O Galo, um signo do Sol

O Ano de Galo no calendário lunar chinês inicia-se a 28 de Janeiro de 2017, um número auspicioso para começo de Ano Novo. Em muitas tradições religiosas de diferentes países do planeta, o Galo é uma criatura celestial e votiva. Simboliza a ressurreição solar e espiritual e com o seu canto anuncia isso mesmo: a entrada do novo dia depois de um período de trevas. A ligação directa do Galo com os cultos solares das diferentes tradições religiosas é manifesta.

 

 

 

Texto Rui Rocha

 

O carácter chinês para galo/galinha鸡 (鷄/雞) (mandarim, jī; cantonês, kai) é homófono de dois outros caracteres que designam sentidos positivos, favoráveis: um, 绩 (績/勣) que significa sucesso, mérito, conquista, feito heróico; o outro, 跻 (躋), que significa ascender, atingir uma posição, subir. Na verdade, o Galo, na sua atitude e aparência simboliza na tradição chinesa as Cinco Virtudes: virtudes cívicas, com o seu porte altivo e “mandarínico” com a sua crista levantada, sugerindo um dignatário poder. De resto, o carácter chinês para crista (冠, guān) é homófono de 官 que significa governo, dignatário público; virtudes marciais, com os seus aguçados esporões; virtudes associadas à coragem no campo de batalha; virtudes familiares de protecção generosa das suas galinhas e crias; virtudes relacionadas com o modo confiante e confiável, pela pontualidade com que anuncia a aurora.

Na tradição chinesa o Galo está associado ao conceito de Yang, ou seja, ao calor, à luz e à vida do universo – daí o Yang ser também representado por um Galo.

 

 

A minoria étnica chinesa Miao possui uma interessante lenda que explica como o galo adquiriu a sua crista vermelha, que é expressão dessa sua ligação ao culto solar. Os Miao têm como costume admirar o pôr-do-sol a desaparecer para lá das montanhas do Tibete. Ao crepúsculo, os contadores de histórias, cada um com a sua versão, contam a narrativa de como o galo adquiriu a sua coroa vermelha:

Há muitos e muitos anos, quando o mundo acabara de ser criado, a Terra vivia debaixo de seis sóis e não de apenas um. Uma Primavera, após os camponeses terem preparado os seus campos já semeados, a água das chuvas não veio e os seis sóis queimaram tudo. Então o povo dirigiu-se ao imperador Yao que reinava na China e pediu-lhe ajuda. ‘Como fazer para resolver tal situação?’, questionou o imperador. Um seu conselheiro sugeriu-lhe que se tentasse acertar nos sóis e matá-los.

O Imperador chamou então os seus melhores arqueiros e determinou que apontassem para os sóis. Os arqueiros lançaram as flechas em direção aos sóis mas as flechas ficaram bem longe dos alvos.

Resolveu então solicitar ajuda ao príncipe Ho Yi de uma tribo vizinha, dado que era famoso na sua mestria de arqueiro. Ho Yi acedeu, apontou o arco, mas disse ao imperador: ‘Lamentavelmente eles estão longe demais para os poder alcançar’. De repente, olhando para o lago existente no palácio do Imperador e vendo os seis sóis nele reflectidos, exclamou: ‘Mas se os temos aqui tão perto porque não alvejá-los aqui?’ E um a um, certeiramente, foi alvejando os sóis e, um a um, foram desaparecendo. Porém, o sexto, prevenindo-se, fugiu para detrás da montanha mais próxima. Os camponeses jubilaram e foram dormir descansados. No dia seguinte, porém, acordaram numa imensa escuridão pois o sexto sol, de tanto medo de ser morto, mantinha-se escondido.

Tudo foi tentado pelos camponeses: primeiro, um tigre rugindo, rugindo para o fazer sair detrás da montanha para outro local; depois, a tática inversa, uma vaca mugindo de forma apaziguadora e dócil para o acalmar e mostrar-se. Mas o Sol recusava-se a aparecer. Então um camponês trouxe um galo que cantou. E ouve-se a voz do Sol dizendo: ‘Ó que maravilhosa voz!’ E espreitando sobre a montanha fez-se, de novo, luz.

O sol, como prémio ao belo cantor, deu-lhe uma coroa vermelha. E desde aí o galo, orgulhoso da sua coroa, canta pela aurora acordando o sol.

 

 

Na tradição chinesa, o Galo é também o espantador de demónios por excelência. É por esta razão que muitas vezes são colocadas figuras dum galo comum nas portas das casas e um galo branco nos caixões, para “limpar” de demónios o caminho que o defunto irá percorrer. O seu canto ao nascer do sol tem, também segundo a tradição chinesa, o efeito de afugentar os demónios que convivem mal com a luz do dia.

É igualmente por esta razão que, durante as cerimónias de casamento, as noivas comem pedaços de açúcar branco em forma de galo para se prevenirem contra influências negativas.

Na tradição mitológica japonesa, por exemplo, é dito na obra clássica Kojiki (Recolha de Coisas Antigas), redigida de 711 a 712 por O-no-Asumaro, a partir do trabalho iniciado pelo imperador Temmu, Hiyeda-no-Are, que se deve a um Galo o Sol que brilha no Reino de Yamato. O Sol é, de resto, o único símbolo existente na bandeira do Japão e Japão significa “a Terra do Sol Nascente”. E o Galo tem um festival a ele dedicado: o Tori-no-Ichi, dedicado ao deus Otori-sama (Tori 酉, em japonês significa “galo”), que se celebra durante três dias no mês de Novembro.

 

 

A Missa do Galo: um culto solar na tradição cristã

Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava:

“Missa do galo! Missa do galo”!

‘Missa do Galo’, Machado de Assis

 

Existe um paralelismo entre o mito xintoísta do Galo como anunciador do dia e o mito cristão do cantar do Galo após o nascimento de Jesus – que anuncia também um novo dia, aqui no sentido do nascimento de uma luz para o mundo, de um renascimento de esperança para a Humanidade e da morte da ignorância espiritual.

De facto, na simbologia cristã, o Galo simboliza a (nova) luz. A Missa do Galo, também conhecida por Missa da Meia-Noite, é a missa da luz. Esta celebração é claramente inspirada nos cultos antigos, nomeadamente celtas, em que se escolhia o solstício do Inverno (22/23 de dezembro) para prestar culto ao deus Sol. O Cristianismo substituiu essa tradição, de origem celta, pela festa cristã do nascimento de Cristo, o verdadeiro Deus-Sol que vence as trevas. Esta celebração foi instituída no século VI pelos católicos romanos e não por S. Francisco de Assis (século XIII), como se lê muitas vezes. Nos países latinos, a tradição popular adoptou o nome desta missa da meia-noite como “Missa do Galo”, numa alusão directa à lenda que conta que a única vez que um galo cantou à meia-noite foi aquando do nascimento de Jesus.

Na tradição cristã é o Galo quem anuncia a boa nova, tanto do nascimento de Jesus, como se disse antes, cantando à meia-noite, quer saudando, ao nascer da aurora, a Ressurreição de Cristo para a vida eterna. Mas é também o Galo que irá anunciar com o seu canto a traição de Pedro a Jesus, negando, por três vezes, conhecê-lo: “Em verdade te digo: Hoje, nesta mesma noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes me terás negado (Marcos 14:30)”.

 

 

As tradições populares contam uma história para explicar a presença do galo nos relógios e campanários das igrejas católicas. Quando os vikings começaram a usar os cataventos, um dos papas (não se sabe qual), impressionado com a passagem do Novo Testamento que narrava a renegação de Pedro a Jesus, por três vezes antes que o Galo cantasse, ordenou que no tecto ou nos relógios dos locais de culto católico romano existisse a figura de um galo para lembrar aqueles que o olhassem para não repetirem o erro de Pedro.

Nalgumas aldeias portuguesas e espanholas, era costume levar o galo para a igreja, para que ele cantasse durante a missa. Quando este cantava todos ficavam felizes, pois isso representava o prenúncio de boas colheitas, por associação com o Galo que, cantando à meia-noite, anunciou a boa nova do nascimento de Jesus.

Nas Filipinas, o maior país católico da Ásia, as festividades da Simbang Gabi ou Misa de Gallo, que se iniciam a 16 de Dezembro e duram nove dias consecutivos, terminando com a missa da noite de 24 de Dezembro, são uma componente importante da tradição católica filipina.

O nome original da Missa do Galo parece ter sido Missa da Vigília do Canto do Galo, porque o canto do galo anuncia que as trevas da noite dão lugar à luz do novo dia, “como o Sol Jesus, com seu nascimento, traz a luz verdadeira para a humanidade”.

 

 

O Galo noutras mitologias

Já na mitologia grega o Galo estava associado a Hélios, o deus do Sol, que considerava o Galo um animal sagrado. Também Apolo, Atenas e Hércules o reverenciavam como um símbolo sagrado do Sol e Perséfone como a Renascente Primavera.

Na tradição cigana o Galo está também presente como anunciador do dia e da luz, sendo um animal sagrado entre as várias comunidades. É ele quem diz: “Eu sou aquele que canta o raiar de um novo dia, de uma nova vida e de uma nova esperança!”, numa clara alusão ao Sol como deus e origem da vida.

Na mitologia Yoruba, na região de África que é agora a Nigéria, o Galo surge igualmente como um colaborador do deus Olurum (ou Olodumare), deus criador do mundo, da luz e da vida. Segundo essa mitologia Olorum, o Supremo Ser, assistido por um deus menor, Obatala (ou Orixanla), envia esse deus menor para criar a Terra onde só havia água e caos. Obatala leva com ele um galo, algum ferro e uma semente de palmeira. Chegado ao planeta Terra, espalhou em primeiro lugar o metal sobre o planeta e colocou o galo sobre o metal. O galo com as suas garras esgravatou o metal e criou o solo, onde Obatala plantou a semente de palmeira, a partir da qual foi criada a vegetação no planeta. Esta mitologia ainda se encontra viva no Brasil, na religião umbanda e nos rituais do candomblé.

Também não é difícil associar o Galo à bravura e à tenacidade na luta. Alguns seres da mitologia universal, nomeadamente os deuses guerreiros, apresentavam a figura do galo como, por exemplo, o deus egípcio Abraxas (ou Abrasax), que tinha uma cabeça de galo, um corpo de homem e cujas pernas eram duas serpentes.

 

 

O espectáculo da luta de galos, muito apreciado durante anos no sul da China, no Vietname e na Tailândia, de entre outros países do Sudeste Asiático, e cuja prática parece datar da China do primeiro milénio antes da era comum (a.C.), reforça plenamente tal ideia. A este propósito há um interessante conto taoista de Zhuangzi 庄子 (莊子), do séc. IV a.C. Ji Xingzi era um treinador de galos de luta do Rei Xuan (周宣王) e estava a treinar um belo galo de combate. O rei ia-lhe perguntando como é que estava o galo, em termos de desempenho para a luta. “Ainda não está!”, respondia o treinador. “Está cheio de fogo. Está pronto para entrar numa luta com qualquer galo. É vaidoso e confiante na sua própria força.” Dez dias passaram e o rei pergunta-lhe de novo o mesmo. E ele responde: “Ainda não! Empertiga-se quando ouve o cantar de outro galo”.

Dez dias mais e o rei voltou a perguntar-lhe pelo galo de luta. “Ainda não! Ainda tem aquele olhar furioso e agita as penas”. Outros dez dias passados e o treinador informou o rei: “Agora está quase pronto. Quando outro galo cantar, os seus olhos não irão pestanejar, ficará imóvel como um galo de madeira. É um lutador maduro. Os outros galos olharão para ele e pôr-se-ão todos em fuga”.

Na mitologia hindu, o Galo (Sindura) simboliza um dos três venenos (klesha) da mente, o desejo (raga, ou apego). Os outros dois venenos da mente, bem como a origem dos seis reinos do samsara ou ciclo da vida e da morte e dos 12 elos (nidanas) que constituem o centro da Roda da Vida (Bhavacakra) são o ódio (devsha, ou aversão) representado pela serpente (Sandilya) e a ignorância (avidya, ou falso conhecimento) representada pelo javali (Vikarala).

 

 

Galo, símbolo histórico dos franceses

Ô saisons, ô châteaux,

Quelle âme est sans défaut?

Ô saisons, ô châteaux,

J’ai fait la magique étude

Du bonheur, quel nul n’élude.

Ô vivre lui, chaque fois

Que chante son coq gaulois (…)

Derniers vers, Rimbaud

 

O símbolo do Galo foi adoptado por povos e nações como sinónimo de grandes e nobres causas, mas, de entre todos, os franceses e a França merecem um particular destaque. O Galo é um símbolo histórico para o povo francês, dada a homofonia entre a palavra latina gallus que significa tanto “Gália” como “Galo”. A origem deste jogo de palavras está no facto de César ter designado o território que é agora a França por Gallia (terra dos Galos ou Gauleses), em virtude de os rebeldes gauleses usarem o símbolo do galo como brasões nos seus escudos militares.

O símbolo do Galo desempenhou um papel importante como iconografia emblemática da Revolução Francesa e tornar-se-ia o símbolo oficial da Monarquia de Julho (1830-1848) e da Segunda República (1848-1851) francesas. Em 1830, o Galo Gaulês substituiu a Flor de Lis como emblema nacional e a partir deste ano, por uma ordenação de 30 de Julho, foi obrigatório o Galo Gaulês figurar nas fardas e nas bandeiras da Guarda Nacional. O Galo foi depois retirado como símbolo nacional no II Império de Napoleão III (1852-1870,) mas regressou em força na III República (1873-1940). O Galo chegou mesmo a constar do reverso das moedas de ouro de 20 francos cunhadas a partir de 1899. Desde 1848, o Galo aparece na cota de armas da República Francesa, em que a Liberdade está sentada num leme decorado com um galo.

 

 

Durante a I Grande Guerra (1914-1918) o símbolo do Galo, para além de símbolo nacional, torna-se o símbolo da coragem e da determinação francesa de lutar até à morte no campo de batalha. É habitual, por isso, os monumentos aos mortos caídos em combate serem adornados com estatuária representando um Galo.

No século XX e até aos nossos dias, o símbolo do Galo está associado também ao desporto francês. É o emblema adotado pelas equipas de França das diversas modalidades em competições internacionais e significa a coragem, a tenacidade e o orgulho franceses.

 

O Galo símbolo nacional de Portugal

Finalmente, apenas mais um de muitos outros aspectos interessantes que ficarão por contar: a associação do Galo ao estado de vigília e vigilância, sobretudo na luta pelo bem e contra a traição e os desvios dos princípios da ética. Shakespeare, em Hamlet, chamou-lhe “a trombeta da alvorada” (that is the trampet to the morn) e Orlando Neves, em Odes de Mitilene, ilustra o canto do galo como “um sonoro galo na corda da infância”.

O Galo é reproduzido na arte cerâmica em três países latinos: Portugal, Itália e França. Em Portugal e Itália estas artes estão ligadas a lendas populares e em França resulta do facto do galo ser o seu símbolo nacional por excelência.

O cruzeiro do século XVI situado em Barcelos, e que integra o espólio do Museu Arqueológico da cidade, está associado à lenda do Galo de Barcelos, símbolo desta cidade. Conta tal lenda que fora cometido um crime na cidade, não se tendo contudo encontrado o culpado, o que preocupava e inquietava os habitantes barcelenses.

Um dia apareceu um galego, sobre o qual recaíram as suspeitas, sem qualquer razão plausível. As autoridades prenderam-no sem provas e o homem clamava a sua inocência, dizendo que se dirigia a Santiago de Compostela em cumprimento de uma promessa, pois era um devoto do santo, assim como de São Paulo e de Nossa Senhora. O certo é que o cidadão da Galiza, mesmo sem provas, foi condenado à morte por enforcamento. Quando estava a ser levado para o local da pena capital pediu, em nome da justiça, para ser presente ao juiz que o condenara. A autorização foi-lhe concedida e levaram-no à residência do magistrado, que se encontrava em pleno banquete com alguns amigos. Na presença do juiz voltou a clamar a sua inocência e, perante a incredulidade do juiz e dos amigos, apontou para um galo assado que se encontrava na mesa e exclamou: “É tão certo estar inocente, como é certo esse galo cantar quando me enforcarem”.

Tal declaração provocou o riso dos presentes, mas a verdade é que ninguém tocou no galo que ficou inteiro no prato. E o que parecia impossível aconteceu. No momento em que o peregrino galego estava prestes a ser pendurado pelo pescoço, o galo levantou-se do prato e cantou. O juiz correu ao local do enforcamento mas, para sua decepção, vê o peregrino de corda ao pescoço, já pendurado. Porém, o nó estava lasso e, por sorte ou por providência divina, a corda não chegou a estrangulá-lo. Foi libertado de imediato e mandado em paz.

Alguns anos mais tarde o peregrino volta a Barcelos e manda erigir um monumento (o tal cruzeiro) em homenagem à Virgem e a São Tiago.

Sem dúvida que, e embora seja uma história esquecida de muitos portugueses, o Galo de Barcelos é um símbolo nacional por se tratar de uma história de grande moralidade e que pugna pelos princípios da ética e da justiça no julgamento dos outros.

O Ano de 2017 será o Ano Yin do Galo Vermelho, de elemento Fogo, a partir de 28 de Janeiro de 2107. E como escreveu Issa (1763-1827) neste haiku:

 

neste Dia de Ano Novo,

acordado pelo Galo,

o Sol nasce resplandecentemente

sobre as montanhas orientais