Senhor Bom Jesus dos Passos

Nos dias 4 e 5 de Março realiza-se em Macau mais uma vez a procissão do Senhor Bom Jesus dos Passos, a grande manifestação de fé da comunidade macaense, residente e da diáspora.

 

 

Texto Fernando Sales Lopes | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro e arquivo da Revista Macau

 

Macau é terra de liberdade religiosa, de respeito mútuo, onde as gentes vivem e convivem na diferença. O cristianismo está aqui bem presente lado a lado com as festividades da religião popular chinesa, que abarca práticas e crenças do Budismo, Confucionismo e Taoismo. O catolicismo, seguido por mais de 30 mil crentes, maioritariamente chineses, é mesmo um dos factores identitários da comunidade macaense. A Diocese de Macau, criada em 1576, foi a primeira do Extremo Oriente. Património de Macau, alargado à própria comunidade não cristã, é a Procissão de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos.

 

A Procissão

Durante os oito dias que antecedem a festa religiosa, os fiéis preparam-se através das missas e novenas matinais em chinês, ou nas similares vespertinas em língua portuguesa. O dia de sábado – véspera do primeiro Domingo de Quaresma – inicia-se com uma missa em língua chinesa, seguida de uma outra de oferecimento em chinês e português. Pela tarde tem lugar a via-sacra em chinês, uma missa antecipada nas duas línguas, seguida da via-sacra em português. Antes que a chamada “Procissão da Cruz” se inicie, tem ainda lugar em Santo Agostinho a leitura do Sermão do Horto em língua chinesa. Parte então, ao som da Banda da Polícia de Segurança Pública de Macau, ao fim da tarde, para a Catedral onde passará a noite, em procissão, a imagem do Senhor Bom Jesus dos Passos coberta por uma cortina de renda bordada a fios de ouro. Já na Sé há a leitura do Sermão do Horto, agora em português.

 

 

No domingo, pela tarde, após o Sermão do Pretório em língua chinesa, seguido do canto de Verónica, parte da Sé para Santo Agostinho a Procissão do Senhor Bom Jesus dos Passos com a imagem já descoberta, percorrendo o centro histórico de Macau. Vivem-se as sete das 14 estações da via-sacra, que representam o percurso de Jesus Cristo do Pretório ao Calvário. A procissão termina com o sermão do Calvário, já com a imagem na Igreja de Santo Agostinho. Há uma lenda, com várias versões, para justificar este “passeio” do Senhor dos Passos, contando que, em tempos idos, a imagem era colocada na Sé, mas miraculosamente voltava sempre a Santo Agostinho, daí o estar assegurado o regresso à sua igreja.

 

 

Macau: as diferenças

Em Macau, contrariamente ao que é habitual nas outras procissões dos Passos, não se vive o encontro das imagens do Senhor com Nossa Senhora, sua mãe. Esta é uma característica que diferencia o culto do Senhor dos Passos em Macau. Mas não se pense, contudo, não ser aqui bem forte o culto Mariano. Também a data em que se realiza a celebração é outra das diferenças que a tornam, talvez, única. Não há no calendário da Igreja Católica uma data fixa para a realização da procissão dos Passos. Pelo menos é o que a prática confirma, embora se saiba que entre os séculos XIV e XVIII em Portugal ela se realizava na Quinta-Feira Santa. Contudo, encontramos procissões dos Passos desde a segunda à quinta semana da Quaresma. A originalidade do Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos em Macau é que a procissão tem início no sábado anterior ao primeiro domingo de Quaresma, dia em que termina. Na realidade são duas procissões, sendo propriamente a dos Passos a de domingo, pois é esta que representa o tempo entre a condenação à morte de Jesus no Pretório e o seu sacrifício no Calvário.

 

 

Os Agostinhos e o culto da Paixão de Cristo

Foram os Agostinhos espanhóis, vindos das Filipinas, que em 1586 terão introduzido em Macau o culto da Paixão de Cristo, nomeadamente a procissão dos Passos.

A procissão do Senhor do Passos em Macau transcende o seu significado religioso católico. Em 1717, com a saída dos Agostinhos para Goa, a procissão deixou de se realizar. Nos anos seguintes verificou-se carestia e falta de alimentos em Macau, situação atribuída pela comunidade chinesa ao facto do fim da procissão.

 

 

Estávamos em 1721 e o Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos continua a sair anualmente pela fé de uns e a crendice de outros. No século XIX, na sequência da extinção das Ordens Religiosas, a Igreja de Santo Agostinho é entregue à Confraria de Nosso Senhor do Bom Jesus dos Passos, que tinha sido fundada pelos Agostinhos portugueses quando chegaram a Macau. A Confraria toma posse da Igreja e das casas anexas em 1887. Confraria que é, ainda hoje, responsável pela realização desta procissão.

 

 

Tradições que se vão perdendo

Os macaenses – os Filhos da Terra – descendentes dos primeiros portugueses que arribaram ao Extremo Oriente há cinco séculos, frutos da rica mistura de povos e culturas, são os guardiães de tradições e saberes que estruturam a sua identidade própria, contudo a modernidade globalizada e o ritmo de vida acelerado vão deixando marcas negativas nas culturas levando à extinção de traços fundamentais incorporados nas tradições e hábitos que vão ficando no esquecimento. Também a festividade do Senhor Bom Jesus dos Passos não fica incólume a este processo. Assinalemos algumas das tradições que se vão perdendo:

  • Costume antigo da comunidade macaense, hoje por poucos praticado, ou esquecido, era o de abrir as portas das casas à passagem da procissão, acendendo velas e queimando incenso num pequeno oratório virado para a rua. Havia também quem espalhasse pela rua pétalas de flores atapetando-a. Superstição, crendice, fé? Uma mistura de tudo numa terra multicultural e intercultural.
  • As “tochas odoríficas”, referidas pelo Padre Manuel Teixeira, “levadas pelos irmãos de opas roxas [que] espalhavam jorros de luz muito mais brilhante que a fraca luz dos candeeiros que iluminaram as ruas”, bem como “algumas famílias de Hong Kong [que] traziam tochas de enxofre que eram acesas em frente e aos lados do andor”.
  • Também ele se refere ao costume “de certas famílias de Macau colocarem lanternas de petróleo à pressão, em certos locais do percurso na noite de sábado”.
  • Há referências, ainda, a idosas que costumavam acompanhar a procissão por de baixo do andor descalças.
  • O simbolismo da Verónica extinguiu-se deixando de ser a sua escolha uma disputa entre famílias.
  • Também o transporte do andor era legado que passava de geração em geração.

 

 

Devoção na diáspora

Levada pelos macaenses que emigraram no século XIX para Hong Kong e outros portos da China, a devoção ao Senhor Bom Jesus dos Passos ainda hoje perdura. Em Hong Kong, no segundo domingo de Quaresma – uma semana depois de Macau – realiza-se na Catedral uma procissão organizada pela Confraria do Senhor dos Passos. Em Kowloon, na Igreja do Rosário, e coincidindo com as novenas de Macau e Hong Kong, é exposta durante uma quinzena a imagem do Senhor dos Passos.

Mas a procissão do Senhor Bom Jesus dos Passos em Macau parece ter uma força mobilizadora especial. Vir dos quatro cantos do mundo ver ou viver este acto religioso tem uma marca peregrina. Peregrinos que, para além da diáspora macaense, vem da China e de outros países do sudeste asiático, mas também da Europa, América do Norte, ou Austrália.

Um encontro marcado com amigos e familiares chova ou faça sol.

 

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A menina Verónica

O papel de Verónica, a mulher que limpou com uma toalha o rosto de Cristo, e que nesta ficou estampado, era bastante disputado na sociedade macaense, sendo a escolhida motivo de orgulho para a família. Há variadíssimas referências na imprensa ao longo dos tempos, com destaque para o Boletim Eclesiástico, a essas “encantadoras” meninas, que se queriam virgens, boas cristãs e com voz maviosa”: Foi a esbelta e esperançosa menina Celeste Cabral, filha do Ex.mo. Sr. Carlos Cabral que tão amavelmente quis ir personificar aquela santa mulher que na dolorosa via do Calvário saiu ao encontro de Jesus a enxugar-lhe o divino rosto”, lê-se. “Bem haja a menina Celeste Cabral pois é um acto que muito honra a sua Ex.ma. Família”, rematava o redactor do Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau de Março de 1919, elogiando a Verónica desse ano. Cinco décadas mais tarde, em 1969, com menos retórica mas igual destaque, e com direito a foto, na mesma publicação, era a vez da menina Luísa Gageiro, que “muito bem se desempenhou do seu papel”.

 

O Homem do Pau às Costas

Num códice do século XIX, encontrado na Biblioteca de Évora, sobre “vários factos” de Macau no período de 1553-1748, e reproduzido por Jack Braga no Boletim Eclesiástico, pode ler-se: “Aos 14 de Fevereiro de 1721 houve nesta cidade uma grande carestia pela falta de mantimentos e os chineses atribuindo isso ao facto de se não fazer a procissão dos Passos, requereram ao Procurador do Senado para que fizesse andar pelas ruas aquele homem de pau às costas [palavras deles], oferecendo-se para os gastos.”