Retratos | Eternizar profissões em risco de extinção

Os Resistentes: Retratos de Macau é o nome da nova série documental do realizador português António Caetano Faria. Ao longo de dez episódios, o cineasta afasta-se de uma cidade nova, feita de néones e casinos, para recuperar e eternizar os velhos ofícios locais. Filmado a preto e branco, com música da Orquestra Chinesa de Macau, este projecto, em forma de monólogo, tem como objectivo dar voz àqueles que resistiram à passagem do tempo e “confrontar” a população para “um problema” – o desaparecimento destas profissões. Este é o relato na primeira pessoa do realizador português que faz uma viagem por um mundo cada vez mais distante

 

 

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Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

A série Os Resistentes: Retratos de Macau nasce da necessidade que Macau tem de descobrir ou procurar constantemente uma identidade. Da minha parte, nasceu a partir de conversas com pessoas que estão cá há mais tempo e de experiências que fui ouvindo e que foram plantando ideias na minha memória. Creio que foi a necessidade de eternizar profissões que estão a desaparecer. A concepção do projecto começa por esse problema.

Para dar início a esta série saía à rua para falar com pessoas e perceber quais são os negócios mais antigos. Um dos critérios base era encontrar lojas com mais de 50 anos, para também poder dar alguma longevidade ao projecto.

Quis fazer um trabalho onde pudesse preservar imagens, histórias, pessoas e profissões. Quis eternizar estes momentos. O que é que nos liga a Macau? São apenas os casinos? Não. Esta começou por ser uma vila piscatória.

Fui entrevistar, por exemplo, uma loja que vendia equipamento de pesca, e que hoje em dia vende sobretudo materiais para obras. Tiveram de trocar o ramo de actividade. Aí descobres um pouco mais sobre a tua própria identidade, porque esta é a identidade da cidade onde vives.

O sapateiro, por exemplo, teve em tempos um acordo com a Polícia, para quem fazia os sapatos. Aqui há também uma história de amor paralela. Foi através da profissão que se conheceram – ela era costureira. E esta junção é muito feliz porque acaba por proporcionar a abertura da loja. Descobrem-se histórias incríveis, mais do que aquilo que costumamos ler ou aquilo que julgamos ser esta cidade. Penso que muitas pessoas em Macau não sabem da sua existência, não saem da redoma onde vivem.

Estivemos na primeira farmácia chinesa de Macau, que tem o alvará número um. Localiza-se ali perto da Avenida Almeida Ribeiro, onde existe também uma banca de chá. A farmácia tem mais de cem anos.

Existem momentos de silêncio, é quase uma reflexão, emocional, com uma estrutura de montagem e um conceito de imagem transversal a todos os episódios. No início, começa sempre com o entrevistado a olhar para um espelho, vêem-se os olhos e a imagem do fundo da rua. É um confronto entre as profissões antigas, estes senhores com muita experiência e a população. Por isso, no final de cada episódio, também permanecem durante algum tempo a olhar para a câmara e para todas as pessoas que os estão a ver durante aquele período de tempo. É quase desconfortável, quando alguém está a olhar para ti muito tempo e não diz nada. Sentes-te desconfortável. É esse desconforto que eu quero criar ou, por outro lado, espero que se torne um conforto aos olhos daqueles que os ajudam, que talvez passem por ali e digam um bom dia.

Foi uma abordagem muito complicada. Imagina que estás a olhar para estas pessoas de 80 anos e a dizer para se posicionarem à frente da loja a olhar para a câmara. Foi um desafio. Num ou dois episódios falhei planos específicos desta estrutura. O barbeiro, por exemplo, já ouve mal, tem dificuldades em falar, e não colaborou tanto. Há episódios com menos conversa, mais musicais.

Estas pessoas falam dos filhos, das novas gerações e dizem: “Se eu puser aqui o meu filho, vou metê-lo num buraco e, por isso, mais vale a pena fechar a porta”. É uma luta diária.

Também foi muito complicado filmar na sampana, tivemos de pedir autorizações ao porto. Para serem entrevistados, os sampaneiros pediram-nos dinheiro. Não existe o mesmo entendimento em relação a estes projectos culturais. Queriam ser pagos pelas entrevistas, porque no momento em que estamos a filmar, o negócio está praticamente parado. Tive de me preparar para isso, dei mais de mil patacas ao sampaneiro. Recebi um subsídio de 160 mil patacas do Instituto Cultural e da Fundação Macau. Também tive apoio da Casa de Portugal em Macau ao nível de recursos humanos e de equipamento. Penso em continuar este projecto, tenho uma extensa lista de outras profissões, e espero que este projecto ajude Macau a criar um arquivo visual.

 

*A MACAU começa a partir desta edição a apresentar a série documental completa Os Resistentes: Retratos de Macau.