Santo António, Capitão de Macau

Santo António e São João Baptista, Santos Populares, têm em Macau muitos devotos. Se ao milagre atribuído a São João se deve a vitória de Macau sobre os holandeses em 1622, em Santo António se reconhece um Santo merecedor da fé que a comunidade portuguesa de Macau nele deposita, em todas as vertentes que o caracterizam. Embora sem o soldo de outrora a sua procissão curta mas de grande significado continua a assinalar a tradição no seu dia, a 13 de Junho

 

 

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Texto Fernando Sales Lopes*

 

Santo António Militar

O culto a Santo António remonta à chegada dos portugueses a Macau, santo que era já de devoção popular e protector dos navegantes sendo a igreja que lhe é dedicada referida como uma das primeiras a serem construídas em Macau, e foi junto dela que os jesuítas construíram a sua primeira residência nos finais de 1565. Só mais tarde contudo o Santo teria entrado na ala militar. Embora diversos autores, nomeadamente Ljungstedt se refiram ao ano de 1725 como a data em que o santo teria sido alistado em Macau, Manuel Teixeira nota que: “Reza a tradição que Santo António foi alistado como soldado em 1623 ano em que veio de Goa o primeiro presídio militar com o primeiro governador D. Francisco de Mascarenhas (…)[i] ” Contudo a história militar do Santo inicia-se em Portugal durante a Guerra da Restauração (1640-1668) quando os soldados começaram a atribuir-lhe os sucessos militares, o que levou o Regente do reino, D. Pedro II, a determinar em 1668 que assentasse praça, como soldado no Regimento de Infantaria de Lagos “por tão patriótico serviço”, sendo mais tarde promovido a capitão, e a major em 1780. Desde que assentou praça em Lagos a sua vida de “militar” passou por diversos locais de Portugal, Brasil, Espanha e até na China, em Macau, onde, terá sido alistado como soldado raso com direito ao respectivo pré. Em 1783 é promovido a capitão, patente que conservou.

 

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De Soldado a Capitão

Nem sempre o Santo recebeu o seu soldo a tempo e horas pois as contingências do comércio marítimo de que vivia Macau por vezes não proporcionavam excedentes de modo a que o Leal Senado pudesse satisfazer as suas obrigações. Embora o Santo não protestasse, acabaram por ser os moradores de Macau a “obrigarem” o Senado ao pagamento dos atrasados devido às “continuadas infelicidades” que a cidade sofria desde a suspensão do pré. Em 1783 o Santo foi, então, promovido a capitão tendo-lhe sido pagos os soldos em atraso desde 1780, ano em que tinha sido suspenso o pagamento. Teve o Senado da Câmara de Macau a obrigação de comunicar o acontecido a Goa – de quem dependia – e fê-lo por carta de 22 de Dezembro de 1783, que teria curiosa resposta do Governador da Índia, D. Frederico Guilherme de Sousa, a 25 de Abril do ano seguinte:

“(…) aprovo o pio acordo que tomou, com os pareceres do Governador e do Desembargador Juiz Sindicante, de mandar pagar os soldos de soldado ao Glorioso Santo António do tempo que teve de baixa, mas também que devesse assentar Praça de Capitão da Cidade, e que se paguem daqui em diante, os soldos que vencer, e que serão aplicados no culto desse Glorioso Santo Português. Não se devia tomar porém, a deliberação de se lhe assentar Praça de Capitão sem que primeiro não se me desse disso parte, e se esperasse a minha resolução”[ii]

Mesmo com esta “falta de respeito” em relação a Goa, o Santo que a tudo é superior lá ficou promovido a Capitão da Cidade com os seus vencimentos e honrarias, e ao Senado foi desculpada, mais uma vez, esta peculiar e habitual maneira de governo de primeiro fazer e depois comunicar o que estava feito, sem previamente dar contas a quem esperava que elas fossem dadas.

 

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Entrega do Soldo com Pompa e Circunstância

A “Declaração da forma com que foi entregue o soldo a Santo António ao Vigário da sua igreja no dia de véspera da sua Festa” visualiza a solenidade e o respeito com que o acto foi realizado em 1784, um ano após a sua promoção a Capitão:

“Pelas oito horas da manhã do dia doze de Junho, véspera da festa de Santo António, saíram da casa da Câmara do Senado o Vereador mais velho Joaquim Carneiro Machado, o Escrivão da Câmara Jacinto da Fonseca e Silva, e o Tesoureiro Manuel Pereira da Fonseca todos em cadeiras, levando o Tesoureiro uma bolsa de cetim carmesim com suas borlas e cordões dourados. A bolsa com os seguintes dizeres: Soldo de Capitão da Cidade que tem vencido até ao dia treze deste mês o Glorioso S. Santo António e que lhe remete o Nobre Senado.

Chegados à porta da igreja encontrava-se já o Porteiro do Senado com uma salva de prata na mão onde o Tesoureiro colocou a bolsa com o soldo, para que aquele a conduzisse ao Cruzeiro da Igreja onde se encontrava a imagem do Santo, numa credencia com oito velas acesas. Ali o Tesoureiro tirou a bolsa da salva e colocou-a aos pés do Santo, tendo durante algum tempo repicado os sinos.

(…) O Vereador, o Escrivão e o Tesoureiro fizeram orações ao Santo, receberam o recibo e retiraram-se sempre na companhia do Vigário da Igreja.”[iii]

Embora com menos esplendor, com automóvel a substituir as cadeiras, e um envelope encerrando as notas ou o cheque, a cerimónia não se alterou muito no decorrer dos dois séculos que se seguiram. Daquilo que ouvimos de dois ex-presidentes do Leal Senado que exerceram o seu mandato no séc. XX, a maior diferença corresponde à presença, ou ausência, da guarda de honra militar. Essa Guarda de honra permaneceu como parte integrando do pagamento do Soldo até 1974 altura em que foi extinta a Guarnição Militar de Macau. A Guarda formava ao lado da igreja de Santo António, com todos os toques de continência, apresentava armas, e só então os representantes do Leal Senado e o vigário entravam na Igreja Era um cerimonial militar muito antigo, apresentando-se ao Capitão-geral Santo António todas as honras devidas.

O soldo foi sendo actualizado ao longo do tempo. Em 1783 era de 240 taéis. Nos anos 50 do século passado de duas mil patacas. Em 1967 passou para seis mil, e o soldo entregue em 1996 aponta para as 45 mil patacas, metade das quais revertia a favor do “Pão dos Pobres” e a outra metade para gastos paroquiais. Em 1999 foi a última vez que, o então, Leal Senado, pagou o soldo devido a Santo António.

 

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Santo protector e milagreiro

Doutor da Igreja, Santo António de Lisboa tornou-se um Santo Popular amado pelo povo. Contudo em Macau não são conhecidas referências de que tenha sido festejado alguma vez da popular maneira com arraiais, comes e bebes, diversões e fogueiras, tal ficou reservado para as comemorações do seu companheiro, também santo popular, S. João Baptista, padroeiro da Cidade.

Em Santo António se crê como santo protector da comunidade dos portugueses de Macau, dos navegantes, e dos mais necessitados. Todos o têm como atento ouvidor e milagreiro, reconhecendo-lhe os seus poderes como casamenteiro[iv], de ajuda nos pedidos para aumento da prole ou de infalível encontrador de objectos perdidos a quem lhe reze o Responso e contribua com doações para os pobres. São curiosas as descrições destes “milagres” e do modo muito localizado como se conseguem os benefícios como no caso da recuperação dos perdidos [ver caixa “Negociar com o Santo”].

Alguns dos milagres que lhe são atribuídos encontram-se representados na sua Igreja. Logo à direita de quem entra no chamado altar do ”Pão dos Pobres” como pano de fundo da sua imagem pode ver-se num painel da autoria do arquitecto e pintor Casuso datado de 1904, aqueles milagres retratados. Embora mais recente esses mesmos milagres estão representados num painel de mármore branco, na ala direita da Igreja, onde existe uma capela dedicada a Santo António e ainda a Santo André Kim e a Santa Madalena de Canossa (1774-1865, fundadora da Congregação das Filhas da Caridade). Note-se que, Santo André Kim (1821-1846), mártir coreano que fez a sua formação eclesiástica em Macau, era um habitual fiel da Igreja de Santo António.

 

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Procissão de Santo António

Na tarde do dia 13 de Junho, depois da missa presidida pelo Bispo de Macau, com toda a confraria e fiéis de todas as origens e idades, a imagem do Santo em andor é incensada pelo Bispo saindo ao som do toque dos sinos para o átrio da igreja onde já se encontram fazendo alas os membros da confraria, crianças e jovens vestidos com trajes de ocasião, alguns transportando cestos com flores. Inicia-se então aquela que será porventura a mais pequena, ou das mais curtas procissões do mundo católico. Saindo do átrio da Igreja a imagem do Santo e de todos os fiéis fazem uma volta circular pela Praça de Camões – muitas vezes competindo com algum trânsito rodoviário – rezando em voz alta a Ave-Maria, meninas vestidas de branco vão cobrindo o chão de pétalas de flores, outras caminham compenetradas de mãos postas, membros da Confraria transportam os seus estandartes, e a procissão, completado o círculo do largo, entra de novo na igreja ficando o andor na capela lateral esquerda para ser venerado pelos crentes. Então, em fila, cumpre-se um ritual que é o da passagem um a um em redor da imagem encostando a mão direita nela beijando-a.

Contudo nem sempre a procissão foi assim tão curta resumindo-se a uma volta pelo Largo, há quem se recorde ainda dos tempos em que ela saía da igreja, para se dirigir às as Ruínas de S. Paulo, descendo a rampa e fazendo depois o percurso inverso.

 

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A Igreja dos Portugueses

A actual Igreja de Santo António (聖安多尼教堂(花王堂), listada como Património Mundial da Humanidade, está construída no local da primitiva ermida erecta antes de 1565, tendo sido o primeiro local onde os Jesuítas se instalaram em Macau. Desde sempre foi considerada pela comunidade macaense como a sua igreja onde celebra os momentos mais significativos das suas vidas, nomeadamente casamentos e baptizados. “Nasci na Paróquia de Santo António, já os meus pais daqui eram, tenho mais de meio século de devoção e de participação nas actividades da paróquia. Agora não pertenço a esta paróquia mas é a fé que me traz aqui todos os anos”, palavras bem significativas do afecto pelas suas origens e permanência na fé.

 

Pão dos Pobres

Uma das mais nobres funções da Paróquia e irmandade de Santo António em Macau é a sua acção caritativa que se exerce a partir de dádivas de crentes, em géneros, esmolas, ou contribuições filantrópicas, onde se incluía em tempos parte do soldo devido ao Santo. Nos anos 30 do século passado o “Pão dos Pobres” acudia a muita gente chegando a distribuir mensalmente, pelos necessitados, cerca de mil e quinhentos quilogramas de arroz. Ainda hoje, embora o número de pobres seja menor, a missão prossegue com a distribuição mensal proporcionada pelas dádivas de muitos, como nos explicaram: “A Irmandade tem muita gente porque há muitos devotos de Santo António que dão contribuições, as pessoas vindas de Hong Kong e de outros lugares dão sempre qualquer coisa. É com essas ofertas que mensalmente acudimos aos nossos pobres com azeite, arroz, entre outros géneros”. A Paróquia de Santo António realiza um jantar de confraternização, comemorando a data da festa do santo juntando paroquianos e amigos de todas as idades e culturas, bem como os que contribuem para a concretização da festa e para a continuação das obras de apoio social.

 

A sobrevivência da festa

A comunidade expressa os seus receios de que, no futuro, possa estar em causa a concretização da comemoração em honra de Santo António nos moldes actuais e que seja possível a continuidade da acção caritativa que o “Pão dos Pobres”[v] ainda proporciona, embora actualmente apenas dependente de dádivas de crentes já que o sustento através do soldo há muito deixou de existir.

Os devotos têm consciência que a permanência da tradição passará pela adesão dos mais novos da comunidade macaense, mas também ao alargamento da Irmandade a outros católicos que garantam à tradição um futuro sustentável.

 

 

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Negociar com o Santo

Sobre a virtude de Santo António na recuperação dos perdidos, é curiosa a descrição da “negociação” feita por uma crente:

Desde pequena que tenho a sua protecção, às vezes até esqueço. Mas ele é brincalhão, perco as chaves, ou outras coisas importantes e rezo para Santo António, mas ele é esperto, pouco dinheiro não dá, só se lhe dou mais é que encontro logo as coisas. Já tive várias experiências neste aspecto: Ó Santo António toma lá 50 patacas, não só com 100 patacas, chega a ser até às 500 patacas, aí em dez minutos a coisa perdida ali está à minha frente.

 

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Casamentos e nascimentos

“Casamentos? Pois toda a gente sabe que o Santo António é casamenteiro, muitas pessoas pedem também filhos, ou marido ou mulher. As pessoas que casaram em Santo António, mesmo que já não vivam em Macau, voltam aqui para comemoraras as suas bodas de prata ou de ouro numa cerimónia de acção de graças.”

“Milagre sobre filhos só se for o que aconteceu com o meu pai. Nós somos cinco irmãos, primeiro nasceram duas raparigas, o meu pai veio pedir um rapaz ao Santo António e a minha mãe teve um par de gémeos… mas depois… eu sou a quinta”

 

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Responso

O texto do Responso a Santo António, embora com várias versões acaba por abranger todas as virtudes que se lhe atribuem. Se bem que os crentes a ele recorram maioritariamente para recuperar algo perdido, o certo é que, como se pode ler, ele afasta as tentações do demónio, protege os navegantes na tormenta acalmando as águas, afasta a doença, e a própria morte, cura os doentes, e dá a força necessário seja física ou anímica aos que se sentem já sem forças para lutar pela resolução dos seus problemas. Deixamos aqui a oração do Responso a Santo António, sem as repetições a que a reza obriga a quem dele se socorre para alcançar os seus desejos:

 

Se milagres desejais,

Recorrei a Santo António;

Vereis fugir o demónio

E as tentações infernais.

Recupera-se o perdido,

Rompe-se a dura prisão,

E no auge do furacão

Cede o mar embravecido.

Pela sua intercessão

Foge a peste, o erro, a morte,

O fraco torna-se forte

E torna-se o enfermo são.

(repete a partir de recupera-se o perdido)

Todos os males humanos

Se moderam, se retiram,

Digam-nos aqueles que o viram;

Digam-no os paduanos.

(repete a partir de e no auge do furacão)

 

 

*Historiador e Mestre em Relações Interculturais

 

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[i] Macau e a sua Diocese, vol.XII, Macau, Tipografia da Missão, 1976, p. 181.

[ii] Ibidem, pp. 184-5

[iii] Ib., pp.182-3

[iv] A faceta do santo casamenteiro é a mais conhecida popularmente. É da tradição os pedidos feitos nas festas a ele dedicadas. Como curiosidade acrescente-se que no Brasil – por onde o Santo passou, e é bem querido – a fé das jovens casadoiras chegava a transformar-se num “braço de ferro” com o Santo, pois muitas vezes arrancaram o Menino das suas mãos só lho devolvendo quando encontravam marido. A ligação aos casamentos está bem patente em Portugal numa tradição urbana iniciada em 1957 por iniciativa do jornal “Diário Popular” – Noivas de Santo António – e que persiste até aos dias de hoje, agora numa organização da Câmara Municipal de Lisboa inserida nas Festas da Cidade e com a designação de “Casamentos de Santo António”. Tanto na versão antiga, como na actual, o casamenteiro assume também a sua vertente de ajuda aos pobres pois é para eles que se dirige o evento estando a cargo da organização as despesas com vestuário e prendas de casamento aos casais mais necessitados.

[v] A instituição “Pão dos Pobres” foi criada em Toulon, França, tendo-se espalhado por todo o mundo onde havia crentes de Santo António. A sua instituição em Macau remonta a 1903, pelas mãos do pároco da Igreja da sua invocação, Dr. António José Gomes.