M de memórias de Fontenelle 

Com M de Memória, Felipe Fontenelle transita entre a infância e os dias de hoje num “disco muito intimista”, que mistura bossa nova e samba, com uma incursão pelo patuá de Macau, onde reside, e pela poesia pessoana. Em entrevista à MACAU, o músico brasileiro percorre os três mundos que habita e que convergem neste trabalho: Brasil, Portugal e Macau.

 

 

 

Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro  

 

Em São Paulo, Brasil, Felipe Fontenelle cresceu numa casa com música, um disco de vinil sempre a tocar, guitarras, baterias e microfones de plástico por aí. Tinha perto de quatro anos e lembra-se que esses eram os brinquedos que recebia. “Tudo a ver com música”, recorda agora. Em pequeno, gostava de imitar os artistas predilectos: Michael Jackson, Pink Floyd, Dire Straits. E ouvia bossa nova, música popular brasileira, Caetano Veloso, Djavan, João Gilberto, Tom Jobim.  

Iniciou em 1988 um percurso que haveria de fazer muitas vezes, e até aos dias de hoje: a travessia entre São Paulo e Lisboa. Tinha 11 anos quando o pai, apaixonado por Portugal, aceitou um convite para trabalhar no país. “Foi a melhor escolha”, explica, referindo que, quase três décadas depois, é aí que se sente em casa. “Estou há muito tempo fora do Brasil e acho que apanhei um pouquinho de um lado mais europeu, que eu gosto mais, de um lado até mais reservado, que penso que tenha mais a ver com a minha personalidade”, refere. O Brasil, porém, permaneceu o fiel guardador dessas memórias de infância, das tais guitarras e objectos musicais em miniatura. “A parte mais brasileira que eu tenho ainda é a minha música”, sublinha. 

Foi em São Paulo, no Conservatório Musical Souza Lima, que Felipe Fontenelle começou a estudar canto e guitarra. Já em Lisboa prosseguiu com aulas particulares de guitarra, até ingressar na Escola de Jazz Hot Clube Portugal.  

 

Versatilidade 

Fontenelle juntou-se em 1999 a um grupo de amigos e formou os Pudim Floyd, uma banda de covers, que mais tarde, com a entrada de um novo vocalista, se viria a transformar nos 80&tal. O músico, que dava também aulas de técnica vocal, tocava em eventos, festas, festivais, em grupo ou a solo. “Tocava consoante os projectos, acho que os músicos todos têm essa versatilidade, pode ser a solo, num duo, trio, quarteto, quinteto, sexteto, ou uma coisa gigante com uma orquestra”, diz.  

Em 2007 lançou em Portugal e no Brasil o álbum Felipe Fontenelle, um disco a solo com edição da Universal Music. No projecto, que contou com a participação da fadista Cristina Branco, figuravam cinco temas originais e nove versões de músicas de artistas como Lenine, Chico Buarque e Caetano Veloso. “Sentia que, em termos de composição, precisava de amadurecer um pouco mais e, por isso, não quis fazer um disco só com músicas minhas”, nota.  

Chill Bill nasceu cinco anos depois. Com este projecto experimental, o brasileiro explorou uma “abordagem dentro da música chillout, electrónica” e afastou-se temporariamente da bossa nova e da música popular brasileira, dando “uma roupagem diferente” a alguns dos seus temas favoritos das décadas de 1980 e 1990. Foi pouco depois que partiu para Macau, onde reside actualmente. A actuação frequente no Hard Rock Café de Lisboa abriu caminho para os 80&tal tocarem no Hard Rock Café de Macau. Passado meio ano, três dos membros, incluindo Fontenelle, criaram os Sunny Side Up, um projecto de originais, ligado à Casa de Portugal de Macau, e que hoje conta já com quatro discos.  

 

 

 

Lugares e influências 

M de Memória, o segundo trabalho a solo do músico brasileiro, está disponível em formato digital desde 2016, embora a apresentação do disco tenha acontecido apenas este ano, em Portugal. Dos 16 temas apresentados neste novo projecto, estão incluídas parcerias com outros compositores, poemas de Fernando Pessoa e até uma incursão pelo patuá, o crioulo de Macau, com um poema do macaense José dos Santos Ferreira, mais conhecido por Adé. “Todos os lugares por onde a gente passa, por onde a gente vive, vão-nos influenciando e modificando, trazendo algo de novo e é isso que eu também quero para mim e para a minha música”, nota Fontenelle, assumindo o desejo de cantar no futuro um tema em mandarim. 

Com produção de Ricardo Cruz, M de Memória é um regresso ao passado – e à avó Esmeralda, a quem dedica um dos temas – e “um disco muito intimista com uma base de voz e violão”. E também aqui Felipe volta a apostar na versatilidade, procurando dar às músicas novas formas. “Ao vivo, tenho estado a fazer espectáculos em sexteto, ou seja, com cinco músicos a acompanharem-me, e é um projecto mais enérgico, com mais alguns sambas, músicas mais animadas, porque eu senti falta um pouco disso ao vivo, de não ser uma coisa muito intimista.” 

Deus também sorri, um dos temas do novo álbum, tem letra de António Ladeira e conta também com duas versões, uma delas produzida no Rio de Janeiro e que pode ser encontrada apenas em plataformas digitais. “Resolvi refazer essa música com um arranjo e produção diferentes, tudo feito no Brasil, com [produção de] Luiz Cláudio Ramos, que trabalha há mais de 40 anos com Chico Buarque”, salienta. 

 

 

 

Duetos  

Felipe Fontenelle admite que tem uma queda por duetos. Depois de dois temas gravados com a fadista Cristina Branco, sonha estar ao lado dos músicos que tem como referência. São eles Chico Buarque, Caetano Veloso, Djavan, Lenine. “No Brasil, talvez a voz feminina que eu mais amo é Marisa Monte, uma voz da bossa nova é Rosa Passos, baiana muito dentro da minha área e que tem uma voz muito doce.” 

Já de Portugal, a preferência recai sobre Carminho. “Hoje em dia, dentro do fado, talvez seja a voz que mais me toque”, vinca Fontenelle, realçando que António Zambujo é uma das vozes masculinas com que mais se identifica. 

Para já, está gravado um novo dueto com a cantora portuguesa de jazz Joana Espadinha. “É um tema original, que vou lançar como single e quero ver se ainda consigo editar este ano”, admite o músico, acrescentando que, neste momento, encontra-se a trabalhar com uma agente que é quem dá apoio na gestão da sua carreira. É que a experiência com uma editora, revela, não foi positiva: “Eu achava que [a editora] faria a sua parte no sentido de abrir portas, da própria divulgação através dos meios de comunicação, achei que podia até estar mais tranquilo e que as coisas andariam por si só tendo uma editora. Mas no fundo não senti que fosse assim “, confessa.