Texto e Fotos Cláudia Aranda
No princípio só havia ruínas e desolação. Hoje, os trabalhadores e protagonistas da história da restauração do Parque Nacional da Gorongosa, na província de Sofala, no centro de Moçambique, orgulham-se dos “passos enormes” que foram dados entre 2004 a 2015 para salvar a biodiversidade desta região e recuperar a fauna bravia perdida nos anos da guerra civil (1977-1992), seguidos de uma década de abandono.
A nossa aventura começa connosco instalados num jipe sem capota – sobre nós apenas o céu a proteger-nos. Ao volante está o guia Simba Munyambo – Simba como o Rei Leão do filme da Walt Disney – que é original do vizinho Zimbabwe, e é quem nos vai levar no nosso primeiro safari na selva da Gorongosa. A expectativa é enorme, que animais vão cruzar-se com o jipe de Simba?
A savana estende-se à nossa frente, pontilhada de verde e dourado. O horizonte recortado pelas esguias palmeiras ilala e os ramos de embondeiros gigantes. Entramos na floresta de acácias amarelas. Ao longe a serra da Gorongosa, envolta na neblina e protegida pela floresta tropical. É lá onde nascem os rios que alimentam as planícies da humidade indispensável à vida. As chuvas e as inundações sazonais da savana permitem a existência de uma variedade de ecossistemas e desenvolver aquela que já foi uma das mais densas concentrações de vida selvagem em África. No lago Urema, desaguam os rios Vunduzi, Urema, Nhandugue, Muaredzi, que chega do planalto de Cheringoma. É aqui, nas margens verdes do lago que a vida animal converge para matar a sede. No horizonte desenham-se os dorsos graciosos e as poderosas armações de uma variedade de antílopes, que nos observam à distância, desconfiados, enquanto nós os olhamos, maravilhados. Ao longe, junto às águas turvas do lago, há crocodilos-do-nilo que, dengosos, nos espreitam.
A Gorongosa é “o parque ecologicamente mais diversificado do mundo”, escondendo “tesouros de biodiversidade”, descreveu o professor Edward O. Wilson, uma autoridade mundial em biologia da conservação. Em 2011 o professor juntou-se ao esforço de salvar o ecossistema do parque e escreveu um livro, Uma Janela para a Eternidade: A Caminhada de um Biólogo pelo Parque Nacional da Gorongosa. No capítulo “A preservação da eternidade”, o professor alerta: “Desde que nasci, há 84 anos, a população humana triplicou. As regiões em estado selvagem da terra estão a diminuir em conformidade, em área e na mente humana. A natureza permanece algo que existe por aí, remota, uma caricatura no ecrã de um televisor, dispensável, a acabar, acabada – incorporada no custo de um campo de petróleo ou de uma operação de exploração de madeira”. Wilson prossegue, dizendo que a salvação da biodiversidade deve ser concebida como “meio de melhorar a qualidade da vida humana”. É esse mundo alternativo que se está a tentar salvar na Gorongosa e em outros parques e reservas do mundo.
Levantar a Gorongosa das cinzas
Foi no acampamento do Chitengo, que acomoda quem chega, que conversámos com muitos dos protagonistas da história de restauração do parque. Domingos João Muala, mestre em história, dedica-se a documentar e a analisar a evolução do parque. Ele, que é também autor do livro Contos da Gorongosa, que colecciona histórias da tradição oral local, deseja que a zona constitua “um exemplo para Moçambique e para o mundo” de recuperação e conservação da natureza e da melhoria de vida das populações. “Um parque natural não deve servir só para turismo, é também um lugar histórico, um museu vivo. Temos que trazer cá estudantes locais e internacionais para verem como é possível, em África, restaurar um parque que estava totalmente destruído”, diz.
Hoje, a Gorongosa é lugar de confluência de cientistas, ambientalistas e especialistas em desenvolvimento, moçambicanos e estrangeiros, vindos de universidades locais, portuguesas, mas, sobretudo, norte-americanas. Uns trabalham para a ciência; outros para melhorar a vida das pessoas e das comunidades locais. Em redor da área protegida, designada por zona tampão, com 3300 quilómetros quadrados, vivem 16 comunidades.
Quem acreditou ser possível levantar Gorongosa e o acampamento do Chitengo das cinzas e meteu mãos à obra foi o milionário americano Greg Carr, que todos os dias inspira os trabalhadores moçambicanos e os visitantes nacionais e estrangeiros a não desistirem deste esforço de conservação e a aplicarem esta filosofia noutros lugares do mundo. O filantropo, que fez fortuna nas décadas de 1980 e 1990 com o desenvolvimento e marketing de serviços de voice-mail e Internet, decidiu dedicar 40 milhões de dólares norte-americanos ao projecto de restauração do parque. Lançou-se nesta aventura em 2004 com o acordo do Governo de Moçambique, que assumiu o projecto como estratégico para o país.
Entre 2004 e 2007, Carr investiu mais de dez milhões de dólares na reconstrução e reintrodução de animais no ecossistema. Em 2008, o Governo de Moçambique e a Carr Foundation, que passou a designar-se por “Projecto de Restauração da Gorongosa”, presidido por Carr, anunciaram um acordo de 20 anos para a gestão conjunta do parque.
O objectivo de Carr e desta parceria público-privada é proteger e restaurar o ecossistema local, desenvolver uma indústria turística sustentável que beneficie as populações locais e voltar a colocar a Gorongosa no mapa dos melhores parques de vida selvagem em África.
A maior concentração de leões de África
A primeira tentativa de reconhecer o valor da paisagem e a riqueza da fauna bravia da Gorongosa aconteceu em 1920, quando foi criada uma reserva de caça. Em 1960, a administração colonial portuguesa aumentou a área protegida e declarou a Gorongosa como parque nacional, resultado da reputação que o parque havia alcançado enquanto reserva de caça e destino turístico.
Em 1976, um ano depois de Moçambique obter a sua independência de Portugal, contaram-se 6000 elefantes e cerca de 500 leões, “provavelmente a maior concentração de leões em toda África”, disse-se na altura.
Em 1992, no fim da guerra civil entre as forças do Governo liderado pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e a Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO), que matou mais de um milhão de moçambicanos e arruinou o país, “o parque estava destruído”, conta Pedro Muagura, director de conservação e coordenador do programa florestal do parque. “Mataram-se muitos animais”, que foram utilizados como “fonte de proteínas e de dinheiro para a guerra”, explica Muagura. As populações de mamíferos de grande porte, incluindo elefantes, hipopótamos, búfalos, zebras e leões, haviam sido reduzidas em mais de 90 por cento.
Hoje, os resultados do projecto de restauração começam a ser visíveis. Na última contagem aérea realizada entre Outubro e Novembro de 2014, contabilizaram-se, por exemplo, 535 elefantes (havia 100 em 1992), 11.912 changos (300 em 1992) e 34.507 pivas ou inhacosos (100 em 1992). Os leões mantêm-se em número reduzido. O projecto de monitorização e conservação de leões, do qual Celina Dias faz parte, localizou até agora apenas uns “50 a 60” felinos.
Turistas a salvar a natureza
O turista que visita a Gorongosa está a contribuir para valorizar e proteger a fauna bravia e as paisagens e a melhorar a vida das populações locais – porque as comunidades beneficiam, também, da actividade de conservação e de turismo. “Há 20 por cento das receitas do turismo que vai para cada uma das comunidades”, explica Muala. Para receberem esses 20 por cento as 16 comunidades da periferia do parque têm de cumprir a sua parte do contrato de conservação e zelar pela manutenção e conservação dos recursos. “Se aquela comunidade tem mais caçadores furtivos a entrarem para o parque ou mais fogos descontrolados, então não se qualifica para receber os 20 por cento”, diz.
O mercado interno, composto por turistas nacionais e estrangeiros residentes no país, é quem mais visita a Gorongosa. “Aos fins-de-semana estamos a ter uma grande afluência, acima de 60 a 70 por cento da ocupação, basta termos um feriado para termos 100 por cento de ocupação”, declarou Pedro André Sousa, administrador da Visabeira Moçambique, grupo português proprietário do Girassol Gorongosa Lodfe & Safari, que gere a parte turística do parque.
Na opinião de Greg Carr, o turismo é uma via importante para a sustentabilidade do parque. “Há três coisas que o turismo faz pela Gorongosa: número um, cria empregos para a população local; número dois, quando as pessoas (turistas) pagam as taxas para entrarem no parque estão a tornar o parque sustentável; número três, quando as pessoas vêm aqui de férias e passam a semana a fazerem safaris na selva, apaixonam-se pela natureza talvez mais profundamente do que alguma vez imaginaram. Então, vão para casa, onde quer que seja, com um compromisso renovado de ‘salvar a natureza’. Dessa forma, a Gorongosa pode influenciar o mundo inteiro e levá-las a proteger os lugares em perigo”, conclui Carr.
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Gorongosa em Macau
Fotografia e imagens em movimento para mostrar a fauna bravia e as paisagens do Parque Nacional da Gorongosa vão ser o conteúdo principal da exposição que vai ter lugar na Torre de Macau, entre 13 e 29 de Novembro. A iniciativa é da Associação dos Amigos de Moçambique.
Para o vice-presidente da associação, Carlos Barreto, o Parque Nacional da Gorongosa “é uma história linda com 95 anos de vida, com momentos altos, crises de existência, e é hoje um caso de reabilitação e restauração da vida selvagem com grande sucesso, graças à visão de um filantropo americano [Greg Carr] e do Governo da República de Moçambique que percebeu, em boa hora, a viabilidade desta parceria”. É essa a intenção da associação ao promover a iniciativa: “Mostrar em Macau, aos seus residentes e visitantes, este exemplo bem sucedido”, explica Carlos Barreto.
Vasco Galante, director de comunicação do parque, vê este convite para a Gorongosa se promover em Macau como “uma honra e uma oportunidade”. “Temos participado desde 2006 nestas iniciativas de promoção. Vejo Macau como mais uma janela e mais uma oportunidade de mostrar um sítio que é fantástico, um dos locais mais emblemáticos do mundo no que diz respeito à biodiversidade”, aponta. “É mais uma oportunidade para conquistarmos mais uns corações e mais uns cérebros para a causa” da protecção e conservação da natureza, acrescentou o director da comunicação, que acompanha o projecto desde o seu início.
A Associação dos Amigos de Moçambique organiza a exposição em parceria com a Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM) e o Parque Nacional da Gorongosa (PNG), com o apoio da Torre de Macau e do Fórum de Macau.