Macau e Portugal juntos na Memória do Mundo da UNESCO 

As “Chapas Sínicas”, vasta colecção de registos de Macau durante a dinastia Qing, foram reconhecidas em Outubro pela UNESCO e inscritas no Registo da Memória do Mundo. A MACAU falou com os responsáveis pela primeira candidatura conjunta entre a RAEM e Portugal.

 

 

Texto Hélder Beja 

 

Os mais de 3600 documentos preservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Portugal, que retratam a relação entre as autoridades chinesas e portuguesas durante os séculos XVIII e XIX, foram reconhecidos pela UNESCO e inscritos no Registo da Memória do Mundo. O anúncio do sucesso da primeira candidatura conjunta entre Macau e Portugal foi feito em Outubro, com os “Registos Oficiais de Macau Durante a Dinastia Qing (1683-1886)” a serem distinguidos pelo Comité Consultivo Internacional do Programa Memória do Mundo da UNESCO, que reuniu em Paris e fez ao todo 78 novas nomeações. 

“Esta colecção é um testemunho do processo histórico da Dinastia Qing, da sua prosperidade ao declínio, e revela a importância de Macau enquanto grande porto de trocas entre Oriente e Ocidente, bem como o seu papel na impulsão do comércio internacional e intercâmbio cultural”, refere o Instituto Cultural (IC) em resposta às perguntas da MACAU. “Os documentos revelam que a correspondência trocada entre as autoridades chinesas e portuguesas baseadas em Macau foi escrita em géneros específicos.” 

Entre os documentos agora distinguidos estão mais de 1500 ofícios em língua chinesa, cinco livros de cópias traduzidos para português das cartas mantidas pelo Leal Senado e ainda quatro volumes de documentos diversos.  

São “documentos oficiais e não-oficiais datados a partir de meados do século XVIII até meados do século XIX, desde o início do reinado de Qianlong até ao final do reinado de Daoguang da Dinastia Qing. A maior parte da colecção é composta por correspondência oficial trocada entre os subprefeitos de Macau, magistrados de Xiangshan e outros funcionários chineses e os Procuradores do Leal Senado de Macau, durante o exercício da soberania chinesa sobre o território de Macau”, refere o IC em nota publicada a respeito da distinção da UNESCO. “Parte dos arquivos reflecte a soberania jurisdicional e territorial da China sobre Macau e os termos e limitações que foram estabelecidas para o controlo da Administração Portuguesa de Macau, contando ainda com relatórios e petições apresentados pelas autoridades portuguesas de Macau e as respostas recebidas das autoridades chinesas de Guangdong.” Há ainda documentos vários, como cartas, actas, contratos e outros registos que traçam um fresco das “condições sociais, vida quotidiana, desenvolvimento urbano, comércio” e de outros aspectos do território durante aquela época. 

“Este acervo apresenta um retrato fiel da posição e do papel únicos de Macau no mundo durante o referido período. Macau como um porto para o comércio e intercâmbio da China ao exterior, através de transporte marítimo e outros meios, contactava com muitos países, incluindo o Reino Unido, França, Rússia, Estados Unidos da América, Suécia, Holanda, Dinamarca, Espanha, Japão, Coreia do Norte, Vietname, Brunei e Filipinas, etc., tornando-se um lugar cheio de barcos estrangeiros, coexistindo a cultura ocidental e oriental”, acrescenta o IC. 

 

Um tesouro na Torre do Tombo 

A colecção das “Chapas Sínicas” foi levada para Portugal no século XIX, sendo posteriormente transferida para a custódia do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Em 1989, começou o processo de passagem a microfilme e catalogação de todos os documentos, feito por uma equipa do então Arquivo Histórico de Macau. Quase uma década depois publicou-se o catálogo “Chapas Sínicas” em português e chinês, e foi já em 2000 que os ofícios chineses e a sua tradução para português foram publicados pela Fundação Macau. 

A ideia de uma candidatura conjunta à UNESCO viu-se facilitada pela assinatura de um protocolo de colaboração entre o IC e a Direcção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) de Portugal em 2015. Em 2016, a colecção foi classificada pela 7.ª Reunião Geral do Comité do Programa Memória do Mundo da UNESCO para a Ásia-Pacífico (MOWCAP), que teve lugar em Hue, no Vietname. Já este ano, o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, visitou a Torre do Tombo para conhecer a colecção. Na deslocação a Portugal, durante a qual esteve reunido com o ministro da Cultura português, Luís Filipe Castro Mendes, as “Chapas Sínicas” não foram esquecidas e ambos os governantes aguardavam expectantes a decisão da UNESCO. Finalmente, em Outubro, a RAEM e Portugal lograram a inscrição definitiva dos documentos na Memória do Mundo. 

“A preparação da apresentação conjunta [da candidatura] não podia ter decorrido de melhor forma. Houve um perfeito alinhamento de interesses, dado o reconhecimento do imenso valor histórico da documentação, quer por parte das entidades portuguesa e de Macau, quer por parte das entidades da República Popular da China, da qual se recebeu manifestação de incentivo e aprovação”, diz à MACAU José Furtado, da DGLAB. Só assim terá sido possível “delinear uma metodologia convergente para o sucesso da candidatura e erigir uma candidatura que foi capaz de satisfazer, em absoluto, os requisitos exigidos pela UNESCO, quer do ponto de vista das garantias de salvaguarda, conservação, preservação e restauro da documentação, quer da divulgação e capacidade de disseminação da informação junto à comunidade de interessados”. 

Para José Furtado, o feito agora alcançado “representa o reconhecimento da monumental importância deste conjunto documental para a memória das gerações vindouras no tocante à história das relações luso-chinesas entre os anos de 1693 e 1886 que importa seja preservado, conservado e divulgado, visto constituir-se como a maior fonte de documentos originais, senão a única, para a compreensão da política de ‘negócios estrangeiros’ implementada pela Dinastia Qing no seu relacionamento com o ocidente.” 

O carácter analógico e a antiguidade deste legado histórico merecem destaque nas palavras de Furtado: “Compreensivelmente, tendo em consideração que 100 por cento desta documentação é em suporte papel, cerca de 50 por cento encontra-se em mau ou muito mau estado de conservação, 30 por cento em estado razoável e 20 por cento em bom estado de conservação”, refere. A ideia é que “à medida que o trabalho de consolidação e restauro da documentação se vá completando, a documentação fique disponibilizada em linha”, acrescenta o responsável. Actualmente, encontram-se em linha 621 documentos, num total de 8392 imagens que podem ser acedidas através da Base de Dados DIGITARQ na página do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (http://antt.dglab.gov.pt/pesquisar-na-torre-do-tombo/), de forma gratuita. José Furtado lembra que o acordo estabelecido entre o IC e a DGLAB tem em vista a “consolidação e restauro de uma parte muito significativa desta documentação”. “O acordo inclui o compromisso de digitalização e disponibilização em linha dos documentos. O objetivo é, precisamente, o de permitir o acesso global a esta informação documental” por parte de investigadores e outros interessados. 

 

Exposições a caminho 

A divulgação do conjunto documental que compõe as “Chapas Sínicas” passará pela realização de exposições em Macau e Portugal em 2018 e 2019, respectivamente, bem como pela emissão simbólica de selos comemorativos. Na RAEM, a mostra acontecerá em Julho do próximo ano e representará um investimento de cerca de 500 mil patacas, segundo informação avançada pela directora do Arquivo de Macau, Lau Fong, ao Jornal Tribuna de Macau. Ao mesmo diário, o presidente do Instituto Cultural, Leung Hio Ming, expressou também o seu contentamento pela distinção conseguida: “Isto prova que Macau não é apenas reconhecido a nível mundial pelo património exterior mas também conteúdos interiores, o que representa um êxito significativo”. “Espero que este êxito incentive mais pessoas a frequentar o Arquivo de Macau, não apenas para estudos académicos”, disse ainda o presidente do IC. 

De Portugal, vem a ressalva de que nestas duas mostras “serão exibidos apenas alguns exemplos da documentação, não a colecção inteira”, adianta José Furtado. O representante da DGLAB, que faz um balanço positivo desta cooperação com a RAEM, diz ser ainda “bastante cedo para prestar informações mais concretas” sobre futuros projectos conjuntos, mas adita que “o interesse e o impacto que a distinção tem merecido junto aos mais diversos sectores da sociedade portuguesa, chinesa e de Macau, poderão vir a suscitar o desenvolvimento de outras iniciativas em parceria”.