Jardins de Macau | Uma extensão da casa

A população de Macau, tanto fixa como não permanente, acaba por encontrar nos jardins da cidade uma extensão dos seus apartamentos. E ali se reúne para fazer exercício, descansar, conversar, namorar ou tocar um instrumento musical, gozando de um cenário mais inspirador

 

 

Jardim Lou Lim Ieoc_GLP_17

 

Texto Luciana Leitão | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

São espaços que os residentes do território usam diariamente para passear, fazer exercício físico, conversar, jogar às cartas, cantar ou ensaiar. Vêem-se pessoas com mais idade, jovens, famílias inteiras e turistas. Numa altura em que muito se fala sobre a alta densidade populacional dos escassos 30 quilómetros quadrados de território, os jardins de Macau são cada vez mais usados pela população.

Passa-se por debaixo de um arco em forma de lua e por uma figura de pedra no solo e encontram-se várias pessoas, logo pelas 11 da manhã, num dia de semana, a passear no Jardim Lou Lim Ieoc. Há quem faça exercício físico, enquanto outros passeiam crianças ou cães e ainda há os idosos sentados nos bancos a conversar. É considerado o jardim mais chinês da cidade.

 

Jardim Camões_GLP_14

 

A morar a poucos metros de distância, junto ao Mercado Vermelho, Lucinda Coelho, macaense, vestida com traje de ginástica, todos os dias se desloca até ali com a sua neta para passear. “Foi aqui que a minha neta deu os primeiros passos”, conta, sorrindo. Entre os motivos que a levam a dar tanto uso a este espaço público, Lucinda menciona alguns: “É calmo e tem poucas pessoas. Além disso, o tratamento das flores e plantas é um dos melhores de Macau”. Assim, já faz parte da sua rotina ali caminhar entre as 10h15 e as 12h00 para espairecer.

Continuando a circular pelo jardim, encontram-se várias pessoas a fazer tai chi, outras a passear, enquanto casais de namorados trocam carícias. Debaixo dos pagodes um grupo de músicos ensaia, inspirando-se no cenário pacífico, no meio da cidade.

 

Jardim Camões_GLP_12

 

No Jardim Camões, também num dia de semana, por volta das 11h30, são muitas as pessoas que ali se encontram. Logo à entrada, vêem-se jovens e idosos a usar as máquinas de exercício, enquanto outros estão sentados, em amena cavaqueira. Continuando a percorrer o jardim, passando a estátua de André Kim logo à entrada, ainda se encontram vários residentes a praticar tai chi, alguns ao som de música chinesa tocada a partir do telemóvel. Tony Un mora ali perto e costuma dedicar parte das suas manhãs e tardes a praticar tai chi no Jardim Camões. “Tem uma área considerável, muitas árvores e vários idosos”, diz, explicando o seu apreço pelo local.

Por seu turno, Jacqui Magno, turista das Filipinas, também aqui se encontra, mas pela primeira vez. “Vim de férias por um mês a Macau”, diz. A utilizar o parque infantil com a filha, a mãe diz que o jardim “é limpo”, contrariamente ao que se vê no seu país de origem. Aliás, a turista garante que poucos jardins se vêem naquele país do sudeste asiático. “Não se vêem jardins assim, nem árvores. O clima é demasiado quente e as pessoas vão para os centros comerciais, para gozar do ar condicionado”, refere.

A brincar com o filho no parque infantil está Karen Wa. “O meu filho gosta de cá vir, moramos aqui perto”, diz, justificando a escolha. Assim, aqui se deslocam todos os dias de manhã, até para a criança gozar de algum ar mais puro. “É bom, tem muitas árvores e não tem demasiada gente. Posso relaxar”, afirma. Porém, apesar de gostar do ambiente, acaba por aqui passar tanto tempo, mais por comodidade, já que o seu favorito se situa na Taipa. “Gosto do jardim [junto às casas-museu]. É muito bonito e tem uma igreja antiga”, diz.

 

Jardim Lou Lim Ieoc_GLP_04

 

Um jardim chinês pouco tradicional

De acordo com o Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), existem 34 jardins e parques espalhados por toda a região. Olhando para a oferta existente, o arquitecto paisagista António Saraiva aponta que os jardins são muito importantes para o quotidiano dos residentes. São muito usados sobretudo pela comunidade chinesa, que acaba por ter mais “a tradição de ir aos jardins, desde os velhotes, que neles vão conviver, apanhar ar, praticar tai-chi ou passear os passarinhos, até aos miúdos que vão neles brincar”. O jardim Lou Lim Ieoc é o seu favorito: “É especial porque é um jardim de estilo chinês, bastante puro, embora tenha um ou outro elemento já um bocadinho alterado face aos jardins chineses mais tradicionais”, diz, salientando que é por isso único aqui e na região vizinha.

Tratando-se de um jardim chinês, tem algumas características que fogem à tradição. “A ponte das nove curvas é todo às curvas, enquanto que nos jardins mais tradicionais as pontes são compostas por segmentos de recta”, refere a título de exemplo, acrescentando: “Há no Jardim Lou Lim Ieoc um outro lago mais pequeno que tem uma ponte em segmentos de recta. Por outro lado, são bastante vulgares as pedras que têm o topo plano. Isto porque o proprietário do jardim gostava de ver vasos em cima dessas pedras.” A iluminação também foge dos elementos tradicionais, por recorrer a candeeiros modernos.

 

Jardim Camões_GLP_02

 

Ainda assim, para António Saraiva, há uma característica particularmente especial. “Se estivermos num ponto do jardim e olharmos em determinada direcção vemos um tipo de paisagem; quase no mesmo ponto, olhamos noutra direcção e vemos outro tipo de paisagem; olhamos numa terceira direcção e surge-nos ainda um outro tipo de paisagem”, declara, esclarecendo que tal reflecte um engenho da parte do criador.

Ao longo dos tempos, o jardim tem vindo a sofrer alterações. “O primitivo era sensivelmente maior do que o actual, mas por morte deste [fundador], os filhos retalharam o jardim”, refere. Assim, hoje o espaço onde se situa a escola Pui Ching pertencia ao jardim, enquanto do lado norte há uma série de casas que roubaram espaço ao Lou Lim Ieoc, tornando-o mais pequeno. “É agora mais pequeno do que o inicial e além disso está rodeado por uma série de prédios, tem menos luz e está mais abafado.”

 

Jardim Lou Lim Ieoc_GLP_12

 

Não se trata, porém, do único jardim chinês de Macau. “Há outro na Taipa, o da Cidade das Flores, que também foi concebido por um técnico chinês. Tem vários elementos que são característicos dos jardins chineses, mas não tem as montagens de rochas nem a variedade de paisagens que o Lou Lim Ieoc oferece”, descreve.

O arquitecto também destaca o Jardim Camões, por estar muito ligado à história da região. “A propriedade – casa e terrenos anexo – foi alugada, em torno de 1800, à Companhia das Índias Orientais. Os ingleses gostam de jardins e têm o seu estilo próprio, e portanto deram ao espaço um tratamento característico e muito diferente do que foi dado ao Lou Lim Ieoc”, refere, esclarecendo que “tem uma grande variedade de árvores, e nele existiam viveiros que serviam de entreposto de plantas da China que depois eram mandadas para Inglaterra”. Naquele tempo, a cidade era pequena e a construção de um espaço com aquelas dimensões é quase um “milagre”, apenas possível por se situar no limite da península.

 

Jardim Camões_GLP_04

 

Entre os outros jardins, um em especial sofreu sucessivas alterações ao formato original. “Fazia parte de uma grande alameda inaugurada em 1898 para celebrar o quarto centenário da descoberta do caminho marítimo da Europa para a Índia. Esta alameda ia desde o Jardim da Flora até ao Jardim Vasco da Gama. Depois o espaço foi sendo sucessivamente retalhado para a construção de equipamentos úteis e necessários”, explica Saraiva, acrescentando que no fim esse grande jardim ficou reduzido a três cantos: “O Jardim Vasco da Gama, o da Vitória e o da Flora”.

Entre os espaços mais recentes, o arquitecto destaca o parque municipal Dr. Sun Yat Sen, que era, aquando da sua construção, um aterro sanitário. “Nessa época não havia nenhuma ponte de Macau para a Taipa (a primeira só foi finalizada em 1974) e a solução mais fácil era deitar o lixo num local desabitado, nos extremos da cidade, num sítio que na altura era um pântano.” Depois de queixas do município vizinho de Zhuhai de que o aterro estaria a ultrapassar o limite fronteiriço, chegou-se a acordo e foi assim que nasceu o novo parque. “Hoje não se tem ideia de como aquele espaço era horrível e como sofreu uma transformação positiva ao nível ambiental e até ao de escala.”

 

Jardim Lou Lim Ieoc_GLP_18

 

A introdução de fontes pela mão do engenheiro Henrique Vasconcelos representou uma reviravolta nos espaços da cidade. “Ao contrário dos jardins que são sobretudo estáticos, as fontes têm movimento e variedade – há fontes bastante bonitas, como as por detrás do Centro Cultural de Macau.”

Para o futuro, há sugestões para que os espaços verdes ganhem novos contornos por entre as torres de betão. O arquitecto sugere, por exemplo, uma ligação entre o novo Parque Central da Taipa, a montanha e o mar, “um corredor verde que ligasse esses dois pontos, ou seja, o yang e o yin. Já na península de Macau, António Saraiva sugere uma ligação desde a estátua da Kun Iam (representativa do mar e da nova Macau) ao monte da Guia (representativa da montanha e da Macau antiga).

 

Jardim Lou Lim Ieoc_GLP_07

 

Jardins em altura

No que toca a espaços verdes, não faltam sugestões de especialistas para o seu aumento tanto qualitativo como quantitativo. A arquitecta paisagista Isabel Lúcio defende que a região possa albergar ainda mais espaços verdes com uma maior aposta em zonas pedonais. “Todas as zonas pedonais deviam ter circuitos verdes onde as pessoas com crianças possam fazer um circuito mais confortável, sem ter o barulho dos carros constantemente, ao se usar árvores para abafar o barulho, a poluição e a confusão.”

Para contrariar a falta de espaço, becos e travessas podem ser por isso melhor aproveitados, trazendo assim “um bocadinho de verde” a mais zonas, sem necessariamente ter de se construir mais jardins. Até mesmo os terraços nos topos de prédios residenciais poderiam ser usados para esse efeito, ainda que a respeitar algumas regras. “O terraço é considerado zona técnica, que tem de estar livre de qualquer obstáculo. Assim sendo, tem de haver regras para se construir jardins nesses espaços”, aponta Isabel Lúcio, não deixando de parte pequenos problemas que possam surgir com a utilização desses espaços para jardins: “É preciso ter cuidado, porque, em caso de incêndio, as pessoas que estão no prédio têm de poder sair para o terraço sem obstáculos”. Por isso, defende a arquitecta, um bom começo era apostar nos prédios mais antigos e mais baixos, onde há uma menor densidade populacional.

Quanto a jardins novos, Isabel Lúcio destaca o Parque Central da Taipa, uma área com mais de 24 mil metros quadrados aberta ao público em 2013. “Foi uma boa ideia construir esse espaço verde, num sítio onde há muitos prédios altos. É bom ter ali um espaço aberto onde as pessoas possam desfrutar de várias actividades”, diz.

 

Jardim Camões_GLP_05

 

Um lado selvagem

Um dos espaços preferidos do arquitecto Francisco Vizeu Pinheiro é um segredo bem guardado, já que não está ainda aberto ao público: “A fábrica desactivada de panchões, na Taipa [a Iec Long]. O espaço está abandonado há 35 anos e as árvores e arbustos pequenos cresceram. É um lugar muito natural, embora um pouco selvagem devido à falta de manutenção”. Uma das ideias que se tem para este espaço é a sua transformação para parque público, o que seria bem-vinda. “É uma zona muito agradável e grande que pode ser recuperado mantendo as influências chinesa e portuguesa.”

Especialmente na península de Macau, há ainda espaços para mais verde, sobretudo no Centro Histórico e na zona do Porto Interior, ambas densamente habitadas e utilizadas. “Macau precisa ainda de mais árvores para purificar o ambiente e dar sombra, também porque as árvores reduzem a temperatura e absorvem as partículas”, diz Vizeu Pinheiro.

Para o arquitecto, os jardins locais acabam por ser “a sala de estar dos idosos” e um espaço de escape para aqueles que vivem em apartamentos pequenos. “Não se pode convidar os amigos para ir a casa, por isso vai-se ao jardim para respirar ar fresco. Os jardins têm sobretudo a função de relaxamento mental e espiritual. Tem luz, vida, som, água e os companheiros – componentes de socialização que em casa não há.”

 

Jardim Lou Lim Ieoc_GLP_15

 

*****

Os imponentes

 

JARDIM CAMÕES

Era propriedade de um dos homens mais ricos de Macau, o conselheiro Manuel Pereira, e nela existia uma casa senhorial, construída em meados do século XVIII, que ainda hoje está de pé, a Casa da Gruta de Camões. Por essa época começava a expansão inglesa na China. Foram os ingleses que ao gosto romântico da época criaram, sob cerrado arvoredo, estreitas alamedas seguindo a orografia do terreno, para o que mandaram, inclusivamente, vir jardineiros de Inglaterra. Em 1833 foi extinta a Companhia das Índias e a propriedade voltou a ser administrada pela família do conselheiro Manuel Pereira. Em 1885, a propriedade foi vendida ao governo de Macau por 35 mil patacas.

 

JARDIM LOU LIM IEOC

O único de estilo chinês. Foi mandado construir pelo comerciante Lou Cheok Chin (1837-1906), que em 1870 se fixou em Macau e que para tal contratou em Cantão os serviços de dois artistas Lau Kat Lok e Lei Tat Chun, a fim de nas húmidas várzeas do Tap Seac construírem um jardim chinês ao estilo do século XIV, de Suzhou. Baptizado de Jardim das Delícias, acabou por ficar conhecido pelo nome do seu proprietário ou do seu primogénito, comummente designado por Jardim do Lou Kau ou Jardim do Lou Lim Ieoc. Actualmente ocupa uma área de 1,23 hectares, cerca de metade da inicial, pois após a morte de Lou Lim Ioc os seus descendentes alugaram, em 1938, parte do jardim à escola Pui Cheng e mais tarde à Escola Leng Nam. A partir de 1951, uma grande parte da sua área foi urbanizada. Em 1973, foi adquirido pelo governo aos descendentes da família Lou. Depois de ser totalmente recuperado, abriu ao público em Setembro de 1974.

 

JARDIM DE SÃO FRANCISCO

É o único situado no que é hoje a baixa da cidade. Construído em meados do século XIX, foi projectado por Matias Soares, e era um verdadeiro passeio público: era frequentado pelos membros de abastadas famílias macaenses, que ali se deslocavam para ouvir a Banda Militar actuar num coreto que existiu até 1935. Era limitado a sul pelas águas da Baía da Praia Grande antes da execução dos aterros que alargaram a área da cidade. Possui várias arcadas adossadas ao muro que o separa do Quartel de São Francisco.

 

JARDIM DA FLORA

Os primórdios deste jardim remontam aos meados do século XIX, quando o padre Vitoriano José de Sousa e Almeida adquiriu uns terrenos situados fora de portas e nas faldas de um monte escalvado – a Guia – pedindo ao arquitecto macaense José Tomás de Aquino que lhe projectasse um palacete, o qual foi construído em 1848. O local era farto em águas, mas convenientemente afastado dos solos pantanosos onde mais tarde se viria a construir o Jardim de Lou Lim Ieoc. Nesta situação veio, com o rodar dos anos, a aparecer um belo jardim. Em 1873, o padre vendeu a propriedade ao governo, tendo o palacete servido como residência de verão do governador. A área actual do jardim é de 1,77 hectares, muito inferior à inicial, em virtude da construção do antigo Quartel da Flora e da Escola Infantil D. José da Costa Nunes.

 

JARDIM DA MONTANHA RUSSA

Em frente ao colégio D. Bosco, encontra-se este jardim implantado numa pequena elevação de terreno. Foi durante anos espaço preferencial de piqueniques de abastadas famílias macaenses. Foi recuperado em 1886 com projecto do arquitecto paisagista Óscar Knoblich e da arquitecta Paula Castilho.

 

JARDIM DE VASCO DA GAMA

Situado entre a Rua Ferreira do Amaral, a Calçada do Gaio e a Estrada da Vitória, foi inaugurado em 1911. É da autoria de Tomás da Costa e uma homenagem ao navegador Vasco da Gama. É juntamente com o Jardim da Vitória o que resta da antiga Avenida Vasco da Gama, aberta em 1898.

 

JARDIM DA VITÓRIA

Serve de ligação entre a Avenida Sidónio Pais e a Estrada da Vitória, tendo uma área de apenas 0,19 hectares. Tem um valor histórico e era antigamente conhecido por Campo dos Arrependidos, local onde se travou parte dos combates contra os invasores holandeses que se pretendiam fixar em Macau, mas foram derrotados no dia 24 de Junho de 1622.

 

JARDIM INTERIOR DO LEAL SENADO

De pequena dimensão (tem 290 metros quadrados), tem um estilo único em Macau, no sentido de integração arquitectónica num estilo comum em palacetes portugueses entre os séculos XVII e XIX.

 

PARQUE DR. SUN IAT SEN

Junto ao Canal dos Patos, era antes um aterro sanitário. Com uma área de 5,7 hectares, foi aberto em Junho de 1989 por ocasião do Dia da Cidade. A construção iniciou-se em 1989, sob a assinatura do paisagista Francisco Caldeira Cabral e o arquitecto António Braga.

 

PARQUE DA GUIA

Sobranceira à cidade de Macau, a Colina da Guia apresentava há um século um aspecto árido. Aí foi iniciado, em 1883, um valioso trabalho de arborização sob a orientação do agrónomo Tancredo Caldeira do Casal Ribeiro.

 

Fonte: Obra Jardins e Parques de Macau (1993), da autoria de António Estácio e António Saraiva