Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
O gravador inglês George Bickman compôs em 1733 “The Universal Penman”, uma espécie de bíblia da ilustração e da caligrafia. Nesta antologia, estão representados diferentes estilos de caligrafia utilizados na altura por gravadores e litógrafos ingleses. “Bickman precisou de 15 anos para o fazer e é este livro que utilizamos hoje como guia e referência”, nota Henry Kwok, especialista em caligrafia antiga. Temos uma das páginas desse compêndio mesmo à nossa frente; trata-se de um original e foi adquirido por Aquino da Silva, ex-aluno de Kwok e também calígrafo, num antiquário em Melbourne, Austrália. “Sem este livro, não teríamos tão completo material de estudo”, continua o especialista.
Estamos no ateliê – também casa – de Aquino da Silva, na Travessa do Mercado Municipal, no bairro da Horta da Mitra. Gatos vão descendo e subindo as escadas entre o rés-do-chão e o primeiro andar, ouve-se música, estilo barroco, e sentamo-nos à volta de uma longa mesa de madeira escura. Espalhado pelo ateliê, um mundo de ferramentas e de outras coisas: madeiras, livros, máquinas, objectos cujo nome desconhecemos.
Henry Kwok prossegue. Para definir o que faz, prefere utilizar o termo lettering – em português pode ser definido como a técnica de desenhar letras. E explica o que o diferencia da caligrafia: “A caligrafia é uma obra de arte, tal como os chineses o fazem. Concluído o trabalho, pendura-se num sítio como uma peça de arte. No caso do lettering, existe um uso mais prático, utiliza-se em grandes marcas, em cartões-de-visita, logótipos e existe maior flexibilidade”. Em Macau, porém, os cursos de lettering que Henry Kwok costuma leccionar são baptizados pelas instituições de ensino como “Caligrafia Inglesa Antiga”.
Kwok, originário de Hong Kong, estudou Design de Publicidade na Universidade do Estado de Utah, nos Estados Unidos. Foi ao longo desse período que conheceu o trabalho de ilustradores e artistas gráficos que acabariam por o influenciar, como é o caso de Michael Schwab e Michael David Brown. Depois passou por Nova Iorque, onde trabalhou como director artístico na área da publicidade, fixando-se posteriormente em Macau, sítio improvável e que apareceu por um acaso e por questões profissionais na vida deste homem. Não viria apenas a alterar a geografia do trabalho, mas o próprio trabalho. “Sempre gostei da escrita à mão e fui imitando quem o sabia fazer”, lembra. Kwok dedicou-se então ao lettering. E fidelizou-se às canetas de aparo. “Se conseguires usá-la, então usas tudo.”
Trabalho e meditação
Aquino da Silva é licenciado em Design Gráfico e foi aluno de Henry Kwok no Instituto Politécnico de Macau. “É o meu mentor e foi ele que me introduziu à caligrafia e me deu todos os recursos para aprender esta técnica maravilhosa”, diz.
Tudo aconteceu enquanto frequentava a disciplina de tipografia, recorda agora. “Aquilo despertou alguma coisa no meu cérebro, cada vez que observava aquela escrita magnífica, sentia algo que não conseguia explicar e então comecei a estudar, a pesquisar e a praticar quando não tinha aulas.”
Em 2011, Aquino foi trabalhar como designer gráfico para um departamento do Governo, onde permaneceu três anos. Queria apostar no processo criativo, no próprio negócio. Hoje dedica-se a tempo inteiro à área do lettering e tem uma carteira de clientes que vai desde Macau a Londres, onde já gravou a marca de uma garrafa de perfume.
Para este jovem de 32 anos, o lettering – ou a caligrafia, como também diz – tem duas faces: “Por um lado, existe o aspecto comercial e do trabalho e, por outro lado, é uma espécie de processo de meditação, em que treinas a tua paciência, em que posicionas a tua alma e a tua mente na escrita”.
Henry Kwok acredita também que a aposta neste trabalho pode fazer toda a diferença na hora de fechar negócio. “Num discurso de abertura em Stanford, Steve Jobs falou na importância da caligrafia, referindo que a razão pela qual a Apple é [um produto] tão elegante deve-se ao interesse que teve na área da caligrafia enquanto estudante”, nota. Neste discurso, acessível na Internet, Jobs nota que o Reed College, em Oregon, onde estudou, oferecia na altura “a melhor educação em caligrafia no país”. O empresário norte-americano revelava: “Dez anos mais tarde, quando estávamos a desenhar o primeiro Macintosh, lembrei-me de tudo e aplicámos isso no Mac”.
Reaprender a escrever à mão
No início eram mais homens, diz Kwok. Mas hoje são as mulheres que se dedicam mais a este tipo de trabalho. “Porquê?”, pergunto. Continuamos sentados, Aquino vai trazendo algumas peças para o centro da mesa de madeira: canetas de aparo, oblíquas, um trabalho de gravura em cerâmica. Kwok continua: “Não sei, talvez pelas curvas e linhas”, arrisca.
Mas para os dois profissionais, o lettering ainda é um conceito pouco conhecido da população local. “Não diria que não há interesse, mas não há muito interesse. Um hotel de Macau convidou-me para fazer um workshop, mas não me parece que dêem muita atenção à área, até, pelo menos, surgir aí uma nova tendência e que tenha impacto”, considera Kwok.
Na era da técnica, em que os smartphones e os computadores vieram substituir a escrita à mão, o especialista refere que há uma nova aposta das escolas, “até nos Estados Unidos”, na reaprendizagem da escrita à mão. Além disso, nota, “o que é antigo está de volta”, como é o caso do gosto pelos discos de vinil ou canetas de tinta permanente. “Nunca voltaremos atrás, é impossível, mas acredito que agora as pessoas estão a começar a desejar coisas mais personalizadas e que se ajustem mais aos seus gostos.”