“Il maestro” em Veneza

Os 18 trabalhos de Mio Pang Fei no Pavilhão de Macau na Bienal de Veneza deixaram boa impressão. A participação da RAEM no certame artístico serve também de inspiração para novos projectos dinamizadores do Centro Histórico. Um sonho possível de realizar, segundo o presidente do Instituto Cultural

 

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Texto e Fotos Filipa Queiroz, em Itália

 

“É a quinta participação de Macau, o que representa dez anos de grande colaboração entre mim e o governo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM)”, diz Paolo Baratta, presidente da Bienal de Veneza. “Ano após ano cresce-se, segue-se em frente, fazem-se exposições cada vez mais importantes e este ano, com este grande “maestro” acertaram realmente na muche porque é uma mostra muito muito forte.”

Baratta fala-nos à entrada do pavilhão de Macau, mesmo à porta do Arsenale, palco principal da grande exposição internacional italiana. O Pavilhão de Macau é um dos 44 eventos colaterais da 56.ª edição da Bienal de Veneza deste ano, que abriu ao público no passado dia 9 de Maio. Entre centenas e centenas de obras, os 18 trabalhos de Mio Pang Fei deixam boa impressão a quem os visita. Ana Maria di Paolo por exemplo, crítica de arte italiana, ficou agradavelmente surpreendida com o que viu. “Gostei muito das obras deste artista, são muito emocionantes quer ao nível pictórico quer por exemplo as velas, a luz viva das velas na instalação, têm um impacto muito forte. Vi também uma parte do documentário e fiquei muito feliz”, comenta a especialista que desconhecia qualquer arte feita no território.

Ao lado uma comitiva de cerca de 20 pessoas de Macau brindam ao pintor que em 1982 se radicou em Macau para finalmente (e livremente) desenvolver a arte que o haveria de consagrar.

 

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Caminho e Aventura

Em frente à entrada principal e também ao lado do Pavilhão de Hong Kong, o Pavilhão de Macau na Bienal não parece mais do que um simples edifício de tijolo veneziano visto de fora. Mas lá dentro a história é outra. Logo no átrio o visitante pode ver as duas primeiras instalações de Mio Pang Fei concebidas especialmente para o evento.

A Era Especial II é uma estrutura de madeira com vários objectos pendurados que reportam à Revolução Cultural chinesa. Casacos e calças verdes ao estilo Mao Tse Tung, bilhetes de racionamento, brinquedos e chávenas com o retrato do “Grande Timoneiro” – objectos que reflectem não as necessidades reais mas as necessidades impostas ao povo pelo sistema político vigente.

Ao lado, encostadas à parede, uma série de estacas de madeira pintadas de branco com escritos: Caligrafia (Cultura Ancestral Chinesa).

Subindo as escadas até ao primeiro andar, onde de um lado uma pequena varanda com sombra ajardinada convida a apreciar a beleza do local, dentro do edifício pode ler-se à entrada uma sintética biografia do artista e visitar as três salas da exposição.

Era Especial I é a primeira. Paredes negras de onde sobressaem três quadros e uma projecção de um documentário sobre a Revolução Cultural. Um regresso até à década de 1960 e aos primeiros experimentos secretos de Mio Pang Fei na pintura de estilo ocidental em pastel. Flores, Cépolas e Rosas são os únicos exemplares originais que resistiram ao tempo, ao clima e, claro, à censura. Num ecrã podem ver-se outras digitalmente reconstituídas.

“Fizemos a sala de forma a que as pessoas pudessem ter a sensação de como ele se sentia naquela altura”, explica Cristina Mio, filha do pintor e também artista. “São as imagens e sons do ambiente que se vivia nas ruas e a escuridão onde criava. Durante o dia fazia trabalhos pesados e de noite fechava as cortinas do quarto e entrava no seu mundo artístico”, conta. Madrugada fora o artista praticava a pintura e caligrafia, e revia os estudos de Qiwu Lu (Igualdade das Coisas), The Zhuangzi e Feng Fu (Rapsódia do Vento) do escritor chinês Song Yu.

Em conversa, Mio Pang Fei recorda que a sua geração foi menos afortunada do que as que puderam viver e estudar livremente, recebendo reconhecimento pela sua obra, mas também faz a ressalva: “Algumas das obras mais incríveis foram feitas nas alturas em que a liberdade foi reprimida, a história diz-nos isso. É como se… se o artista não fosse forte o suficiente e insistisse em criar a obra, o ambiente não pudesse levar a melhor.”

A segunda sala do Pavilhão de Macau chama-se Shui Hu Zhuan (The Water Margin), uma homenagem à grande obra homónima da literatura chinesa que descreve a rebelião dos camponeses nos finais da Dinastia Song do Norte há um milhar de anos, e as proezas de 108 homens reunidos no Monte Liang. Homens que se rebelaram contra o governo roubando aos ricos para dar aos pobres, promovendo que a justiça social seria uma espécie de retribuição divina.

Vários blocos de madeira e mãos em papel de prata que parecem pregar aos céus representados por quatro gigantes painéis abstractos em tons de azul e branco representam essa mesma história. Nas paredes seis quadros e bandeiras com escritos em caracteres chineses representam os líderes do grupo, e uma pequena instalação central com uma cadeira que simboliza o lugar do líder principal da marcha, Chao Gai, com diante delas pequenas malgas de arroz e velas à semelhança dos templos.

Uma representação visual carregada de simbolismo cultural, história e tradição. Uma reflexão sobre a fé na humanidade e o sentido da vida enriquecido pela linguagem do abstraccionismo e cultura oriental.

Na terceira e última sala, O Caminho do Neo-Orientalismo, a corrente criada pelo artista, estão dois murais e um ecrã onde é exibido o documentário Mio Pang Fei (2014) de Pedro Cardeira.

A exposição de Mio Pang Fei tem curadoria conjunta do Museu de Arte de Macau (MAM), sob a tutela do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM) e do Instituto Cultural (IC).

 

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Exemplo para Macau

Este ano a Bienal de Veneza celebra 120 anos, tempo durante o qual se firmou como um dos mais prestigiados eventos de arte contemporânea do mundo. Para a edição deste ano a organização convidou 136 artistas influentes provenientes de 53 países, inclusive Xu Bing, Qiu Zhijie, Ji Dachun e Cao Fei da República Popular da China.

Outros 89 países apresentam exposições temáticas nos seus próprios pavilhões nacionais, para além das 44 exposições paralelas apresentadas por regiões e instituições artísticas convidadas expressamente pela organização, tal como Macau.

O MAM, em representação de Macau, foi convidado para participar pela primeira vez na Bienal em 2007. Organizou cinco exposições desde então, apresentando um total de 14 artistas. “Estou muito feliz por haver um pavilhão de Macau e por ver os óptimos trabalhos de Mio Pang Fei aqui. A Bienal é uma plataforma muito grande, muitos críticos, especialistas e público em geral vêm cá, por isso acho que é uma grande oportunidade para mais gente conhecer o nosso artista e a nossa cultura”, diz o presidente do Instituto Cultural de Macau, Guilherme Ung Vai Meng.

O governo levou uma comitiva de representantes e artistas a Itália. O arquitecto João Palla e o pintor José Dores foram alguns deles. “A experiência é fabulosa, primeiro por voltar a uma cidade onde já vivi mas sobretudo por ver Macau representado de uma forma muito forte e muito coerente”, comenta Palla, que estudou durante um ano em Veneza ao abrigo do programa de intercâmbio académico Erasmus. “Para nós é um privilégio porque estamos no mundo da arte e conhecer outros artistas e obras é uma lufada de ar fresco muito grande.”

 

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José Dores, natural de Macau, fez-se acompanhar de dois alunos. “Eu diria que é maravilhoso o governo organizar esta visita para ver estes grandes artistas. Penso que o pessoal de Macau é muito talentoso. Sei que foram apenas oito pessoas a montar esta exposição, é o culminar de uma autêntica missão impossível.”

Em relação a ser artista em Macau também Dores refere que ainda há um longo caminho a percorrer. “Diria que é fácil ser artista em Macau, mas não um artista a sério. A Bienal é muito avançada, por isso trouxe os meus alunos para eles contactarem não só com a exposição mas também com outros museus locais.”

Na comitiva de cerca de duas dezenas de pessoas estavam também a deputada Angela Leong e a directora dos Serviços de Turismo, Helena de Senna Fernandes. “É a minha primeira experiência. Não sou perita nem conhecedora de arte, portanto para mim é uma experiência diferente. O nosso secretário já disse que é preciso haver mais sinergia entre o turismo e a cultura em Macau, por isso para nós é um bom passo tentar perceber como podemos aprender com Veneza para trazer turistas diferentes a Macau”, diz Senna Fernandes.

Ung Vai Meng concorda. “Macau é pobre em recursos naturais mas cultura e história nós temos, por isso há que aproveitar. É um recurso que pode ser uma fonte permanente de desenvolvimento para a nossa sociedade. É um sonho para mim que toda a zona histórica de Macau tenha arte, exposições e performances. E penso que é um sonho possível de realizar.”

Na década de 1980, o actual presidente do Instituto Cultural e também artista fundou o Círculo dos Amigos da Cultura de Macau com Mio Pang Fei e Carlos Marreiros, entre outros. Os três reuniram-se agora em Veneza. “Estou muito feliz e muito comovido porque ele [Mio Pang Fei ] merece. Ele ama Macau como a terra dele e a proposta que faz é um conjunto de vários trabalhos que tem feito nos últimos 20 anos que aqui de forma sintética é apresentado. Está tudo muito bem organizado, por isso tanto a RAEM como os artistas de Macau estão de parabéns”, comenta Marreiros.

Entretanto Mio Pang Fei aproveita os dias seguintes à inauguração para visitar a Exposição Internacional e a Veneza que revisita décadas depois e que lhe faz lembrar a Xangai natal. “Acho que é pelas ruas estreitas. O pai está muito feliz de estar aqui e de ter esta oportunidade de mostrar ao mundo a exposição e o seu trabalho. Várias pessoas da América e da China comentaram comigo que gostaram bastante e um visitante até viu o documentário duas vezes ali sentado”, diz Cristina Mio emocionada.

Caminho e Aventura fica em exibição até ao encerramento da Bienal dia 22 de Novembro deste ano.

 

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