Dossiê MTC | Princípios teóricos

Há três grandes princípios teóricos na MTC, segundo Angela Hicks: a ideia do yin/ yang, o conceito de Substâncias Vitais e a dinâmica dos Cinco Elementos. Juntos, escreve a autora de A Medicina Chinesa, permitem ao terapeuta “descobrir com exactidão a causa energética da queixa do doente”

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Texto Sofia Jesus

 

Yin e yang

O yin e o yang representam, segundo Angela Hicks, “as duas forças fundamentais do universo” e gozam de “quatro grandes características”: “estão em oposição”; “são interdependentes”; “consomem-se reciprocamente”, e “transformam-se reciprocamente”.

O yin é associado, por exemplo, à água, ao frio, à humidade, ao interior, à passividade, à sombra, à noite, ao feminino, enquanto o yang é associado ao fogo, ao calor, à secura, ao exterior, à actividade, à luz, ao dia, ao masculino.

Cada pessoa “tem o seu equilíbrio próprio de yin e yang” e é esse equilíbrio que é afectado quando alguém adoece. O médico procura encontrar um tratamento que restabeleça o equilíbrio entre as duas forças, sendo que essa simetria, frisam Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho, em Medicina Chinesa: Em busca do equilíbrio perdido, é “obtido na oscilação constante, e nunca na paragem”, tal como acontece na natureza.

De acordo com a teoria dualista yin-yang, o corpo humano tem zonas onde predomina uma ou outra energia, explicam os dois investigadores de Macau: ao grupo de predomínio yin pertencem os cinco órgãos principais ou plenos (T’sang), isto é, o fígado, o coração, o baço, os pulmões e os rins; ao grupo yang estão associadas as seis vísceras ou órgãos vazios (Fu), ou seja, a vesícula biliar, o estômago, o intestino grosso, o intestino delgado, a bexiga e o “triplo aquecedor” – um conceito que inclui três cavidades do tronco, uma no tórax, acima do diafragma, onde estão o coração e os pulmões; outra entre o diafragma e a zona umbilical, na região do baço e do estômago; e ainda a que fica no abdómen e que acolhe os restantes órgãos e vísceras.

 

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Substâncias Vitais

As Substâncias Vitais descrevem os componentes principais de uma pessoa. Segundo Angela Hicks, há cinco:

 

  1. 1. Qi

O qi, explica Angela Hicks, “é a energia que está presente em todo o universo”, “é criado no interior do nosso corpo” e “cria todos os movimentos, involuntários e voluntários”, como “o bater do coração”, “o facto de continuarmos a respirar enquanto dormimos” ou a “assimilação dos alimentos”. O qi “também nos protege da doença e mantém quente o nosso corpo”.

Segundo Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho, o qi circula no organismo humano “como um fluxo contínuo que segue um percurso certo, equilibrado, durante o qual vai sofrendo as alterações próprias da Natureza”, passando de energia positiva yang para a negativa yin, e regressando de novo à primeira, “consoante as zonas onde se encontre e a influência que sofre do meio-ambiente”.

A energia qi flui através de canais, invisíveis, imaginários, a que se chama meridianos. De acordo com Angela Hicks, existem ao todo 12 meridianos principais, de onde parte uma rede de outros canais mais pequenos – cada meridiano está ligado a um órgão do corpo humano.

“O nosso Jing Luo [nome dado à complexa rede de meridianos] é como se fosse uma estrada. O sangue é como um carro e o qi é como se fosse a gasolina que alimenta o carro. Se houver um acidente, se a estrada estiver bloqueada, há um engarrafamento e o nosso corpo adoece”, explica o médico de Macau Wing Kuan.

 

  1. Jing

A essência jing é herdada dos nossos pais e a sua força determina a robustez da constituição de uma pessoa. Armazenado nos rins, o jing controla o desenvolvimento do indivíduo ao longo da vida – os sinais de velhice são sinais de que o jing se está a esgotar. Deficiências extremas de jing são difíceis de tratar, mas pode-se prevenir o aparecimento de problemas através do tratamento dos rins.

 

  1. Shen

O shen ou Mente-Espírito é, segundo Angela Hicks, “uma forma muito rarefeita de qi”, que pode ser designada como “o espírito em si” e que é guardada pelo Sangue no Coração. Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho referem-se ao shen como a “vitalidade” ou “a força que impele o qi e o jing, regulando a capacidade intelectual” do ser humano, e acrescentam que, tal como o jing, também o shen “é herdado dos pais” e “está constantemente sujeito a renovação”.

 

Shen, qi e jing são conhecidos como “os Três Tesouros”. Há uma expressão comum entre os chineses de Macau que, traduzida à letra, significa “sem jing e sem shen” (ng t’cheng-sân, em cantonense) e que, segundo Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho, é usada quando se quer dizer que não se está lá muito bem de saúde, mas também não se sofre de uma verdadeira indisposição ou doença.

 

  1. Sangue

Na MTC, o Sangue é “o fluído que alimenta e humedece o corpo”, diz Angela Hicks. Quando há problemas com o Sangue, é comum a prescrição de plantas medicinais. O conceito de Sangue, na MTC, difere do aplicado na Medicina Ocidental, sublinham Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho. “Está ligado ao qi de forma indissolúvel”, explicam, acrescentando que é o qi que “comanda e dinamiza” o Sangue, “servindo-se dele como veículo”, mas o Sangue também está entre a matéria que contribui para gerar o qi, “ao servir de alimento para alguns órgãos que produzem essa forma de energia”.

 

  1. Fluidos Corporais

Angela Hicks explica que o termo jin ye designa todos os fluidos do corpo humano. Os fluidos jin são “leves e aquosos” e situam-se no exterior do corpo – como é o caso do suor ou da saliva. Os ye são “mais pesados” e situam-se no interior, humedecendo “as articulações, o cérebro, a coluna e a medula”. Se os Fluidos Corporais ficarem retidos, “o movimento livre do qi e do Sangue pode ser obstruído”.

 

Os Cinco Elementos

Madeira, Fogo, Terra, Metal e Água são os Cinco Elementos, ou, como refere Angela Hicks, “são cinco qualidades dinâmicas que interagem umas com as outras e que, no fim, correspondem a tudo o que existe no universo”. O médico Wing Kuan lembra que os cinco elementos estão presentes no nosso corpo, nos nossos órgãos e não podem existir uns sem os outros, devendo haver um equilíbrio entre os cinco. Cada elemento está ligado a dois órgãos, um yin e outro yang [ver diagrama]. Cada elemento é também associado a um determinado odor, clima ou sabor, por exemplo.

 

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Precursores míticos

 

Em A Medicina Chinesa: Em busca do equilíbrio perdido, Cecília Jorge e Rogério Beltrão Coelho destacam três imperadores considerados “precursores da medicina tradicional” chinesa. “Figuras lendárias” a quem se associa a elaboração de grandes obras de referência:

 

Fu Hsi (?-2852 a.C.): É considerado o criador da teoria do yin-yang e o seu nome é associado à autoria do Livro das Mutações, onde terá surgido a primeira referência a essa teoria da dualidade cosmogónica. Esta famosa obra clássica já foi publicada em dezenas de línguas.

 

Shen Nong (?-2697 a.C.): É visto como “o precursor da farmacopeia chinesa e do tratamento sistematizado com ervas”. Há quem lhe atribua a autoria da obra Farmacopeia de Shen Nong, mas este não é um ponto assente entre os historiadores, que “preferem datar o aparecimento da farmacologia do século I da nossa era”. Reza a lenda que os deuses concederam a Shen Nong “uma parede transparente na zona do estômago”, permitindo-lhe, assim, “observar o funcionamento do seu organismo”. Tirava notas das experiências pessoais que fazia com ervas, tendo classificado 365 de acordo com os seus efeitos no corpo humano. Também conhecido como o Imperador Vermelho, foi “divinizado como santo patrono da agricultura e da ervanária” – é-lhe atribuída a invenção do arado.

 

Huang Ti (2697-2595 a.C.): Chamam-lhe o Imperador Amarelo e é “um dos soberanos mais multifacetados” na história lendária da China. A ele se atribui a autoria do Clássico de Medicina Interna, o “tratado que serve de base e estrutura a toda a prática medicinal chinesa” e que serviu como ponto de partida para muitas obras. Escrito “em forma de diálogo entre o imperador e um dos seus ministros”, restam poucas dúvidas de que o livro só terá sido compilado durante a dinastia Zhou (1122-255 a.C.), por “anónimos que quiseram associar à obra o prestígio do imperador”.