A casa…

A cidade cresceu, a casa da família chinesa tornou-se mais pequena e foi-se divorciando da natureza. Mas na forma de habitar, a cultura e a tradição têm sido mais permanentes do que a arquitectura.

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Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

…e a relação que tem com o dia em que nascemos

Porto Interior. Rua do Visconde Paço de Arcos, número 355, terceiro andar. Entramos em casa de Ziu Iat Sin, 87 anos, mestre de feng shui – uma arte milenar chinesa que estuda a influência do espaço no bem-estar das pessoas.

Nesta casa, todas as divisões estão de portas fechadas. Os cortinados estão corridos, deixam passar fios de luz, tons quentes iluminam o espaço.

Ziu Iat Sin nasceu na Província de Guangdong no seio de uma família endinheirada. Na China, tinha 13 empregadas, um mestre de feng shui, com quem aprendeu tudo o que sabe hoje.

A sala onde estamos é rectangular. “Deve ter forma rectangular ou quadrada”, diz o mestre. “Não interessa se é grande ou pequena, interessa a forma.”

A leitura do feng shui é feita a partir da data de nascimento, explica. Uma bússola antiga e a consulta do Tong Sheng, guia baseado no calendário lunar, vão ajudar a determinar “os conflitos” que uma casa e uma pessoa devem evitar. Mas há regras universais, que não são ditadas apenas pela leitura. “À frente da porta de entrada não deve estar uma janela, porque tudo o que entra, sai e a riqueza não vai entrar nessa família.” Numa consulta, o mestre aconselharia ao cliente a colocação de objectos, como um armário ou um biombo, para bloquearem o caminho.

Ziu Iat Sin diz que em Macau e Hong Kong são várias as pessoas que recorrem a estes serviços. Por mês, este mestre dá cerca de dez consultas, o preço pode variar, começando nas 3000 patacas.

A experiência da arquitecta Joy Choi diz que o feng shui está muito presente na vida dos chineses. “Mas não o divulgam, convidam um consultor pessoal para aconselhamento e passam a informação aos arquitectos ou designers. Temos de pensar, por exemplo, onde deve estar a cama, talvez a área da cabeça não deva estar virada para a água, mas isso depende de muitos factores”, realça Choi, admitindo que a contratação de um mestre depende também das condições financeiras do cliente. “Quem tem posses fá-lo.”

Ao nível da construção, o feng shui não é tão visível na arquitectura vernacular de Macau, realça o arquitecto e urbanista Nuno Soares. “Conseguimos notar em termos de organização dos móveis no interior, mas do ponto de vista da arquitectura em si, ela tem um enquadramento urbano que o acondiciona muito. Já na arquitectura erudita é muito evidente e determinante”, explica.

Uma visita à mansão de Lou Kau permite-nos perceber a importância do feng shui nesta estrutura, que data de 1889. Localizada no número 7 da Travessa da Sé, foi a residência de Lou Wa Sio (Lou Kau), um importante mercador chinês. “Era uma pessoa importante, porque tinha a possibilidade de ter uma casa junto à Sé Catedral, o que na altura não acontecia, as pessoas viviam na zona Norte da península, esta casa era uma marca do estatuto que tinha”, nota Vincent Ho, historiador e académico da Universidade de Macau.

A atenção dada ao feng shui é visível no espaço. Um biombo à entrada pretende trazer harmonia à casa. Vincent Ho chama também a atenção para um dos pátios, onde foi construído um escoadouro de água da chuva em forma de moeda. “Água em chinês também significa dinheiro e se o dinheiro desaparece não é bom, então foi colocada aqui uma moeda igual às [antigas] moedas chinesas.”

 

…foi-se afastando da natureza

À medida que os prédios foram crescendo em altura, o homem foi-se afastando da natureza, diz a arquitecta Joy Choi. O progresso tecnológico só veio acelerar este divórcio. “Na arquitectura vernacular, não tínhamos tecnologias tão avançadas, como elevadores ou ares condicionados, vivíamos mais perto da natureza”, salienta.

Basta pensar nas casas-pátio: “São estruturas baixas, que permitem que o sol e o vento entrem, as janelas são pequenas, mas permitem a ventilação transversal”, explica.

Joy Choi acredita, porém, que em certos casos a tecnologia continua a funcionar em paralelo com as preocupações ambientais. “Procura-se escolher a melhor orientação para o prédio ou casa numa tentativa de aproveitar a ventilação natural.”

 

Prédios altos e modernos_GLP

 

…é um espaço multifuncional

Em Macau, o terreno é escasso, é caro, e existe uma “grande pressão para se ser muito eficiente na forma de utilizar o espaço”, nota Nuno Soares.

Uma divisão pode assumir vários papéis: pode servir para as refeições, para jogar Mahjong, à noite para dormir. “Numa cultura mais ocidental nós temos uma divisão espacial e cada uma das divisões tem uma função especial, embora algumas contactem com outras, mas é feita esta segmentação”, refere o arquitecto português.

Joy Choi concorda. Na cultura chinesa, uma casa deve ser multifuncional e de fácil manutenção. “A mesa de jantar pode ser transformada em mesa de leitura e em espaço de reunião familiar.”

O espaço de arrumações é também, segundo a arquitecta, um elemento importante do lar chinês. Se na casa-pátio, a zona ao ar livre servia para armazenar, na habitação contemporânea, esse espaço passou para o interior. “Faz-se uso da altura, pode armazenar-se num tecto falso, utilizar as paredes ou criar uma espécie de palco no chão e pôr as coisas lá dentro.”

É comum, por isso, a intervenção da população chinesa no espaço residencial. “São interventivos, pintam as casas, alteram os vãos e o interior, põem gaiolas”, indica Nuno Soares.

O arquitecto acredita que, apesar do espaço residencial ter sofrido transformações no aspecto físico, o mesmo não aconteceu com a forma de habitar. “Penso que a cultura é mais permanente do que a forma arquitectónica.”

 

Casa de Lou Kau_GLP_02

 

…é uma propriedade

“Possuir algo é muito importante na cultura chinesa, seja uma casa, uma jóia ou um diamante”, refere Joy Choi. “É mais importante ter do que aproveitar.”

Isto tem levado, segundo a especialista, a um desinteresse generalizado pela decoração do interior dos apartamentos. “Ainda agora cheguei de Milão, onde estive no Salão Internacional do Móvel, e percebi que os italianos pedem empréstimos aos bancos para comprar móveis, mas não para comprar uma casa. Isso é impossível na cultura chinesa”, vinca.

Apesar disso, a indústria do mobiliário está a tentar adaptar-se à dimensão reduzida das casas em Macau. “A mobília tradicional chinesa não encaixa facilmente no espaço moderno, é grande e pesada.” Os chineses, comenta, continuam a preferir sentar-se e dormir em superfícies duras. “O sofá serve apenas para ver televisão, não para ler, porque lê-se na mesa. Mesmo os mais jovens, em geral, fazem-no.”

Joy Choi acredita que Macau deve apostar no estudo do interior do espaço habitacional, de forma a promover uma maior qualidade de vida e adaptar a cultura chinesa à habitação contemporânea. Uma maior aposta nesta área poderá também trazer mais mercado a quem trabalha no sector.

 

…é um lugar chamado família

Gerações de famílias partilharam desde sempre o mesmo espaço. Hoje as casas são mais pequenas, as famílias podem não viver sob o mesmo tecto, mas procuram viver perto. “Muitas vivem no mesmo prédio”, aponta a arquitecta Joy Choi. Neste espaço íntimo, não é comum a presença de estranhos ao núcleo familiar. “Não temos o costume de convidar pessoas de fora”, reforça.

“Tenho amigos muito ligados a outras culturas, que têm uma sala própria para receber convidados e outra para a família, que será um espaço mais informal”, refere a especialista, apontando também que é comum o quarto de hóspedes situar-se perto da entrada, “longe da área mais privada da casa”.

“Ao contrário da tradição ocidental, a casa não é um espaço social”, completa o historiador Vincent Ho.

 

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