Texto Ana Marques Gonçalves | Fotos Paulo Cordeiro, em Portugal
É a Deusa Kun Iam, erguida sobre pétalas de flor de lótus, quem nos dá as boas-vindas. De olhar atento, a reprodução com 2,70 metros em bronze polido da estátua da Deusa da Misericórdia, que a arquitecta Cristina Rocha Leiria desenhou para o Centro Ecuménico Kun Iam em Macau, segue-nos os passos. Entramos no número 142, uma mansão rosa baço igual a tantas outras que se espraiam, indiferentes ao bulício dos carros apressados, na Avenida Almirante Gago Coutinho, e estamos em Macau.
O biombo negro, debruado a dourado, colocado à entrada da acolhedora sala de estar, iluminada por um vitral florido, que deixa entrar apenas a quantidade certa de luz, é o primeiro dos elementos decorativos que nos transportam de Lisboa para Macau – “Todos estes móveis, bibelots, são macaenses e foram doados por sócios, já não se encontram em lado nenhum”, vai contar mais tarde a presidente Maria de Lourdes Vaz Albino, quando entrarmos na sala de recepções oficiais, povoada de recordações e pormenores inconfundíveis, como o candeeiro povoado de pássaros.
Constituída a 11 de Junho de 1966 por 19 fundadores, como uma sociedade com “fins sociais, culturais, recreativos e desportivos” de promoção de Macau em Portugal, a Casa de Macau em Lisboa cumpre plenamente as suas funções. “A associação foi criada com o objectivo de promover os laços de amizade, solidariedade entre os macaenses de matriz cultural portuguesa e também entre esses macaenses e os que se encontravam em Macau ou estavam espalhados pelo mundo”, recorda a presidente, antes de ser interrompida pelo seu vice-presidente.
É João Botas que, ainda antes de lhe perguntarmos, esclarece a dúvida que levávamos na algibeira. “Ao longo dos tempos foi criada a ideia de que a Casa de Macau era só para os macaenses, mas nunca foi. Foi sempre aberta, como eu costumo dizer, a quem tivesse Macau no coração, Macau na alma. E isso está previsto desde os primeiros estatutos, datados de 1965. Essa percepção de que era só para macaenses, no sentido puro do termo, não é verdade, antes pelo contrário”.
Esclarecimento feito, é hora de mergulhar nos 50 anos de história da associação, desde os seus primórdios, aos momentos que a definiram como uma verdadeira sobrevivente no ocaso de entidades semelhantes de outros países com ligações viscerais a Portugal. “Em 1965, o Estado Novo, através da PIDE, tinha acabado de encerrar a Casa dos Estudantes do Império e logo a seguir acaba por permitir a abertura de uma associação que tem algumas similitudes. Temos de pensar que, na altura, a Casa foi fundada com o sentido de apoiar os macaenses que vinham estudar para Portugal”, recorda João Botas, que tem passado as últimas semanas submerso nos arquivos da ‘sua’ Casa para a construção do livro que assinalará o 50.º aniversário.
O segredo para cinco décadas de existência passará pela capacidade de adaptação e regeneração da Casa de Macau, que soube encarar de frente os seus ‘contratempos’. O primeiro, a ausência de sede, um projecto materializado em 1969 no Príncipe Real, que permite que os anos subsequentes sejam de concretização de ideias: exposições, palestras e dois eventos de grande projecção, a pioneira romagem a Macau (“Foi a primeira vez que um grupo de portugueses e macaenses, associados da Casa de Macau, se organizou e foi em excursão a Macau”), e a Quinzena de Macau em Lisboa, cuja primeira edição remonta a 1971.
O segundo, o 25 de Abril. “A Casa de Macau, à semelhança de outras associações, foi ocupada por grupos revolucionários de forma inadvertida. Destruíram o espólio, quer mobiliário, quer biblioteca e arquivo”, conta o vice-presidente. ‘Refém’ de tempos conturbados, a associação contou com o apoio do governador de Macau, José Garcia Leandro, para recuperar a sua independência, reabrindo ao público em 1979.
As duas décadas seguintes pouco trazem que contar. “Havia, talvez, mais participação. As pessoas encontravam-se mais aqui, para conversar, para tomar chá, para jogar”, intui Maria Albino, que se tornou sócia da entidade em 2001. Exímio conhecedor dos registos, João Botas lembra que eram outros tempos. “As pessoas viviam mais na rua, conviviam mais. Havia um número considerável de sócios e amigos da Casa de Macau que saíam de casa para vir para aqui, não passavam tanto tempo em frente à televisão.”
Mas se há um antes e um depois na história da instituição ele estará em 1999, ano da transferência de administração para a China. “É o grande momento em que a instituição é posta a prova, é a prova de fogo”, assume João Botas. Ao teste, a Casa de Macau respondeu presente. “Há um número significativo de pessoas que vem de Macau, uns por receio, outros porque aproveitam para mudar de vida, outros porque querem regressar a Portugal. Nesta conjugação, há uma entrada de sócios.” O ‘boom’ de novos associados coincide com a migração da sede do Príncipe Real para a Gago Coutinho. “Esta mudança para aqui, também provoca algum elã – é tudo novo. Houve um balão de oxigénio.”
Olhando para trás, não há dúvidas que a prova de fogo foi bem superada. “Já passaram 17 anos e estamos aqui com vigor e para durar”, pontua o também jornalista. E os cerca de 500 sócios, espalhados por todos os cantos do mundo, estão aí para comprová-lo.
Ponte formal e informal com Macau
Chegados aqui, impõe-se perguntar: que papel desempenha hoje a Casa de Macau nas relações entre o solo lusitano e a cidade que lhe dá o nome? “A ponte entre Portugal e Macau funciona formal e informalmente. Todas as semanas recebemos pedidos de pessoas, ou porque querem saber coisas relacionadas com Macau, ou porque querem ir trabalhar para lá”, reconhece João Botas, com a presidente a completar-lhe a mensagem: “As pessoas vêem o nome Casa de Macau e não percebem bem o que é, então fazem-nos chegar todo o tipo de questões”. A ligação formal, de acordo com Maria Albino, passa pelo assento no Conselho das Comunidades Macaenses, com sede em Macau. “Nesta altura são 12 Casas e a nossa é a mais antiga”, destaca.
No entanto, é informalmente que as ligações mais se fazem sentir. Vasculhando a programação que a associação oferece anualmente, encontram-se vestígios da herança macaense, os mesmos que se descobrem a cada passo no casarão rosa pálido. “Temos cursos de mandarim, que têm sido bastante concorridos, cursos de fotografia. De quando em vez, vamos tendo umas palestras, de preferência alusivas a temas relacionados com Macau”, enumera João Botas. Mas o epicentro da vida da Casa de Macau não podia ser outro que os chás gordos.
“É obrigatório, porque é tradicional. Temos um chá gordo na altura do aniversário da Casa, em Junho. Nessa altura, faz-se um chá gordo em maior escala. Depois temos o chá gordo da Páscoa e do Natal. E pode ainda acontecer um quarto. Incluímos na nossa programação habitual uma festa que faz parte do calendário nacional, o São Martinho. Como estamos integrados na sociedade portuguesa, absorvemos parte da cultura lusitana e esse costume de confraternizar no São Martinho, com castanhas – nessa altura não há comida macaense. Tipicamente chinês, temos o Ano Novo Chinês”, acrescenta Maria Albino.
Em todas as actividades, têm assento rotativo bolseiros da Região Administrativa Especial de Macau. “Eles são bastantes. Nós acolhemos grupos de dez para cada evento. Tentamos estimulá-los a frequentar a Casa”, conta a presidente. Os estudantes de Macau serão, espera a direcção, parte integrante do futuro da associação que, desde 2015, tem apostado na divulgação da Casa de Macau em todos os meios possíveis, desde a comunicação social às redes sociais, no sentido de captar mais sócios, sobretudo jovens.
Sim, porque ao assinalar 50 anos, é nos 50 seguintes que se pensa. Tem a palavra João Botas: “Se a Casa de Macau já sobreviveu a momentos conturbados, diria que a não ser que haja uma hecatombe, não há nada que possa afectá-la. A Casa de Macau está viva. Há sempre aqui algo que faz toda a diferença. A diferença é Macau. As pessoas continuam a ter Macau no coração. Estou convicto que, continuando neste caminho, dando um passo de cada vez, à medida da nossa perna, e auscultando as pessoas, a Casa de Macau tem todas as condições de progredir. Nós demos o primeiro passo, esperamos que as pessoas respondam. O mais importante é que cada experiência corra da melhor forma. Nós queremos que as pessoas venham e se sintam em casa”.
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25 de Junho: O dia de todos os festejos
0s 50 anos da Casa de Macau serão, seguramente, celebrados com pompa e circunstância, mas a programação das festividades ainda está em aberto. “Estamos a trabalhar no programa. Temos já pensado um conjunto de actividades. Já fizemos um selo, temos um logótipo para ser a imagem transversal aos 50 anos e um carimbo”, elenca a presidente da associação.
Os constrangimentos financeiros, “difíceis de ultrapassar”, obrigaram a associação a centrar as suas festividades no dia 25 de Junho (foi sempre este o dia escolhido para assinalar o aniversário, por ser o mais próximo do dia 24, antigo dia de Macau). Nessa data, a Casa de Macau oferecerá uma missa de celebração, a apresentação do livro sobre a história da associação e de um pequeno filme, um momento musical, a presença de um caligrafista, poesia em patuá e o inevitável chá gordo. “A nossa percepção é que ao longo do ano iremos fazendo as coisas conforme as nossas possibilidades”, concluiu João Botas.
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Fundação Casa de Macau: Uma parceria de duas décadas
Não podemos falar da Casa de Macau sem mencionar a Fundação Casa de Macau, ou não andassem as duas de mãos dadas – por exemplo, a sede da primeira, na Avenida Gago Coutinho, é propriedade da segunda. Nascida a 26 de Julho de 1996, com o objectivo de assegurar e desenvolver o apoio às Comunidades Macaenses e de apoiar as actividades da Casa de Macau, a Fundação está também de parabéns. “O balanço destes 20 anos não podia ser mais positivo, com a afirmação do objectivo no plano de apoio à diáspora macaenses pelo mundo, com a presença em todas as instituições ligadas aos portugueses no Oriente e com o cumprimento total da sua missão com a Casa de Macau, que inclui a comparticipação substancial do seu orçamento anual”, destaca o director coordenador da Fundação. Mário Matos dos Santos não esconde o orgulho sentido pelo trabalho desenvolvido ao longo de duas décadas, no apoio a “todas as manifestações que tenham o nome de Macau, dos macaenses, dos portugueses”.
“Somos uma Fundação reconhecida como membro vivo e activo da nossa sociedade civil”, sublinha, enumerando as actividades – conferências, uma tertúlia mensal, uma biblioteca invejável, protocolos e parcerias infindáveis – que tornaram a Fundação Casa de Macau, com sede no coração do Príncipe Real, um centro nevrálgico para a comunidade. “Começámos do zero e estou orgulhoso pelo que conseguimos e por apoiar uma instituição, a Casa de Macau, com 50 anos, o que é algo fabuloso.” Por isso, Mário Matos dos Santos encara o futuro com “muita esperança” nas ligações da Fundação Casa de Macau no Oriente e em Macau. “São ligações que não se esgotam com tratados e se que humanizam entre povos [portugueses/macaenses e chineses] que sempre se entenderam na perfeição.”
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A gastronomia como âncora
Sobem-se as escadas, vira-se à esquerda, depois à direita. A casa está silenciosa, mas a mesa posta mostra que espera convidados. Dispostas sobre a mesa, as chávenas anunciam que quem ali se encontrar, na sala onde o verde é o tom dominante – das toalhas, às pesadas cortinas floridas que escondem a luz e apenas deixam vislumbrar as flores que enfeitam o aparador ao fundo –, irá beber chá. “Temos grupos de associados que se reúnem copiosamente aqui às terças-feiras para o chá e para jogar Mahjong”, diz a presidente da Casa de Macau em Lisboa, Maria de Lourdes Vaz Albino.
A responsável fala com entusiasmo desses encontros, o mesmo entusiasmo que lhe encontramos quando aponta para a gastronomia como a cola que poderá ligar todos os visitantes da Casa, tenham ou não Macau no coração. “A gastronomia é uma vertente da cultura macaense muito importante e que é muito atractiva para as pessoas”. É pelo estômago que nascem muitos amores e a direcção da associação cinquentenária sabe-o bem. Há muito que os órgãos sociais perceberam que almoços tipicamente regionais seriam o caminho. “Estes almoços são um projecto de várias direcções, mas depois houve sempre limitações e não há continuidade”, lamentou.
Mudar essa descontinuidade é a missão desta direcção. “A gastronomia continua a ser o grande elo de ligação, a grande âncora que faz com que as pessoas venham. Ao longo do tempo, houve sempre vontade de proporcionar comida macaense. Desde o ano passado, à quarta-feira, servimos almoços. Foi um dos projectos que considerámos fundamentais para atrair mais pessoas”, assume João Botas. A solução passará, de acordo com o vice-presidente da Casa de Macau, pelo estabelecimento de parcerias ou protocolos com o Turismo de Macau e a Confraria da Gastronomia Macaense.
“Para mim, esta Casa de Macau e todas as outras, devem ser uma grande montra de Macau no mundo. Mas podem, e devem, ter um papel mais activo. Fruto das suas características, com o recurso a protocolos, devem conseguir oferecer essa ‘alma’ gastronómica às pessoas. Somos o único espaço aberto ao público que proporciona comida macaense. Queríamos ter refeições em permanência, mas não temos capacidade financeira para fazê-lo sozinhos. Precisamos de um pouco mais de apoio.”
Nos últimos tempos, a associação deu formação a um cozinheiro. “Não nos podermos dar ao luxo de querer ir mais longe, porque não conseguimos”, reconhece João Botas, para quem já ficou provado que há comentários positivos por parte de associados e não sócios. A nova meta da Casa de Macau passa então por arranjar uma forma de conseguir que o cozinheiro sirva almoços todos os dias da semana. “É só encontrar a melhor solução para que seja uma coisa que perdure no futuro.” O primeiro passo já foi dado – “a Delegação do Turismo de Macau tem-nos oferecido uns souvenirs para que cada pessoa que venha cá almoçar leve uma recordação de Macau” –, agora falta tornar o projecto gastronómico “o mais sólido e permanente possível”.
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Principais acontecimentos dos 50 anos de vida
1966 – Fundação da Casa de Macau em Portugal a 11 de Junho
1968 – Arrendamento da futura sede
1969 – Inauguração da sede na Praça do Príncipe Real, em Lisboa
1974 – Invasão da sede por ocasião da Revolução de Abril e selagem das instalações
1979 – Reabertura da sede no Príncipe Real
1988 – Declaração do estatuto de Pessoa Colectiva de Utilidade Pública
1999 – Inauguração da sede-social na Av. Almirante Gago Coutinho, em Lisboa
– Condecoração como Membro Honorário da Ordem do Mérito
2002 – Inauguração da estátua da Deusa Kun Iam no jardim da Casa de Macau
2003 – Criação de uma página da Casa de Macau na Internet
2016 – Celebrações do 50.º Aniversário da fundação da Casa de Macau