Negócios de quem volta a casa

Entre Macau e o mundo estão três empresários. Estudaram, trabalharam lá fora e voltaram a casa já na era RAEM. A família e o trabalho pesaram nesta escolha. E no regresso, decidiram investir na cidade e num negócio.

 

 

Texto Catarina Domingues | Fotos Tiago Alcântara

 

A vontade de ir para o Reino Unido era coisa já de vários anos, quando Anthony Sousa Tam fez as malas e partiu para Londres. Desde os 15 ou 16 anos que se lembra de gostar de música, de querer partir. Depois havia a arquitectura. Anthony tinha planos. “Fui para Londres à procura do meu sonho”, recorda. Corria o ano de 1992. Macaense, filho de um sino-australiano, neto de um marinheiro de Lisboa por parte da mãe, tinha frequentado o ensino secundário em português na Escola Comercial de Macau.

Na capital inglesa, Anthony arrendou um quarto – “bastava uma cama”, e foi trabalhar para pagar as contas. Começou pelo Green Valley, um velho take-away chinês. “Na altura tinha pouco dinheiro, só queria sair dali, mas fui progredindo, aprendendo, a sentir paixão pelo que fazia.”

 

 

No Japas, restaurante que hoje dirige, na zona norte de Macau, o chefe de cozinha fala dos 24 anos que ficou longe de casa. Chou san (bom dia, em cantonês), diz a um empregado que acaba de entrar. São dez e meia da manhã, o Japas está ainda a acordar.

Clement Cheng, 30 anos, nasceu no Havai, Estados Unidos, onde os pais faziam negócio. Cresceu e viveu em Macau até aos 12 anos, quando foi enviado pela família para Leeds, no condado de West Yorkshire, norte de Inglaterra. Aprender uma língua internacional e frequentar um sistema de educação de excelência, esses eram os objectivos dos pais ao enviar o filho para Inglaterra. Foi parar a um colégio interno sem falar uma palavra de inglês. O clima era “terrível”, na cantina desenvolveu uma fobia a batatas, que comia de todas as formas para ficar cheio. “Mas uns tempos depois Inglaterra começa a crescer em ti”, diz Clement, um sotaque britânico, limpo, causa inveja até.

Estamos lado a lado, sentados no primeiro andar da Signum, a segunda loja de mobiliário de design que o jovem abriu em Macau.

 

 

Na ilha da Taipa, Nicole Massa Helm tem um dos poucos cafés com esplanada de Macau. A responsável pelo Lax Café cresceu no litoral do Canadá, em Vancouver, na Colúmbia Britânica, para onde a família emigrou em 1994. Nicole tinha 12 anos, alguma bagagem no inglês, tinha frequentado a secção inglesa da escola católica Santa Rosa de Lima. “Penso que a minha mãe queria outro estilo de vida”, explica a jovem empresária, admitindo a possibilidade de haver então uma maior disposição da população de Macau para emigrar. “Talvez a motivação estivesse relacionada com 1999 [transferência de administração], as pessoas não sabiam o que se ia passar.”

Em Vancouver, a mãe abriu uma loja de roupa para criança, Nicole foi-se adaptando à nova vida, foi deixando de pensar em Macau. Na memória, esta “pequena e antiga cidade” no Sul da China era apenas a terra onde viviam os tios, os avós. Naquele presente de então, acordava às 5h45 da manhã para apanhar o autocarro para a escola. Depois, aos 16 anos, comprou o primeiro carro, era branco, uma espécie de jipe. “Vancouver é uma cidade maravilhosa e não faz muito frio, só quatro graus negativos”, afirma. “Não era nada, em Toronto fazia menos 40.”

 

Experiência internacional: De Londres ao Azerbaijão

Anthony Sousa Tam ainda completou um curso na área da construção, mas acabou por deixar o sonho da arquitectura de lado e deu uma hipótese à cozinha. Ao longo dos últimos 24 anos, encabeçou vários projectos, desde pequenos estabelecimentos chineses de fast food aos salões londrinos e à gastronomia internacional. A experiência deste homem na área da cozinha e da consultoria é uma volta ao mundo, que começa no Reino Unido, percorre a Europa, Médio Oriente, Interior da China, Tailândia. Em Londres foi onde esteve mais tempo e ainda demorou a sair do quarto arrendado.

 

 

Apenas alguns exemplos: aos 23 anos foi trabalhar como subchefe de cozinha para o restaurante Nobu, culinária japonesa, influências peruanas. Esta é uma parceria entre o chefe japonês Nobuyuki Matsuhisa e o actor norte-americano Robert De Niro. “Foi aí que realmente abri os olhos para o que era a comida”, realça. Passou ainda pelo Tsunami, outro projecto nipónico, foi a Nottingham abrir o Chino Latino e trabalhou no Annabel’s, um clube privado situado na Berkeley Square, em Londres. “Era o único sítio onde em tempos se pôde ver ao vivo a princesa Diana e onde trabalhavam pessoas ligadas à descoberta do carpaccio.”

Anthony deu o grande salto aos 32 anos, quando foi convidado para abrir o restaurante Atami, novamente gastronomia japonesa. Foi aplaudido por Fay Maschler, experiente crítica do jornal londrino Evening Standard. E as ofertas choveram, uma delas vindas do presidente do Azerbaijão, Ilham Aliev, líder desde 2003 num país sem limitação de mandatos presidenciais. Aliev queria modernizar a capital do país, Baku. “Fui lá fazer uma prova, foram-me buscar ao aeroporto, puseram-me num carro, levaram-me para um sítio qualquer e disseram: esta é a tua cozinha e a tua comida”, recorda Anthony, na altura já casado e com dois filhos.

O macaense foi o cérebro do novo restaurante da família do presidente, o Chinar, onde trabalhou ao longo de quatro anos. Antes de regressar a Macau, passou ainda por Xangai e Phuket. “Éramos quase nómadas e Macau era a minha casa, queria construir alguma coisa aqui.”

 

 

Aprender com os melhores

“Graças ao sistema educativo inglês, entramos desde muito cedo no mundo da arte e do design“, diz Clement Cheng. Na escola, saia-se frequentemente em visitas de estudo, conheciam-se os caminhos que iam dar aos museus, às galerias, encaravam-se obras de arte. “Se mostrares Picasso a uma criança, ela não sabe como apreciar, mas os meus professores queriam que tivéssemos essa experiência.” E Clement queria saber mais, despertar sentidos, perceber o que estava por trás, e foi buscar livros, gastou tempo a lê-los, depois foi estudar. Escolheu design de interiores no Leeds College of Arts. Em part-time, trabalhava numa loja de sapatos.

A paixão pelo design de interiores surgiu da relação que Clement criou com o espaço, de olhar para ele. “Adoro essa sensação”, revela. E a possibilidade de trabalhar com várias áreas ao mesmo tempo e de solucionar problemas levou o designer a querer criar, interpretar e a reformular espaços.

Enquanto estudou, foi trabalhando na área. E mais uma vez Clement acredita que o sistema educativo inglês contribuiu para crescer na profissão. “Encorajam-te a trabalhar a part-time ao longo do curso, trabalhei como desenhador, como assistente de design, entre outras coisas.”

Terminados os estudos, decidiu regressar a Macau. A família, conta, foi a principal razão para o ter feito. Mas não foi fácil. “Queres trabalhar numa grande empresa, queres aprender mais e em Inglaterra o trabalho de um designer de interiores é muito respeitado, mas penso que a família foi o que pesou na minha decisão de voltar.” Clement chegou a casa em 2009.

 

 

Animais, um café e fish and chips

Em Vancouver, Nicole foi estudar Gestão Hoteleira e de Restauração, sempre com vários trabalhos a part-time. Passou por uma agência de viagens, que oferecia pacotes para Las Vegas, e vendeu capas de telemóvel num expositor de rua. Quando terminou a universidade, foi trabalhar para uma companhia de Hong Kong, fornecedora de lápis e outros objectos para pequenos negócios. Não foi além dos seis meses. “Comecei a olhar para o meu salário ao fim do mês, observava uma senhora de meia-idade lá sentada e comecei a pensar no meu futuro e se realmente era este estilo de vida que queria para mim.” Nicole queria mais e regressou a Macau, 11 anos depois de chegar ao Canadá. Vendeu o carro, utilizou o salário do mês anterior para pagar o voo e mudou-se para casa dos avós. Atrás veio a família.

A cidade que visitava apenas de cinco em cinco anos tinha mudado. Entre os novos casinos construídos após a liberalização do jogo, “ainda só havia o Sands”, recorda. Estávamos em 2005. “Macau não é tão descontraída como o Canadá, mas a verdade é que arranjas um emprego. Continua a ser calma e pacífica, não é tão concorrida e fascinante como Hong Kong, mas é um sítio onde podes trabalhar e viver”, diz. Juntou-se a uma empresa fornecedora de material de cabeleireiro, esteve aí dois anos, depois mudou-se para uma operadora de jogo, onde trabalhou na área dos recursos humanos.

E vivia aqui mesmo, na Rua de Bragança, na ilha da Taipa, num dos andares deste edifício onde nos encontramos sentadas, na esplanada do Lax Café. O espaço estava à venda, Nicole queria abrir um negócio. Arriscou. E aproveitou que “a cultura do café está em expansão, que há um maior entendimento sobre esta bebida”.

O espaço, com um conceito australiano e onde é permitida a entrada de animais, foi apenas a primeira aposta desta pequena empresária. Ao longo destes anos abriu ainda o Fish Me, um take-away de peixe e batatas fritas (ao estilo dos famosos fish and chips ingleses), criou ainda um negócio virado para os cuidados dos animais.

Mas manter um negócio traz várias pedras pelo caminho, vinca. A dificuldade em contratar pessoal e a subida dos preços das rendas têm sido alguma das limitações.

Na área da restauração, porém, Nicole Massa Helm realça que há uma aposta crescente em novos conceitos. “Está a tornar-se mais competitivo, que é o que deve acontecer numa cidade que está a florescer e, por isso, os negócios que existem vão ter de pensar em novas formas e canais para se manterem.”

 

Laboratório gastronómico

É Outono, lá fora está calor, humidade. Mas dentro do Japas, o novo projecto de Anthony Sousa Tam, a decoração segue a ordem exacta das estações do ano. A ideia é pensar a natureza. Para já, as paredes acastanhadas, despidas, lembram a madeira dos troncos de árvore. Na Primavera, o restaurante vai chegar mais verde, o Verão vai trazer mais flores.

Aqui servem-se tapas, comida japonesa e de fusão. Neste fim de Outono, preparam-se pratos como bacalhau salgado com tarte de algas, arroz de marisco, tempura de ouriço-do-mar.

E a influência portuguesa, chinesa, do mundo, está lá. “Temos uma história importante, se pensarmos nas viagens dos portugueses, sem eles não haveria tempura no Japão, então guiamos as pessoas nesta viagem.”

Além do Japas, que abriu há cerca de um ano, Anthony tem outros projectos em mão. A apenas cinco minutos a pé, num edifício industrial da Areia Preta, o chefe está a erguer uma cozinha-laboratório, onde vão nascer alimentos para abastecer o restaurante. A ideia é garantir a segurança da comida que aqui entra.

E para isso o empresário está a apostar na aquaponia, um sistema integrado de produção de peixes e vegetais, geralmente utilizado em países com pouca disponibilidade de água doce ou que tenham interesse na agricultura urbana. Os peixes sujam a água para as plantas que, por sua vez, limpam a água para os peixes.

“Também vamos ter uma mesa para 12 pessoas, onde se pode perceber como se matura a carne, por exemplo”, conta Anthony que pretende partilhar com Macau “a experiência e a importância da alimentação”.

Em breve, conta o chefe, vai nascer um novo restaurante no centro da cidade. Maka, de dois andares, vai ser um “moderno restaurante macaense, com influências, técnicas e comidas de todo o mundo”.

 

Mudança de mentalidades

Mesmo à frente do Jardim Vasco da Gama, Clement Cheng abriu uma segunda loja de decoração e mobiliário. Chama-se Signum, tal como a primeira, que já tem cinco anos. “Quando cheguei a Macau não consegui encontrar mobiliário moderno”, recorda.

À janela do primeiro andar, onde estamos, aparece a Calçada do Gaio, edifícios velhos de poucos andares, caixas de ar-condicionado, cabos de electricidade expostos nas estruturas.

Mas cá dentro, um mundo novo. São candeeiros, mesas, sofás, cadeiras longas, objectos de várias formas, cores, marcas que chegam da Dinamarca, Inglaterra, França e outros países. Peças de roupa também ocupam o espaço. “Não tem a ver apenas com a forma como habitas, mas com tudo o que te rodeia”, explica Clement Cheng.

Paralelamente, o designer abriu o CINCHstudio, um ateliê de design de interiores. Demorou a arrancar. “Tentas dizer às pessoas que és designer de interiores e elas assumem que estás na construção. A verdade é que o design faz parte da construção e as pessoas simplesmente não querem pagar-te pelo trabalho”, descreve o designer. “Temos de nos unir e dizer aos clientes que têm de respeitar a indústria, que não podem ter tudo gratuitamente, que não faz sentido, não é saudável”, acrescenta Clement, referindo que essa foi uma das razões pela qual foi criada há cerca de dois anos a Associação Comercial do Design de Interiores de Macau, que reúne vários profissionais do sector, desde designers de interiores, passando por empreiteiros, fornecedores, imobiliárias. “Queremos criar uma comunidade para que seja fácil chegar a todas estas pessoas.”

Macau, parece, é para ficar. O que aprendeu lá fora também. “Enviava a sua filha para uma escola interna?”, pergunto, por fim. “Quem me dera ter essa possibilidade, se Inglaterra não existisse na minha vida, não sei se algum dia estaria a fazer isto. Mudou a minha vida.”