Os mistérios do número 80 da Rua das Estalagens

O n.º 80 da Rua das Estalagens é muito mais do que um edifício icónico pela sua traça característica. Além de preservar a história da passagem de Sun Yat-sen por Macau, onde exerceu medicina, a moradia de três andares alberga ainda, por baixo das suas talhas, um antigo cais, que permitia o comércio entre chineses e portugueses. O Instituto Cultural está a preservar o espaço e vai mostrar ao público todas as relíquias descobertas.

 

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Texto Fátima Almeida

 

Tem a face voltada para uma rua onde ainda persistem negócios de décadas – como a venda de tecidos a metro – à medida que se instalam, com a corrente da modernidade, lojas de arte. A faixa à frente da ladeira de casas onde se encaixa é estreita – os carros circulam apenas num sentido – mas por baixo das suas talhas esconde a força da história. Com três pisos amplos, e cada vez mais arejados, o número 80 da Rua das Estalagens, vai abrir as portas para mostrar muitas descobertas, a começar pelos seus anexos onde foram descobertos os primeiros sinais da existência de um antigo cais, tão longínquo que consegue falar do tempo em que portugueses e chineses faziam comércio, ali numa frente marítima que hoje está coberta por pequenas casas e cintos de cimento.

Em 2012, quando o Instituto Cultural (IC) adquiriu o edifício de três andares, por 36 milhões de patacas, para proceder ao seu restauro devido ao valor arquitectónico que constitui, não podia imaginar que ali se escondia esta parte da história. Inicialmente pensava-se que a moradia iria apenas contar a passagem de Sun Yat-sen por Macau, onde viveu e exerceu medicina no consultório privado situado naquele edifício icónico.

Porém, no âmbito dos trabalhos de restauro do número 80, os especialistas do IC, ao levar a cabo a remodelação dos edifícios anexos, descobriram vestígios de uma estrutura em pedra no nível abaixo das fundações originais do espaço. Ao analisar a disposição dos blocos verificou-se que estava relacionada com uma frente marítima que servia o comércio.

Esta tese ganhou consistência quando, ao pavimentar o rés-do-chão da moradia, a equipa de restauro voltou a descobrir outra estrutura de pedra de grande escala, presumindo, depois de escavações arqueológicas, que os blocos sejam um prolongamento dos encontrados no anexo, com mais de um século de história. “Após a realização de escavações arqueológicas, presume-se ser esta parede uma continuação da outra descoberta no anexo, que será anterior ao edifício do número 80 da Rua das Estalagens, com perto de 120 anos de história”, indicou o IC à MACAU.

 

文遺會及傳媒參觀活動草堆街80號

 

Mudanças no projecto

Esta parte importante da história obrigou o IC a repensar o modelo inicial do projecto de modo a efectuar uma preservação mais ampla do espaço. O presidente do organismo, Ung Vai Meng, explicou, durante uma visita ao espaço, em Julho, que quando iniciariam o projecto de restauro a ideia era apenas mostrar a Farmácia de Sun Yat-sen, mas como “esta parte da história, de negócios entre portugueses e chineses, também é importante” foi necessário “mudar o projecto”. “Há cerca de dois anos descobrimos que havia granito na parte de trás da casa, depois durante este ano encontramos mais no subsolo. Se não tivéssemos encontrado estes blocos poderíamos abrir no próximo ano, mas agora precisamos de mais tempo”, referiu.

Com as descobertas surpresa, o IC está também a fazer o tratamento de relíquias que foram encontradas durante os trabalhos de escavação, disse o organismo à MACAU. “Para além de proceder à análise e ao ordenamento de relíquias e vestígios arqueológicos desenterrados, o IC leva a cabo o ajustamento para a utilização do espaço de parte do edifício antigo.”

No interior da moradia eram visíveis toldos no chão e também garrafas de plástico “conectadas” por fios a uma parede, como quando um doente está ligado a uma máquina de hospital, na esperança de respirar melhor. Estes suportes de vida fazem parte de uma técnica para absorver o sal, uma vez que verifica-se a existência de água salgada num espaço que outrora “controlava” a força das ondas. Na verdade, “como as águas subterrâneas de Macau são muito ricas em sal, quando este cristaliza no interior das paredes, as mesmas são danificadas pela pressão interna, provocando descamação do estuque e rachaduras nos tijolos”, indicam os especialistas.

Assim, a equipa do IC, depois de “empreender estudos e análises exaustivas”, seleccionou um sistema de remoção de água e sal baseado num modelo italiano para fazer a recuperação e o tratamento das paredes. “Devido à densidade dos tijolos verdes dos edifícios tradicionais chineses ser mais alta do que a dos tijolos vermelhos, a equipa de restauro inventou um sistema de titulação para injectar uma ‘solução de tratamento’ nos tijolos verdes. Nos testes, a água e o sal foram removidos com sucesso dos tijolos verdes e os resultados foram satisfatórios”, explicou o IC.

 

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Esta descoberta levou de imediato a trabalhos de escavação. Para a preservar e expor a estrutura de pedra, a equipa de restauro reformulou o projecto, alterando a sua estrutura bem como a disposição do espaço interior e dos equipamentos eléctrico e de prevenção contra incêndios, entre outros. As obras de restauro e de remodelação dos anexos foram já concluídas, tendo-se, assim, conseguido a salvaguarda esses vestígios.

Embora o IC ainda não tenha avançado uma data para abrir o espaço ao público, o organismo diz-se empenhado em concluir as obras o mais rápido possível, para que Macau possa ter no seu mapa cultural e histórico mais um local digno de uma visita. Não muito longe do Largo do Senado ou mesmo das Ruínas de São Paulo encontrar-se-á outro polo histórico para população e turistas. “O IC está, de momento, a acelerar as respectivas obras, visando a sua abertura ao público o mais rapidamente possível de modo a permitir à população ficar a conhecer as características e o significado histórico deste edifício.”

Assim, e a fim de abrir o edifício do número 80 da Rua das Estalagens como uma galeria de exposições com valor histórico, o IC tem vindo a levar a cabo uma série de trabalhos, incluindo a reparação do telhado, paredes, murais e relevos decorativos do edifício principal, bem como o restauro dos componentes de madeira das portas, janelas e tectos originais do interior do edifício, utilizando a tecnologia de perfuração e injecção de cimento para melhorar e consolidar as fundações do edifício, garantindo a salvaguarda das mensagens históricas importantes contidas no edifício patrimonial.

No âmbito do mesmo processo de restauro foram demolidos os edifícios anexos antigos e incluídas na planificação novos espaços, como casas de banho e arrecadação, bem como construído um elevador e uma escada pública para ligar cada andar do edifício permitindo que a galeria de exposições seja utilizada por todos de forma mais conveniente.

 

 

Arquitectura de outrora

Ao caminhar pela casa a temperatura vai aumentando desde a entrada até ao último andar. As faces de alguns escorrem água em bica à medida que se espantam com a beleza dos detalhes que o edifício ainda conserva. Mas o desconforto com o calor não será um problema para os visitantes, nem em pleno Verão, uma vez que também foi instalado um sistema de ar condicionado no espaço bem como outras estruturas que garantem a segurança do edifício.

O número 80 da Rua das Estalagens é um exemplo típico e representativo dos edifícios comerciais de outrora em Macau, cujo piso térreo era dedicado ao comércio e o primeiro piso à habitação. As dúvidas iniciais sobre se a moradia teria pertencido SunYat-sen dissiparam-se. O IC, através de pesquisas realizadas em Zhongshan, a terra natal do pai da China Moderna, e de conversas com as pessoas que guardam as suas memórias, confirmou a sua presença naquela moradia histórica.

Assim sendo prevê-se que o espaço se irá chamar Farmácia Chong Sai. Ao mesmo tempo que os visitantes conhecerem o espaço e a vida de Sun Yat-sent em Macau, vão também poder recordar o tempo em que a água chegava perto da Rua das Estalagens e era parada por aqueles blocos de granito permitindo que homens do mar e comerciantes em terra dialogassem ainda que em línguas diferentes.

Durante a visita ao espaço, os membros do Conselho do Património do Cultural aplaudiram a ideia de esta nova descoberta ficar visível ao público mesmo que isso exija um trabalho mais profundo e moroso por parte do IC. Carlos Marreiros, arquitecto e um dos membros daquele Conselho, sublinhou também que há elementos suficientes para acreditar que aquela estrutura fazia parte de uma frente marítima.

“Na construção e tradição chinesa de Macau, a parte das estruturas paralelas já assentam em fundações de granito que aguentam com a madeira dos pavimentos, mas aqui acontece que surgem muitos blocos de granito para que se trate apenas de fundações da casa. Por isso, acredita-se que nesta zona [perto do Porto Interior] existiu um cais”, explicou o arquitecto. Como se veio a comprovar com as escavações, aquela era uma zona alagada “tal como o foi o Tap Seac”, recorda Marreiros. “Há registo de que tudo estava ligado – esta área do Porto Interior e Patane.”

 

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