Texto Catarina Domingues | Fotos Tiago Alcântara
Como surgiu este interesse pela caligrafia?
Comecei desde muito novo, durante a escola primária. Geria bem a estrutura dos caracteres. Ficavam bem. Os meus trabalhos eram geralmente pendurados pelos professores nas paredes para servirem de exemplo para os meus colegas. Isto foi uma grande motivação para continuar a praticar caligrafia. Depois, no ensino secundário, tive um professor muito bom, com grande habilidade para a caligrafia e que me mostrou algum do seu trabalho.
Na aula de língua chinesa?
Sim, ele escrevia muito bem no quadro. Era magnífico e eu ficava a admirar.
E qual o tipo de caligrafia que fazia naquela altura?
Imitava o estilo de escrita do meu professor. A imitação é um processo essencial quando se quer fazer caligrafia ou pintura chinesas. Imitam-se os mestres antes de se desenvolver o próprio estilo. Mas esse é um longo processo.
Esta arte era comum naquela altura?
Não era tão pouco comum como hoje. Naqueles tempos escolares, tínhamos de escrever com pincéis. Hoje, claro, isso não existe. Usam-se computadores ou esferográficas. Já nem se utiliza tinta nem canetas de tinta permanente.
Que caneta é que usa?
A mesma que você. Em tempos, ainda escrevia com caneta de tinta permanente. Mas nos exames de História da China ou de Língua Chinesa, tínhamos de usar pincel até ao final do ensino básico e havia oportunidade de praticar caligrafia chinesa.
Como era o ambiente em Hong Kong?
Em Hong Kong não tínhamos acesso a revistas do Interior da China. Foi só em 1974 que apareceu a Calligraphy Magazine (Shu Pu). Na realidade, era muito conhecida aqui também. Pertencia a Liang Pi Yun, calígrafo, poeta e educador, que conheci em Macau. Nessa altura, publicava colecções com inscrições de estelas e trabalhos de grandes mestres, que imitávamos. Esta foi a primeira vez que tive a oportunidade de olhar para os vários tipos e estilos de escrita chinesa. Devo muito a essa revista.
Começou então a desenvolver o seu próprio estilo?
Ainda não, estava em processo de aprendizagem. Depois de me licenciar em 1973 (em Matemática e Física) pensei que devia aprender caligrafia de forma sistemática. Para aprender de forma sistemática, existe todo um processo e tens de o fazer. Primeiro, ou aprendes a escrita de selo ou a escrita clerical, que te vai dar as fundações antes de frequentares um curso de escrita regular ou cursiva. Inscrevi-me então num curso na Escola Profissional e Educação Contínua da Universidade de Hong Kong. Quando esse curso acabou – era curto, tinha cerca de 20 horas – fundei a Sociedade Jiazi de Caligrafia.
Mas então acabou por nunca trabalhar na área da Matemática e Física.
Trabalho, os dias são uma aposta, são probabilidades, é gestão. E a física… a forma como poupas energia (risos). Depois de aprender a imitar diferentes caracteres e mestres, tenta-se fazer uma combinação. É um exercício muito duro, porque queres que se pareça com algo, mas, por outro lado queres ter o teu próprio estilo. É muito difícil ser consistente. E quando desenvolves o teu estilo, tens de ser consistente. É só depois de um longo período de tentativas e experiências que vais alcançar um certo estilo.
E de que forma olha para o seu trabalho hoje em dia?
Penso que é um bom passatempo. Fico feliz quando me dizem que gostam do que faço. O meu estilo é uma mistura do que eu aprendi. Aprendi escrita de selo, clerical e cursiva.
Como encontra tempo para o fazer?
Encontras sempre tempo para o que amas.
O que representa a caligrafia?
A caligrafia tem o poder de evocar forças naturais e é também um reflexo do carácter, temperamento, e do grau de erudição e cultural do autor (quem escreveu o texto que o calígrafo passa para o papel). Falando de boa caligrafia: a boa caligrafia tem ossos, carne, tem músculo. Quando o calígrafo faz o movimento com o pulso, braço ou dedo, sente a presença do autor do texto no próprio trabalho de caligrafia. Portanto, há uma relação directa entre a presença física do autor e o trabalho do calígrafo. Nas minhas palavras, isso é caligrafia. O público não vai apreciar apenas a beleza e a força da caligrafia, mas também a forma como o calígrafo interpreta o texto, que pode ser, por exemplo, um poema. Diz-se que a caligrafia é uma pintura feita com o coração, porque revela o verdadeiro estado de espírito do calígrafo.
Diz-se também que a prática é uma forma de manter a saúde física.
Quando se pratica caligrafia, deve-se estar tranquilo, sem pressas. Sentamo-nos de costas direitas, mas também se pode estar de pé. Quando se está completamente focado e concentrado nos traços do pincel, a respiração normaliza. Quando nos sentamos direitos, a coluna está direita, a mente está focada e tranquila, é bom, principalmente se acompanhares com uma música leve de fundo. Se o fizeres levantado, dobras um pouco para escreveres e também estás a fazer exercício.
Mencionou a Sociedade Jiazi, que fundou em Hong Kong. Em exposições têm apresentado textos de Confúcio ou Laozi. A caligrafia é também uma forma de promover a filosofia chinesa?
Sim, se souber ler caracteres chineses. Se não souber, pode olhar como uma peça de arte, observar o trabalho do pincel, as zonas húmidas, secas, os espaços entre os caracteres e ficar com uma percepção da estética do trabalho. Se conseguir entender o conteúdo dos escritos, terá muito mais do que a forma estética. Hoje em dia, temos uma versão simplificada do chinês e uma forma simplificada de expressão, mas se falarmos dos clássicos, há muitos códigos históricos que estão incorporados. Há muitas narrações históricas, mesmo com uma ou duas palavras, que têm muito significado. Se falar de Confúcio, se falar de Laozi, há filosofia. Especialmente Laozi é a origem da cultura chinesa. Nas exposições, sejam mostras individuais ou da associação, procuro sempre que haja um tema. Se não há um tema, perde-se o foco. Já organizámos algumas exposições com esta associação. Temos trabalhos com Laozi, Confúcio, citações de clássicos chineses. A recepção do público é boa.
Como vê o desenvolvimento da prática em Macau? Há muitos interessados?
Penso que não tanto como em Hong Kong. Diria que aqui em Macau há mais pessoas ligadas à pintura chinesa. Não sei ao certo qual é a razão que está por trás disso, mas a minha teoria é que durante a II Guerra Mundial um número considerável de mestres famosos de pintura chinesa vieram para Macau e juntavam-se no templo de Kun Iam para ensinar pintura chinesa. Muitas pessoas iam até ao local para pintar. Depois também temos a Escola de Pintura Lingnan, que esteve em Macau. Talvez não seja conclusivo, mas poderá ser a razão pela qual há mais pintores que calígrafos aqui.
Também pinta?
Sim, também. A pintura chinesa e a caligrafia chinesa têm a mesma origem. Nós, chineses, não dizemos que pintamos, mas que ‘escrevemos uma pintura’. Têm os mesmos traços.
Que conselho daria a quem quer experimentar?
Não há atalhos. Se quer ter boas fundações, não há percursos rápidos.
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Shūfǎ – caligrafia
书法 (chinês tradicional: 書法)
O método/lei da escrita
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A arte de escrever
A história da caligrafia chinesa remonta há cerca de 3000 anos. Os primeiros vestígios surgem em oráculos de osso, que eram utilizados para adivinhação, ou gravados em conchas e carapaças de tartaruga. Seguiram-se depois outro tipo de inscrições, gravados em selos de bronze. A estilização da escrita chinesa teve um grande desenvolvimento com o aparecimento das inscrições monásticas, estilo introduzido pelos monges. Essas inscrições eram escritas e já não eram apenas gravadas, marcando assim a introdução do pincel e resultando em linhas mais curvilíneas e menos anguladas. As inscrições monásticas representam um ponto de viragem na evolução da caligrafia chinesa, conduzindo às formas modernas da escrita na China. Mais tarde, foram criadas formas mais dinâmicas, como é o caso da “escrita regular”, ainda hoje utilizada na China. O desenvolvimento da “escrita corrida” introduziu um estilo mais livre e informal. Uma das características da caligrafia chinesa é que a forma do trabalho pode suplantar em valor estético o conteúdo. As várias técnicas utilizadas pelos calígrafos – quantidade de tinta ou água colocada no pincel, a pressão, direcção ou inclinação dada ao pincel, a produção de traços mais finos ou mais grossos, a velocidade, aceleração ou desaceleração dos movimentos ou o desenho das curvas – podem influenciar o resultado final.
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Os quatro tesouros da sala de estudos
O papel, a tinta, o tinteiro e o pincel são os “quatro tesouros da sala de estudos” (文房四宝), ferramentas básicas para a produção da caligrafia.
PAPEL
Deve ser resistente ao tempo, aos insectos. São características que permitem antigos trabalhos chegar até aos dias de hoje. O papel de melhor qualidade é produzido na Província chinesa de Anhui, fabricado a partir de fibras vegetais de amoreira, bambu e juta.
TINTA
Tradicionalmente, a tinta-da-china utilizada nos trabalhos de caligrafia é preparada a partir de uma barra sólida, que se dissolve gradualmente na água.
TINTEIRO
Os tinteiros onde se prepara a tinta são de pedra, montado em suportes de madeira. Hoje já se utilizam tinteiros mais simples e de diferentes materiais.
PINCEL
Há uma grande variedade de pincéis, mas o pêlo é geralmente de cabra, coelho, cavalo ou cauda de doninha, dependendo da rigidez que se procura. O cabo é geralmente feito a partir de uma haste de bambu.