Cooperação | O lado cultural da plataforma

Como ponto de encontro secular entre o Oriente e o Ocidente, Macau tem potencial para ser um palco privilegiado para o intercâmbio cultural entre a China e os países de língua portuguesa. Apesar das crescentes iniciativas, muitos defendem uma estratégia ainda mais abrangente para que o lado cultural da plataforma se mostre em força

 

 

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Textos Diana do Mar e Fátima Valente | Fotos António Mil-Homens e Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Chega com o cair de Outubro, juntando as culturas das diversas comunidades numa montra chamada Festival da Lusofonia. Embora sob a forma de arraial popular, reveste-se de particular simbolismo pelo intercâmbio cultural que promove. Da gastronomia, à música ou à dança, até ao artesanato, o Festival da Lusofonia, inserido na Semana Cultural da China e dos Países de Língua Portuguesa, conquistou um espaço com o desenrolar dos anos no calendário de Macau.

Esta é, aliás, o único momento que tem o condão de juntar actividades culturais de todos os países de língua portuguesa, num programa com organização e apoio institucionais, como assinala a presidente da Associação dos Amigos de Moçambique (AMM). Helena Brandão recorda que existem outros eventos ao longo do ano que as comunidades organizam ou nas quais participam, mas de forma pontual e individual, pelo que nenhum outro congrega toda a lusofonia num único momento.

“De ano para ano nota-se um maior interesse, uma maior percepção por parte das pessoas de Macau”, afirma Helena Brandão, radicada em Macau há três décadas, para quem “a Semana Cultural e o Festival da Lusofonia têm contribuído muito para um maior conhecimento da cultura desses países e depois as associações também tentam mostrar sempre coisas diferentes”.

 

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O próprio Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Fórum Macau) também elenca como o “contributo mais significativo e mais visível” a organização, a partir de 2008, da Semana Cultural, “uma verdadeira mostra multifacetada” que vem alargar a componente “mais festiva” ou “recreativa”, planeada em conjunto com o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM). “Pese embora o objectivo primeiro seja a cooperação económica e comercial, a componente cultural tem-se afirmado com grande ênfase nos últimos anos”, realça Echo Chan que coordena, desde Março, o Gabinete de Apoio ao Secretariado Permanente do Fórum Macau. Como recorda, “a cooperação no plano cultural foi introduzida nos Planos de Acção para que esse intercâmbio cultural – quer bilateral, quer multilateral – possa beneficiar o conhecimento mútuo entre os povos e permitir que a China seja, pela vertente cultural, mais e melhor conhecida”. De facto, a China também tem um espaço no evento “dois em um” que se realiza anualmente, já que tem vindo a ser seleccionada uma província para se exibir lado a lado com os países de língua portuguesa.

 

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“Foi uma ideia muito boa agregar sempre uma província convidada. Não tem um grande impacto no momento, mas tem um efeito. As pessoas começam a interessar-se pela cultura do outro. Quando vêem que nos interessamos por aquilo que é deles, também se vão interessar pelo que é nosso. É uma questão de reciprocidade e de amabilidade”, sustenta Maria Antónia Espadinha, vice-reitora da Universidade de São José.

Para o editor e jornalista Rogério Beltrão Coelho, o Festival da Lusofonia tem, de facto, essa valia de ser “um ponto de encontro”. “Como todos os arraiais de acto paroquial, [o festival] é provinciano, mas tem todo o mérito. É capaz de ser um pouco pimba, mas o pimba faz parte da nossa cultura.” No entanto, “se se disser que – a par daquilo que se faz – se devia fazer outro tipo de coisas, se calhar deveria”, observa.

Jorge Rangel, que preside ao Instituto Internacional de Macau (IIM), afina pelo mesmo diapasão. “É evidente que [o intercâmbio cultural] existe, mas podemos ir mais longe”. Após a transição, em 1999, andou-se um pouco à procura do que devia (ou não) ser valorizado, até que chega um “sinal” da China – que, em 2003, atribui a Macau esse papel de plataforma económica e comercial. Ora, “a cultura tinha que vir a seguir, porque esta ligação não foi criada de uma forma artificial. Era o retomar de uma vocação histórica de Macau como entreposto privilegiado dos países de língua portuguesa. O melhor legado de Portugal – do Ocidente – foi a parte cultural (…) e Macau só podia manter a sua diferença, justificando que fosse especial, e mostrando a visão que a China tinha”.

Antropólogo, e também jornalista e editor, Carlos Morais José subscreve: “É graças a Pequim que há um novo impulso no intercâmbio cultural, começando-se a sentir, logo em 2003, pelas autoridades de Macau muito mais apoio e interesse nas relações com os países lusófonos. É perceber, de alguma maneira, que esse é o destino de Macau”.

 

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Letras com significado

Outras acções para propiciar um maior intercâmbio foram florescendo nos últimos anos, destacando-se o Festival Literário Rota das Letras. Inaugurado em 2012, faz convergir na Primavera em Macau dezenas de escritores, músicos ou tradutores provenientes de diferentes países de língua portuguesa e da China, criando terreno fértil para o entrosamento.

“O festival aparece um pouco porque olhámos à nossa volta e havia muito boas intenções (…), mas não algo palpável e real, que não fosse uma conferência, uma sessão, um dia. Queríamos fazer uma coisa visível, mais longa, e que deixasse um rasto e pensámos num festival que juntasse em Macau ao longo de vários dias pessoas desses dois mundos”, explica Hélder Beja, subdirector do Rota das Letras.

Precisamente na tentativa de deixar esse “rasto”, o festival culmina com a publicação de um livro trilingue (português, chinês, inglês) de contos subordinados a Macau escritos pela pena de autores convidados – a maioria aceita esse desafio – e pelos participantes de um concurso de contos aberto para o efeito. “Temos conseguido”, sublinha Hélder Beja, reconhecendo que “o festival tem de crescer” e “sedimentar-se” antes de voos mais altos.

Fundado pelo jornal Ponto Final, o festival tem outros parceiros privados e conta com o apoio do Governo. “Se o festival não fosse parcialmente subsidiado seria insustentável. O apoio do Governo é fundamental, do ponto de vista da infra-estrutura é essencial – não o poderíamos fazer sem os espaços que eles concedem, e do dinheiro também”, admite Hélder Beja.

 

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Yao Jing Ming, também subdirector do Rota das Letras, ex-vice-presidente do Instituto Cultural e tradutor de obras de autores portugueses como Fernando Pessoa ou Eugénio de Andrade, também viu no aparecimento do festival um balão de oxigénio. Globalmente, constata um aumento do intercâmbio cultural sino-lusófono que radica na abertura da China ao mundo. “A actividade económica e comercial dá impulso, dinamiza o movimento cultural: há mais livros publicados, um maior intercâmbio, mais actividades, mais visitas, mas sobretudo entre a China e o Brasil”, anota Yao Jing Ming.

Márcia Schmaltz, académica, natural do Brasil e falante de mandarim, também coloca a abertura da China ao mundo – em particular a entrada na Organização Mundial do Comércio em 2001 – como o ponto de viragem. “Foi o momento em que desabrochou. A partir de então, passou a intensificar essas relações. Depois chega o boom económico, com o movimento cultural a reboque. Começam a surgir estudiosos interessados, acordos de cooperação, estabeleceram-se agendas e começou-se a dar importância à vertente cultural.”

“Estamos a ver crescer esse intercâmbio entre Macau, China e os países de língua portuguesa e há cada vez mais curiosidade de ambas as partes, transcendendo, inclusive, as questões meramente linguísticas”, sublinha a docente, acabada de regressar do “Cruzamentos: Brasil, Portugal e Grande China”, um evento que teve a sua segunda edição em Julho, em São Paulo, depois de uma primeira na Universidade de Macau no início de 2013.

 

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Com efeito, precisamente na Universidade de Macau, por via do Mestrado de Chinês/Português do Departamento de Português, têm vindo a ser concebidas iniciativas para um melhor conhecimento da cultura do outro, com a produção literária a surgir como resultado. Foi no âmbito do curso que, em 2012, nasceu a ideia de traduzir clássicos da literatura brasileira para o chinês, um projecto com o apoio da Fundação Biblioteca Nacional do Brasil e o Ministério das Relações Exteriores através do Consulado do Brasil em Hong Kong e Macau, que aconteceu no âmbito das acções de promoção da literatura do Brasil em todo o mundo.

Trabalhando só com os clássicos da literatura brasileira que integram o domínio público – cuja data de publicação data de há mais de 60 anos – a escolha recaiu sobre O homem que sabia javanês, de Lima Barreto, Laranja da China, de António de Alcântara Machado, num catálogo que inclui Macário, de Álvares de Azevedo. Também vertido para o chinês por estudantes foram obras da autoria de Isabel Mateus, escritora portuguesa radicada no Reino Unido ao abrigo de uma parceria. A publicação mais recente, composta por 14 contos d’ O Trigo dos Pardais, obra dada à estampa em 2009 e incluída no Plano Nacional de Leitura, foi lançada em Abril em Macau. Em 2012, a Universidade de Macau começou a ser palco da Semana da Cultura Brasileira, com mostras culturais, filmes, exposições, gastronomia e encontros literários.

A aproximação também se faz, naturalmente, pela língua. Maria Antónia Espadinha dá o exemplo dos Institutos Confúcio que “não levam só a língua, mas também a cultura, pequenas realizações culturais que vão cativar as pessoas”. Já no sentido inverso, e no particular de Macau, às vezes de tudo o que se precisa é de um pretexto para descobrir, seja através da gastronomia ou da música. “Basta pensar nas crianças que frequentam uma escola onde aprendem português e depois têm uma actividade: os pais vão e gostam e cultivam.” Contudo, ressalva, “não se pode fazer em dez anos aquilo que não foi feito em 450. É devagarinho”.

 

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Concertar estratégias

Apesar da percepção de que se tem vindo a propiciar o encontro cultural em Macau – ou pelo menos mais do que no passado –, paira o consenso de que falta uma estratégia concertada e mais abrangente para um efectivo fomento do intercâmbio. Esta deve reunir a parte institucional e todos os agentes culturais adstritos, a começar pelas próprias associações representativas de cada uma das comunidades da lusofonia. “Se cada entidade quiser avançar há muita coisa que se pode fazer”, aponta o presidente do IIM, dando o exemplo de uma iniciativa que coorganiza que cai na esfera do intercâmbio cultural e que juntou apoios em diversas frentes: o Encontro de Poetas Lusófonos e Chineses.

Depois de duas edições em Macau (2006 e 2013), poetas lusófonos e chineses voltaram a reunir-se, em Junho, em Lisboa, uma iniciativa que contou com o apoio da Fundação Macau e do Instituto Cultural.

Neste capítulo de iniciativas, Yao Jing Ming aponta algumas sugestões. Uma delas é a eventual criação de uma entidade com objectivos idênticos ao Fórum Macau, mas com a missão de servir como plataforma entre dois mundos no prisma cultural. “Não precisava de uma estrutura tão grande, mas era bom poder congregar pessoas de todos os países lusófonos e da China para puderem planear, discutir e falar”, defende. O académico considera que um “fórum cultural” seria “bastante eficaz”. Outra alternativa, adianta, poderia passar por “uma comissão, com um representante de cada país, que reuniria uma ou duas vezes por ano para debater assuntos de interesse, aproveitando as condições vantajosas de que Macau goza”.

Já para Jorge Rangel, atendendo a que Pequim declarou posteriormente que o Fórum Macau tem “uma missão mais abrangente”, que “vai muito para além da economia e do comércio e pode entrar em todas as áreas, desde a administração pública até ao desporto, passando obviamente pela cultura”, o Fórum deveria chamar a si essa incumbência. Echo Chan reconhece que “há sempre espaço para mais e melhor”, até porque “o intercâmbio cultural é um importante instrumento para incentivar o desenvolvimento das relações económicas”, mas entende que, volvida uma década, o Fórum Macau se tornou “uma referência também ao nível cultural”.

Por sua vez, Carlos Morais José lamenta que “não tenha havido uma estratégia de permanência cultural” na China por parte de Portugal. “A prova disso é que não temos sequer um Instituto de Sinologia. Isso podia ter sido feito em Macau. Portugal tem 500 anos de contacto com a China e não temos uma sinologia constituída, ao contrário de países que nunca tiveram esse tipo de contacto, como a Alemanha, Inglaterra, França, Espanha e Itália (…). Começámos há pouco tempo e muito limitadamente em Portugal, numa ou duas universidades, mas paradoxalmente Macau nunca foi aproveitado nesse sentido”, considera.

O editor e jornalista vê no capital humano a via do reforço do intercâmbio cultural. Por isso diz apoiar e muito as trocas de estudantes entre Portugal e Macau, “porque, de facto, assim se consegue criar laços reais”. Mas, por outro lado, insiste que “é preciso investimento na parte mais teórica, mais chata: temos de ir à procura daquilo que é fundamental na cultura chinesa, para podermos compreender a contemporaneidade”. Por outras palavras, “não a podemos compreender sem sabermos de onde é que ela vem”.

 

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Actualidade China e lusofonia à sexta em programa de TV

O canal em língua portuguesa da Teledifusão de Macau (TDM) estreou, no início de Agosto, o programa “Macau 360°” que dá destaque à actualidade das relações China-países de língua portuguesa. Apresentado pela jornalista Catarina Vaz, o programa vai para o ar às sextas-feiras pelas 21h15, a seguir ao Telejornal.