Capoeira | Uma arte marcial que se confunde

É música e dança, mas não deixa de ser uma arte marcial. Introduzida em Macau pelo grupo Axé Capoeira, liderado pelo mestre Eddy Murphy, a capoeira já conta aqui com uma centena de seguidores

 

 

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Texto Luciana Leitão | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

“Capoeira é energia – batam palmas e cantem”, grita o mestre Eddy Murphy, tentando incentivar e organizar as duas dezenas de crianças que se encontram reunidas numa roda, num sábado, às 15h00 num ginásio da Taipa. Trajados de branco, os aprendizes chineses, portugueses e de outras nacionalidades, tentam seguir as coordenadas o melhor que podem, mas perdem-se com frequência, voltando atrás para conversar com os pais, que assistem entusiasmados.

Eddy Murphy dá aulas de capoeira em Macau todos os dias da semana, dividindo os alunos por diferentes faixas etárias. Porém, ao sábado, o mestre junta os aprendizes em apenas dois grupos – o primeiro reúne crianças dos três aos 11 anos e começa logo a praticar às 15h00.

 

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A aula tem um pouco de tudo – desde a roda com os jovens praticantes a equilibrar-se nas posições principais e a aprender o conceito de ataque e defesa, passando por alguns exercícios de ginástica. “Quem consegue fazer isto? Quem consegue”, pergunta o mestre antes de dar uma cambalhota no ar, desafiando-os. As crianças riem.

Aos seis anos, Mariana diz com orgulho de que já está há três nas aulas de capoeira. “Aprendemos muitas coisas, é uma luta e é uma dança”, diz, enquanto a amiga Gabriela, de sete anos, realça o exercício físico: “Aprendemos a fazer pontes.”

 

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Liliana Pereira, mãe de Mariana, recorda que a filha começou as aulas no Jardim de Infância Dom José da Costa Nunes, passando posteriormente a ter aulas cá fora. “É um desporto óptimo em termos de flexibilidade e postura. Mete algum medo, mas depois a pessoa percebe que é uma questão de uma pessoa confiar na outra”, afirma, referindo-se a alguns exercícios físicos. Mariana tem aulas três vezes por semana e nunca se queixa. “Até pode não lhe apetecer ir num dia específico porque quer brincar, mas ela passa a vida a fazer capoeira em casa, está sempre a cantar as músicas.”

Por seu turno, Andrew Evans, pai de Matthew, diz que incentivou o filho de cinco anos a juntar-se ao grupo por gostar “do ambiente familiar”. Naturais de Inglaterra, nunca tinham ouvido falar de capoeira antes de chegar a Macau, mas assim que tiveram o primeiro contacto com a modalidade, apaixonaram-se. “Claro que ele não consegue fazer tudo na aula, mas tenta e o mestre ajuda-o.” Com aulas duas vezes por semana, mais esta sessão especial todos os sábados, Andrew afirma que o filho vai sempre com vontade. “Ele nunca disse que não queria ir. Aliás, se está a ser desobediente, dizemos-lhe que já não vai à aula e ele pára. Se fizéssemos o mesmo com as aulas de piano, ele não ficaria minimamente preocupado”, afirma.

 

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Pais e filhos juntos

Na segunda parte da aula de sábado, juntam-se os mais velhos, que são perto de duas dezenas. A sessão começa por aquilo que se chama o jogo, em que há o confronto entre dois praticantes, com ambos a demonstrarem as suas capacidades. Começam por praticar a ginga, o movimento base da capoeira, que consiste numa espécie de dança em que os pés desenham um triângulo no chão, enquanto os braços balançam ao ritmo de corpo.

Enquanto os dois capoeiristas se confrontam, os restantes elementos aguardam, batendo palmas e dançando ao som da música. “Esse é o mote da capoeira, todos são da mesma nacionalidade/idade – tem pai e filhos, franceses, americanos, chineses”, diz Eddy Murphy à MACAU enquanto a aula decorre. A música nunca pára, com os berimbaus, o atabaque e o pandeiro a ditar os movimentos, enquanto os dois praticantes repetem, além da ginga, passos que simulam um ataque seguidos de uma manobra defensiva e exercícios acrobáticos.

Vasco, 50 anos, Guilherme, 14 anos, e Madalena Lopes, 11 anos, são pai e filhos e praticam juntos capoeira. “Foi no Festival da Lusofonia, eles [filhos] estavam à procura de qualquer coisa para fazer e eu juntei-me um ano depois”, recorda Vasco, enquanto se ouve ao fundo o som dos colegas, que continuam dois a dois na luta de maculelês (ou paus).

“Adoro dança e isto parecia-me um tipo de dança. Percebi depois que não era, mas gostei na mesma”, diz Madalena, enquanto o irmão contrapõe: “Vi que era uma arte marcial e gosto de tocar os instrumentos.” O pai achou logo que, pelo menos, os filhos tinham de praticar a modalidade. “Gosto da camaradagem e dos ensinamentos do mestre – não há assim tantos mestres no mundo – e o Eddy Murphy tenta passar uma série de ensinamentos que eu tento passar aos meus filhos em casa”, afirma Vasco.

 

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Entre as duas dezenas de alunos de várias nacionalidades, apenas se vislumbra uma aprendiz de traços orientais. “Chamo-me Chiann Tsui e venho dos EUA, estou em Macau apenas há quatro meses”, conta esta norte-americana de ascendência oriental. Tomou contacto pela primeira vez com a capoeira, na Alemanha, continuou com as aulas nos EUA enquanto estudava e, assim que chegou a Macau, procurou o grupo Axé Capoeira para poder prosseguir. “É o que tenho mais próximo de uma família aqui”, diz esta investigadora da Universidade de Macau. “Dá-me também um melhor entendimento das comunidades lusófonas que estão presentes aqui”, acrescenta.

Entretanto, mesmo perto do fim da aula, alunos, mestre e instrutores juntam-se numa roda e ao som da música, no interior do círculo, dois a dois, confrontam-se os capoeiristas. Os passos são então mais agressivos, havendo inclusivamente toque.

 

A chegada à RPC

Em Macau desde 2006, o brasileiro Eddy Murphy – ou Edilson Almeida, o seu nome verdadeiro –, introduziu a modalidade no território e já tem perto de 100 alunos de diferentes nacionalidades e idades. “Com os menores, procuramos fazer a continuação do que os pais passam em casa, que é respeitar uns aos outros e ter respeito aos mais velhos”, diz.

Porém, independentemente da idade, a capoeira segue uma estrutura hierárquica, directamente relacionada com o nível de graduação do praticante. “O adulto chega aqui e tem de respeitar aquele adolescente que tem o nível mais elevado – a capoeira é igual à vida.” Eddy Murphy chegou à República Popular da China há 12 anos, trazendo a modalidade – primeiro, a Hong Kong e só depois ao Interior do país. “Cheguei a Hong Kong. Depois estive dois anos e meio em Dongguan, dois anos e meio em Shenzhen e agora seis anos em Macau.”

 

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Eddy admite que para os chineses esta arte marcial é ainda um pouco estranha, mas que depois de conhecerem acabam por gostar. “Temos um chinês nas nossas aulas que está há três anos comigo. Canta, procura falar em português e fala muito pouco inglês”, diz, acrescentando: “A capoeira tem uma linguagem própria. Sentir é mais importante do que falar, o mais graduado tem de incentivar o menos graduado.”

O mestre diz que a aluna mais nova em Macau é a sua própria filha, que tem três anos. “A partir dessa idade, começam a brincar de capoeira, a pôr a mão no chão, a aguentar o peso do corpo, a saber que quando um chuta o outro tem de se baixar.” Aliás, na sua opinião, a capoeira é o melhor desporto para crianças dos três aos seis, já que “entendem o próprio corpo, aprendem música, não há violência, fazem a ponte e o pino”.

O mestre brasileiro dá aulas todos os dias juntamente com um instrutor e já tem alguns alunos que praticam a modalidade há três ou quatro anos e que podem ajudar os outros. “Damos aulas três ou quatro vezes por dia, tudo dividido por idades. Dividimos dos três aos seis, dos sete aos 11, depois temos os pré-adolescentes dos 12 aos 16 e acima de 16 já são adultos. No sábado juntamos as crianças todas até aos 11 e depois juntamos os pré-adolescentes aos adultos.”

No território, as pessoas acabam por se congregar à volta da capoeira, tornando-se uma família. “Um se importa com os problemas do outro. Tem aluno que assim que entra, já sei que não está bem naquele dia. Quando entram na sala, deixam os problemas de lado. Quando saem, já vêem que o problema é menor.”

 

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Os comandos

Capoeira é também música. A acompanhar a aula de sábado, ouvem-se berimbaus, o pandeiro e o atabaque. “Temos três berimbaus, mas o berimbau com a carapaça maior chama-se gunga, ele é tocado sempre pelo mais graduado ou mestre”, diz, esclarecendo que é este que determina os comandos. “Tem de ser uma pessoa sábia a tocar. Um toque do berimbau é um toque de luta, de acrobacias; quem pega no instrumento comanda a roda”, afirma. “Quem vê de fora pensa ‘que coreografia bonita’, mas não é uma coreografia. Eu ataco e tu defendes. É luta, quando precisa de ser luta.”

E, quem quiser subir na hierarquia, tem de perceber português. “A música, em português, diz o que você tem de fazer, dá os comandos. Às vezes são histórias de mestres, incentivos de vida, histórias dos mais antigos”, comenta o mestre, dando um exemplo: “Tem uma música que é ‘o facão bateu em baixo, a bananeira caiu’. O capoeirista sabe que quando o mestre canta isso é para um derrubar o outro.”

Independentemente da nacionalidade, Eddy Murphy não forma ninguém que não fale português. “Os testes são todos em português, nunca vai ser um professor se não falar português.” Por isso, em todas as suas aulas tenta ensinar algumas palavras, de forma que os aprendizes reconheçam lentamente alguns vocábulos. “A capoeira é o veículo de maior divulgação da língua portuguesa no mundo inteiro. As músicas, os nomes dos golpes, o nome dos instrumentos, tudo é em português, não tem como cantar uma música em inglês.”

 

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Fernanda Matias acompanha o mestre nas aulas que lecciona. “Ajudo na administração do grupo de capoeira aqui de Macau”, diz a mulher de Eddy Murphy. Praticante da arte marcial em várias partes do globo, diz que por vezes têm de adaptar o estilo às comunidades locais. “Já moramos na China, Espanha, Hong Kong e Macau e em cada lugar as pessoas têm um determinado costume”, diz, explicando: “No Brasil treinamos mais como luta, aqui não podemos reforçar só esse lado de luta, as pessoas precisam da capoeira mais para aliviar o stresse, sobretudo os estrangeiros.”

E, claro, é muito diferente ensinar no Brasil e ensinar em Macau. “Lá, as pessoas sabem o que vão encontrar, enquanto aqui vão descobrindo aos poucos.” Mesmo entre os alunos, há quem busque na capoeira coisas diferentes. “Tem alunos que querem somente a música, mas aí o mestre vai falando e vai dizendo que tem de fazer isto ou aquilo.”

 

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O reconhecimento da UNESCO

Depois de anos a lutar para superar alguma má reputação de que gozava, a capoeira foi considerada património imaterial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em Novembro de 2014, para contentamento dos que a praticam e, sobretudo, dos que tentam passar os ensinamentos aos outros.

Para o mestre Eddy Murphy, este reconhecimento é uma “luta que tem sido travada há já vários anos”. Quando se iniciou na capoeira, havia muita discriminação no Brasil. “Era coisa de negro, mas foram os bons capoeiristas, as pessoas que realmente estudaram para fazer esta arte melhor os responsáveis pelo que aconteceu.”

Mais: para subir na hierarquia da capoeira, é preciso estudar. “Um aluno meu nunca se vai formar se não tiver uma noção mais do que básica de educação física. Tem de ter no mínimo o curso de primeiros socorros”, afirma.

Para a capoeira chegar onde se encontra, Eddy Murphy salienta o papel que “os velhos mestres” tiveram. “Temos o mestre Bimba, que é o meu herói. Ele lutou quando a capoeira era proibida por lei. Em 1953 apresentou a modalidade ao então presidente Getúlio Vargas e mostrou que podia ser praticada como arte marcial e o presidente aboliu a lei que proibia a capoeira.”

 

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A capoeira na China

Neste momento, há dois grupos de capoeira em Hong Kong, enquanto em Macau apenas há o Axé Capoeira. “Estamos em 37 países, temos apenas dois mestres e um deles sou eu, o outro [o fundador, em 1982 – mestre Barrão] está no Brasil”, diz Eddy Murphy. Em Dongguan, na Província de Guangdong, encontra-se um antigo aluno de Eddy a dar aulas em escolas internacionais. Já em Xangai e Pequim estão presentes outros grupos de capoeira. “As pessoas à frente não são brasileiras, mas desenvolvem um bom trabalho de capoeira.” Para já, refere o mestre, a capoeira ainda é relativamente desconhecida na República Popular da China, talvez reflexo da própria história do gigante asiático. “A China abriu os olhos para o mundo nos últimos 30 anos”, diz. Aliás, mesmo em Macau, Eddy Murphy admite que tem apenas três alunos adultos chineses. “O chinês também é um pouco tímido, prefere ficar no núcleo dele onde fala cantonês — 80 por cento da minha aula é em inglês e os cânticos são em português”, diz, justificando a ausência.

 

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A origem

O início da capoeira tem origem no século XVI, quando o Brasil era uma colónia portuguesa e a mão-de-obra escrava, sobretudo africana, era amplamente utilizada. Ao chegarem ao Brasil, os africanos perceberam que era necessário criar formas de protecção contra a violência dos colonizadores, que não fossem evidentes, já que lhes era proibido praticar qualquer tipo de luta. Nasceu assim a capoeira. Proibida até 1930, acabou por vir a ser legalizada depois de ter sido apresentada ao então presidente Getúlio Vargas pelo mestre Bimba.

Há três estilos de capoeira. O mais antigo, criado durante a escravatura, é o de Angola, em que há um ritmo musical lento e golpes mais próximos do solo. Há também o estilo regional em que se junta a malícia da capoeira angolana ao jogo rápido de movimentos e sem recurso a acrobacias. Finalmente, há o estilo contemporâneo de capoeira, o praticado em Macau, que reúne características do angolano e do regional.