O antigo porto de Quanzhou

Pequena e pacata cidade perdida nos recortes da costa marítima de Fujian, Quanzhou guarda uma história multicultural e inter-religiosa registada tanto nos seus habitantes e visitantes como nos inúmeros monumentos e pedras que perduraram até à actualidade. A cidade faz parte da lista da Rota Marítima da Seda, cuja candidatura à Património da Humanidade será apresentada à UNESCO em 2016

Antigo Porto Wenxing Quanzhou

 

 

Texto e Fotos José Simões Morais

 

Há 20 anos, partindo de Gonbei, Zhuhai, a viagem de autocarro levou 15 horas e como este seguia para Fuzhou, a capital da Província de Fujian, deixou-nos às quatro e meia da manhã à entrada da cidade. Vinte anos passaram e pelo meio uma visita rápida a Quanzhou durante os dias de celebração do novo Ano Chinês. Acompanhando uma multidão, percorremos os templos contíguos de Guan Yu e Yue Fei onde, afastados do pátio da entrada, apenas do passeio visualizámos as cerimónias e daí levados em corrente visitámos o Templo a Mazu.

Conhecido por Palácio da Imperatriz Celestial, está situado junto à entrada Sul da antiga muralha da cidade, na Rua Tian Hou, título da deusa Mazu, que era natural de Fujian e viveu no século X. Já Quanzhou era um dos principais portos chineses da Rota Marítima da Seda. Por tal, não é de estranhar os inúmeros templos dedicados às divindades ligadas à água, a quem os homens do mar pedem protecção das calamidades no mar.

Terra de vegetação luxuosa e clima ameno foi inicialmente usada pelos mestres do Tao como local de retiro, onde confluíam literatas e eruditos. Quanzhou era aproveitada também pelos budistas para aí construírem os seus mosteiros e templos. O Rio Jin (Jinjiang) banha de norte a sul a parte Oeste da cidade, sendo protegida a norte pela Colina Jiuri e pela Montanha de Qingyuan. Com água e terreno fértil para cultivo, aí instalaram-se pescadores e agricultores que fundaram um pequeno povoado. Documentos do século VI referiam já a existência de um lugar habitado.

 

Amoreira Milenar

Anterior à existência da cidade, o Templo Kaiyuan foi construído em 686 e o seu nome original era Lianhua, ou Templo da Flor de Lótus. Era então um campo de amoreiras pertencente a Huang Shougong, que sonhou com um monge a implorar por aquela terra para construir um templo, respondendo-lhe que lhe daria os terrenos caso as amoreiras florissem flores de lótus. Segundo a lenda, poucos dias depois tal veio a acontecer e Huang cumpriu a sua palavra, oferecendo as terras para a construção do templo.

Em 692, a imperatriz Sheng Shen (Wu Zetian) mudou-lhe a designação para Templo dos Ensinamentos Florescentes (XingJiaosi), e em 705 o imperador Zhong Zong intitulou-o Templo do Dragão Restaurado. Só em 738 passou a chamar-se Kaiyuan, já que o imperador Xuan Zong (712-755) ordenou que todas as cidades tivessem um templo com o nome do seu reinado – na altura a Era Kaiyuan (713-741). Nos finais da Dinastia Song o templo atingiu o seu apogeu, com 120 celas individuais que serviam de albergue a estudiosos de várias escolas budistas.

Dentro do pavilhão principal, o Salão dos Cem Pilares (Baizhudian), o tecto de madeira é suportado por colunas encimadas por figuras femininas com asas de anjo e as mãos estendidas. Cada uma dessas 24 esculturas de madeira, com tronco de mulher e corpo de pássaro, suporta um objecto diferente, entre instrumentos musicais e outros utensílios ligados aos quatro tesouros chineses. As esculturas são conhecidas por Feitian, as Vinte e Quatro Músicas Voadoras. Já na parte exterior ao salão, conhecido também por Pavilhão do Tesouro Daxiong, a nossa atenção vira-se para a árvore número um da China, uma amoreira com 1300 anos aqui plantada e que ainda se mantém viva.

A plataforma de pedra que serve de base ao pavilhão tem figuras de leões, alguns com cabeças humanas, esculpidas. Este conjunto de terraço de pedra e templo de madeira é ainda do tempo da sua fundação e é o mais antigo de todos os existentes no recinto do complexo do Templo Kaiyuan, que conta ainda com outros edifícios emblemáticos, como dois pagodes. O Pagode Leste, conhecido por Zhengguo foi construído em 865 e originariamente era de madeira com nove andares, tendo em 1227 passado a ser em tijolo com sete pisos. O actual edifício, datado de 1250, em forma octogonal e feito de granito, tem cinco andares e um pouco mais de 48 metros de altura.

Já o Pagode Oeste (Renshou ta, Pagode da Benevolência e Longevidade) foi construído em 916, no Período das Cinco Dinastias. Durante a dinastia Song do Norte teve sete andares e era de madeira, mas em 1228 foi reconstruído em tijolo. Reinava já a Dinastia Song do Sul quando se tornou como hoje o vemos, em granito com uma forma ortogonal e cinco andares. De magnífica cantaria, ambos os pagodes têm baixos-relevos esculpidos nas paredes exteriores. Na Dinastia Yuan, em 1285, toda a parte da zona do mosteiro sofreu obras e passou a servir o Budismo Chan.

 

Fundação da cidade portuária

Em 711, durante a Dinastia Tang, foi fundada a cidade com o nome de Quanzhou. Desde o início o notável porto chinês rapidamente transformou-se num dos quatro mais florescentes no comércio com o estrangeiro, em conjunto com o de Cantão, Yangzhou e Jiaozhou.

Os homens de negócios, provenientes da Península Arábica, do subcontinente indiano e do Sudoeste Asiático, chegavam à cidade (por eles conhecida por Zaitun) trazendo especiarias e outros produtos medicinais para a troca. A acompanhá-los também chegavam missionários do Islão, cristãos nestorianos, maniqueístas, hindus e budistas. Devido a um número crescente de crentes dessas religiões foi-lhes autorizada a construção de templos.

A cidade rapidamente se desenvolveu e passou a atrair a visita de cada vez mais estrangeiros. Dezenas de milhares eram muçulmanos e na zona sudeste da cidade fizeram o seu bairro, o Fanfang. O Império da China permitia residência a esses estrangeiros e ainda a possibilidade de preservarem a sua cultura e terem estruturas governativas próprias, desde que não fossem incompatíveis com as leis do país.

Durante a Dinastia Song (960-1279), Quanzhou atingiu o seu apogeu, tornando-se o principal porto chinês de exportação para o estrangeiro e ponto de partida da Rota Marítima da Seda, estatuto que manteve até à Dinastia Yuan. Inúmeros eram os barcos árabes que aí atracavam e, segundo o Song Shi (História da Dinastia Song), as exportações chinesas concentravam-se em produtos como seda, porcelana, chá, chumbo, estanho e cobre. As moedas de cobre chinesas eram o dinheiro corrente em todos os portos do Sudeste Asiático e do Sri Lanka.

Já na Dinastia Yuan, Marco Polo daqui embarcou em 1292 para Itália e o mercador de Nanchang Wang Dayuan partiu em 1328, visitando portos tão distantes como o de Tânger, em Marrocos. Por essa altura Ibn Batuta referia ser Zaitun um grande centro comercial e um dos cinco maiores portos do mundo, a par com Alexandria.

Nos finais da Dinastia Yuan, a rebelião muçulmana Ispah (1357-1366) levou os chineses a combate-los e assim o Islão perdeu aqui toda a sua influência. Com a chegada da Dinastia Ming, Quanzhou entrou em declínio devido à ordem do Imperador Hongwu (1368-1398) de proibir que os artífices e comerciantes estrangeiros pudessem viver nas cidades chinesas.

 

Tranquilo quotidiano

A rua de Zhongshan é a mais antiga e importante de Quanzhou; os automóveis estão proibidos de circular durante o dia por questões de preservação da riqueza histórica. Já a Montanha Qingyuan alberga a estátua de Lao Zi, esculpida numa rocha durante a Dinastia Song e com cerca de sete metros de largura e 5,6 metros de altura. Daí seguimos embrenhando-nos pelos trilhos que percorrem essa montanha. Passeio que nos coloca em harmonia com o estar Tao, sendo os seus templos a própria vegetação e as pedras, em extraordinários equilíbrios, onde foram gravados pensamentos desta filosofia. Nessa caminhada passamos ainda por uma série de templos budistas e pela estátua do monge Hongyi.

No regresso ao centro da cidade, começamos a dar atenção ao estilo das casas que apresentam a típica arquitectura de Quanzhou. Por vezes, escutamos o som de um grupo de ópera ensaiando, quem sabe, para actuar ao princípio da noite no palco da praça em frente ao Templo de Confúcio. De salientar que as óperas Liyuan, Gaojia e Dacheng são originárias daqui.

Após a visita ao Museu do Comércio Ultramarino, onde estão expostas muitas pedras gravadas das religiões que passaram por Quanzhou, seguimos para a Colina Lin para visitar o enorme cemitério muçulmano, onde se encontram as Sepulturas Sagradas. Nos Anais Min, escritos em 1629, diz-se que segundo o conhecimento transmitido via oral e perpetuado por gerações de chineses muçulmanos, quatro dos mais santos discípulos de Maomé vieram à China espalhar o Islão durante o reinado de Wu Zetian, ficando dois deles em Quanzhou.

Nas Sepulturas Sagradas esses dois túmulos estão protegidos por uma estrutura de pedra e, ao redor, uma parede semicircular onde as estelas registam várias importantes ocasiões da história. Uma das pedras gravada em árabe é de 1322 e refere que dois homens santos virtuosos foram à China na Era de Faghfur. Outra das estelas foi aí colocada pelo Almirante Zheng He quando aqui veio em peregrinação.

A primeira mesquita de Quanzhou foi construída na Dinastia Tang, mas estas foram-se multiplicando e havia já seis ou sete na Dinastia Yuan. Hoje apenas resta a Mesquita Ashab, na Rua Tonghuai, a mais antiga existente na China. Imponente edifício, fora do estilo chinês, foi construído em 1009 imitando a arquitectura de uma mesquita de Damasco, na Síria. Renovada 200 anos depois, ainda hoje aí resta uma pedra gravada em 1417 com o Édito do Imperador Ming Cheng Zu, protegendo o Islão na China. Foi também nesse ano que se iniciou a quinta viagem do Almirante Zheng He, que depois de partir do porto de Nanjing fez uma breve visita a Quanzhou. Tinha sido o principal porto durante a Dinastia Yuan e contava com uma grande comunidade muçulmana, à qual Zheng He também pertencia. Após as orações à deusa Mazu, a armada chinesa seguiu viagem até à costa Oriental de África. Hoje a cidade conta com uma população activa de chineses muçulmanos, descendentes dos antigos mercadores árabes que permaneceram após se casarem com a população Han e aqui continuam a viver segundo a sua religião.

Voltando ao recinto do Templo de Kaiyuan, visitamos um grande pavilhão onde se encontra exposto o barco de madeira com três mastros que foi enterrado na Baía de Houzhu, em Quanzhou, no Verão de 1974. Este junco fora construído nesta cidade durante a Dinastia Song e regressara de uma viagem ao Sudeste da Ásia carregado de madeiras, produtos medicinais e outras mercadorias. Ainda hoje se pode ver claramente os compartimentos estanques do barco, uma das muitas invenções chinesas.

O regresso a Macau foi feito em comboio de alta velocidade até Shenzhen, em quatro horas, e daí, de autocarro em duas horas e meia chegamos à fronteira entre Zhuhai e Macau.