napolitanos de férias em Lisboa. Com a família perdida no desastre, decidem ficar em Portugal, criam laços de sangue e assim inscrevem nos registos lisboetas o apelido Battaglia. No caso da bailarina, o sobrenome é herdado da avó materna e, segundo conta, “Sandra parece ser um diminutivo de Alexandra em italiano”.

 

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Verdes anos

Sandra Battaglia nasceu em Lisboa, filha de uma professora e de um militar, curiosamente membro da Liga da Multissecular Amizade Portugal China e, por isso, conhecedor de Macau. Com uma “infância privilegiada, em Lisboa, e na Arrábida”, Sandra está em contacto com a natureza e com as artes quase desde o berço. “Acho que nunca quis ser bailarina. Dancei sempre, por isso costumo dizer que a dança é que me escolheu. Eu queria ser bióloga marinha, talvez por causa dos oceanos e dos animais, mas a dança foi um apelo maior”, recorda.

Por volta dos quatro anos começa a ter aulas de dança com “a mestra” Margarida de Abreu. Aquela que descreve como uma “segunda mãe” acompanhou-a durante quase 30 anos, desde a estreia, ainda criança, na ópera Aida, no Teatro Nacional de São Carlos. Aos 15 anos, quis muito ser bailarina clássica, mas “não era esguia e magrinha” o suficiente. Na altura custou-lhe. Agora, olhando para trás, vê nesse momento “uma oportunidade” para seguir outros caminhos.

 

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O poder do impulso 

A dança foi companheira dos livros até que a vontade de fazer carreira como bailarina se impôs aos 18 anos. “Tive uma reunião familiar e disse: ‘Vou para o Conservatório’. Foi um escândalo, porque, embora a arte fizesse parte da nossa educação, a dança era um complemento, não era uma escolha profissional”, recorda.

Na capital portuguesa viviam-se os anos 1980. Pela televisão chegava o frenesim contagiante do Fama, a série musical norte-americana que fascinou gerações. É então que, imbuída por toda aquela “energia e alegria”, a jovem Sandra irrompe pelo conselho directivo do Liceu Rainha Dona Leonor, em Lisboa, e num “impulso” comunica o desejo de abrir uma escola de dança. “Eu tinha destas coisas – era muito mais corajosa do que agora – e durante dois anos foi o que fiz: pus toda a gente a dançar; havia dança nos átrios, nos corredores, em todo o lado do liceu”. A experiência acabou por se tornar na maior academia que alguma vez fundou na vida: “Eram talvez uns 200 alunos, porque era o liceu inteiro. Não volta a acontecer [risos]”.

 

Trabalhar com comunidades

Abriu “a primeira companhia à séria” – o Círculo de Dança – após o curso na Escola de Dança do Conservatório Nacional. Mais tarde, concluiu uma licenciatura e mestrado na Escola Superior de Dança em Lisboa. “Eu abria escolas e a seguir ia estudar uns três anos, no máximo. E isto de uma forma muito impulsiva, muito intuitiva, já com uma vontade de criar, de ensinar, e de trabalhar com grupos, com comunidades”, descreve. A seguir ao Círculo de Dança mergulha na Escola de Dança de Mafra, um projecto ligado à autarquia e do qual se orgulha por ter levado a expressão do movimento “a todas as escolas do concelho, até às aldeias mais recônditas”.

Em paralelo descobriu a televisão e o cinema, tendo assumido, por exemplo, a direcção de actores no filme Os Canibais, de Manoel de Oliveira. E a vontade de explorar novos caminhos levaram-na também a trabalhar com diversos artistas nacionais e estrangeiros, e a interessar-se por diferentes estilos: clássico, contemporâneo, danças antigas, afro-moderno, danças indianas, flamenco… “Eu andava sempre à procura da dança que me podia satisfazer e complementar como pessoa”, justifica. Foi assim que andou uns tempos “completamente apaixonada” pela cultura asiática, apesar de o contacto com o Oriente só ter acontecido bastante mais tarde, quando o seu destino se cruzou com o do bailarino Pedro Paz, que tinha vivido em Macau. No ano 2000 fundam a Amalgama – Companhia de Dança, um projecto dividido entre o Alentejo – com as residências artísticas no Hotel Convento de São Paulo, para explorar o “corpo e mente em contacto com a natureza” – e Lisboa, na Escola Superior de Medicina Tradicional Chinesa, onde aprofundaram conhecimentos nas metodologias orientais. E é esse conjunto de experiências que Sandra Battaglia quer fomentar em Macau.

 

Dragão e fogo

Quando se lhe pergunta quem é Sandra Battaglia, as palavras que lhe vêm à cabeça são “dragão e fogo”, uma definição confirmada por quem já desenvolveu criações com a artista em Macau. “Trabalhar com a Sandra é muito gratificante. Ela é um turbilhão que precisa de apoio e, às vezes, de um certo travão, mas é uma fonte de inspiração constante”, descreve o fotógrafo António Mil-Homens. A também coreógrafa Stella Ho, por sua vez, elogia-lhe o arrojo: “Ela é uma pessoa muito aberta e defende que a arte é para todos. Eu concordo com essa ideia, mas ela é muito mais arrojada. Sempre que colaboramos, sinto-me muito influenciada por ela”. E Ana Manhão destaca o seu envolvimento pessoal. “Ela vê todos os pormenores e dedica-se a 100 por cento. Ela não desaparece, ela está dentro do projecto, e foi esse o ‘clique’ que tivemos”, conta a responsável da Associação Macau no Coração.

CAIXA

Uma ligação “não racional” 

Pisou a calçada portuguesa de Macau pela primeira vez em 2011, mas o território já faz parte de si. “Há algo que me liga muito a Macau, não se explica, não é racional”, assume. Quase quatro anos volvidos, a pertença ao Oriente é comparada às raízes da Lisboa que a viu nascer: “Não é que custe estar lá, Portugal pertence-nos, está nas nossas veias. Se calhar Macau também. Eu acho que Portugal e Macau são territórios híbridos, muito especiais, são assim uma espécie de territórios de ninguém, de almas navegantes e de diáspora”.

 

 

DESTAQUES

Sandra Battaglia nasceu em Lisboa, filha de uma professora e de um militar, curiosamente membro da Liga da Multissecular Amizade Portugal China e, por isso, conhecedor de Macau

 

“Tive uma reunião familiar e disse: ‘Vou para o Conservatório’. Foi um escândalo, porque, embora a arte fizesse parte da nossa educação, a dança era um complemento, não era uma escolha profissional. Tive de romper com isso e assumir que queria ser bailarina”

 

 

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SEGUNDO TEXTO

 

O sonho de uma escola para todos

 

Uma escola de artes alicerçada na dança é o sonho da bailarina e coreógrafa portuguesa Sandra Battaglia para Macau. Um sonho que tem vindo a ser ajustado e que pode começar com o lançamento de um curso numa instituição local. A artista espera que o projecto ganhe fôlego com os workshops que vai apresentar este mês em Macau

 

T Fátima Valente

F Gonçalo Lobo Pinheiro

 

A semente do projecto da escola de artes foi lançada já lá vão quatro anos, após o primeiro trabalho em Macau, para dirigir o desfile “Parada Latina”, que assinala o aniversário do estabelecimento da RAEM, em Dezembro. A partir daí as energias fluíram e outros projectos agarraram Sandra Battaglia a Macau durante largas temporadas. Um dia do ano passado, o telefone tocou em Portugal. Do outro lado era Ana Manhão, uma amizade travada em Macau no âmbito do UnitYgate, a plataforma de intercâmbio cultural entre o Ocidente e o Oriente, que Sandra Battaglia lançou em conjunto com vários parceiros. “Não esperamos mais! Avança”, disse-lhe a responsável da Associação Macau no Coração. 
Mas o projecto não ganhou logo asas. Entretanto houve ajustes, mais contactos. Nesta nova visita a Macau, a bailarina espera cimentar as bases e definir o formato do projecto de uma escola superior de dança.

“Não se desistiu da ideia, caminhou-se mais devagar; está-se a pensar em como introduzir um curso superior, para que tenha visibilidade e reconhecimento, mas sem abrir propriamente uma estrutura universitária em Macau”, explica. Para a também directora da companhia de dança Amalgama, “o que seria interessante, e está a ser estudado, era abrir um curso ligado à área da dança, numa visão mais holística, tanto ao nível da formação vocacional, como das saídas profissionais, mais técnicas ou coreográficas, ligado a uma universidade em Macau”.

A coreógrafa garante que “há interesse” e contactos com uma instituição de ensino superior em Macau,  mas prefere, para já, não avançar pormenores. A concretizar-se, o curso irá “colmatar lacunas” ao nível da formação superior em dança, defende. Outra possibilidade é criar um curso profissionalizante ligado às áreas performativas em geral ou, especificamente, à dança. “Seria mais ao nível de um espaço: um centro de artes”, descreve, indicando que “a proposta está mais ou menos estudada”, mas “para avançar precisa de um investidor”.

Terceira temporada de workshops

Para manter viva a chama do projecto escola/curso em Macau, a coreógrafa apresenta este mês de Abril em Macau uma nova série de workshops. “A ideia é sensibilizar públicos para esse novo curso, através de blocos intensivos de formação ao longo do ano”, explica.

O convite partiu da Macau no Coração, e desta vez os públicos locais vão poder participar – entre 8 e 12 de Abril – em acções de curta duração, incluindo danças ibéricas, danças tradicionais portuguesas, danças europeias, e danças afro-modernas, ministrados pela coreógrafa e pela também bailarina Joana Silva, ambas da Amalgama. “Há uma aula aberta ainda de dança criativa e de danças tradicionais de roda. É um convite a todas as crianças e à participação dos pais. É um espaço muito aberto e de celebração: acima de tudo para motivar e dar a conhecer o potencial que a dança tem”, resume.