Texto Hélder Beja | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
A pequena acelera que Jenny Mok conduz diariamente ficou parada bem perto desta esplanada dos NAPE (Novos Aterros do Porto Exterior). É nela que esta encenadora local se desloca para os ensaios, para as aulas que dá a pessoas com necessidades especiais, para as visitas a escolas e até para o projecto artístico que desenvolve por estes dias com reclusos do Estabelecimento Prisional de Coloane. Aos 31 anos, a directora do bem conhecido grupo de teatro local Comuna de Pedra é uma das vozes mais fortes da cena teatral e performática de Macau, e não tem mãos a medir, com cada dia mais cheio que o anterior.
O modo como fala sobre a sua expressão artística diverge da imagem que passa: Jenny Mok tem sempre um estilo discreto e relaxado, mas quando o tema é o seu trabalho a voz coloca-se e o discurso ganha espessura. O palco, como está bom de ver, é coisa séria. “Nunca fui para uma escola oficial de artes ou teatro até 2012, quando me mudei para Bruxelas. Estudei em Macau toda a minha vida, primeiro na escola pública e depois na Universidade de Macau. O meu mestrado foi em Inglês e especializei-me em Literatura”, atira, quase maquinal, repassando brevemente o currículo.
Haveria de ser fora das salas de aula que o teatro viria ao encontro desta jovem local. Corria o ano de 2001 e a zona exterior do Centro Cultural de Macau recebia o espectáculo “Record of Heretofore Lost Works”, apresentado pela Comuna de Pedra. Na audiência estava aquela que viria a tornar-se a sua actual directora. “Esse espectáculo teve um grande impacto em mim, nunca tinha visto nada assim. Era uma peça de dança, enorme. Eles trabalharam com um coreógrafo japonês, um músico mexicano e, claro, com a Jane Lei, [uma das fundadoras] da Comuna de Pedra. Para mim, naquela altura e com apenas 16 anos, foi fantástico.”
Um ano depois, Jenny Mok vivia ainda assombrada por aquela experiência. Por isso ofereceu-se como voluntária quando soube que a Comuna de Pedra se preparava para repor o mesmo espectáculo. “Aceitaram-me e era suposto eu ajudar apenas a passar roupa mas, de algum modo, comecei a ensaiar com eles e foi assim que me envolvi no teatro”, recorda.
Além da palavra
Na Universidade de Macau, onde estudou inglês, e no Conservatório de Macau, cujo departamento de teatro frequentou por mais de dois anos, a palavra era quase sempre a base de todo o processo criativo. “Trabalhava-se muito com base no texto, era uma arte performativa muito agarrada ao guião. Percebi que, apesar de gostar da estrutura, do texto e do guião, em termos de criação prefiro algo mais contemplativo, que vá além do texto.” E são os movimentos corporais, a expressão física do teatro, esse “além do texto” de que fala Jenny Mok.
As experiências como performer e actriz foram-se repetindo ao longo dos anos, mas cedo a artista percebeu que seria fora de cena o lugar em que se sentiria mais realizada. “Como estudante universitária, além de não ser muito aplicada, tinha bastante tempo livre, e comecei a procurar agarrar todas as oportunidades para participar em vários tipos de espectáculos. Toda a minha experiência vem desse envolvimento, de fazer espectáculos, dos ensaios. Na época eu era basicamente uma actriz. Cerca de cinco anos depois, em 2007, apercebi-me de que queria criar algo meu e foi assim que me tornei encenadora”, prossegue.
No início, confessa, não fazia ideia do que representava o trabalho de encenação. “Era tudo muito confuso. Lembro-me de, uma vez, haver uma cena sobre a morte e, na tentativa de que os actores se envolvessem mais nas personagens, fomos para um templo chinês, atrás do Jardim [Luís de] Camões, com uma escadaria enorme. Foi de loucos, não fazia sentido nenhum, mas quando se é jovem e não se tem qualquer experiência faz-se tudo o que se quer, o que achamos que está certo, temos coragem para fazer todas as loucuras. Então pedi-lhes para se posicionarem no cimo das escadas e imaginarem que iriam cometer suicídio ao atirar-se pelas escadas abaixo. ‘Tem de parecer real!’ Foi uma confusão. Mas isso foi há 10 anos. Foi a minha primeira encenação.”
Os passos iniciais na carreira que hoje ocupa a tempo inteiro estão bem gravados na memória de Jenny Mok. O vídeo “A Day With The Red Nose”, em que juntamente com outros actores andou vestida de palhaço pelas ruas da cidade, é uma das mais vividas recordações. “Andámos a improvisar nas ruas, nos restaurantes, no mercado chinês, na ponte… A polícia apareceu a perguntar o que estávamos a fazer. Foi engraçado, foi uma experiência”, ri-se.
Aos poucos, a encenadora foi compreendendo o que realmente importa – e isso, acredita, é a mensagem que pode ser transmitida através da criação artística. “Continuei a encenar, comecei a aprender, passo a passo, qual é a melhor forma de transmitir uma ideia e o que é isso de transmitir uma mensagem. Quando queremos encenar uma peça, criar uma obra, seja uma pintura, dança, teatro, literatura, há algo que queremos dizer. Pouco a pouco estou a aprender a comunicar, a canalizar uma ideia através de um meio de expressão. É um processo de aprendizagem.”
Até 2012, Jenny Mok participou em várias produções enquanto actriz e encenou outras, trabalhando com várias companhias de Macau. Entre os trabalhos assinados nessa época, destaca um com cariz bastante pessoal: “A peça que considero mais relevante dessa época é “Beyond the Misty Air”, uma mistura de teatro e dança com quatro actrizes, que explorava a relação entre mãe e filha. Em 2001 foi diagnosticada à minha mãe uma doença cerebral incurável que afecta os movimentos, ela acabou por falecer em 2011. Quando somos jovens há uma série de sentimentos com que não conseguimos lidar e foi isso que me levou a querer criar. Percebi que expressá-los através da arte era uma grande libertação para mim. Essa peça é sobre isso. Não creio que seja perfeita, mas em termos emocionais foi muito importante para mim.”
Sair para crescer
Se trabalhar em volta da perda de um ente querido foi determinante para Jenny Mok, a mudança para a Europa também. “Percebi que precisava de algo mais, precisava de me ultrapassar”, assume a artista. O destino esteve para ser França e a École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq, mas acabou por ser a Bélgica. “Não queria ir para o Reino Unido ou para os Estados Unidos, porque ali a escola teatral é muito técnica e agarrada ao texto, e não era isso que procurava.” A busca era então por um espaço de criação que privilegiasse o corpo, o teatro físico, algo que acabou por encontrar na École International de Theatre LASSAAD, em Bruxelas.
“Foi uma boa experiência, bastante diferente. É estimulante trabalhar na indústria, fazer espectáculos e tudo o que isso requer, trabalho, prazos, etc., mas ao mesmo tempo poder voltar à escola e poder aproveitar o facto de ser estudante, de poder errar e voltar a tentar, foi algo que eu nunca tinha experimentado”, explica Jenny Mok. “Sempre trabalhei para uma produção, para um produto feito, nunca trabalhei para mim. E apercebi-me que não havia mal nenhum em falhar, era apenas um exercício. Isso foi bastante inspirador.”
A língua francesa foi um dos grandes desafios em Bruxelas, quase “como se tivesse passado seis meses a aprender português em Macau e fosse para Portugal tentar falar”. Essa experiência, descreve Jenny Mok, foi um pouco como voltar à infância. “A língua é uma coisa muito delicada e quando não somos compreendidos quase que nos sentimos incapacitados. Mas o desafio foi como superar esta dificuldade e não ter medo de cometer erros, perceber que não tenho de ser perfeita. Em termos artísticos, a escola também é muito boa, os professores ajudaram-me imenso, aprendi muito.”
Durante mais de dois anos, Mok esteve rodeada de criativos e de correntes artísticas, num “ambiente artístico bastante diferente do de Macau”, que descreve como “muito mais avant-garde, com muito mais a acontecer nas artes performativas contemporâneas, teatro, dança…”.
De regresso à cidade onde nasceu e onde deseja viver, Jenny Mok encontrou algumas diferenças, a começar pelo modo como as pessoas gastam o seu tempo e dinheiro. “Em termos de políticas houve melhorias. As pessoas estão mais dispostas a fazer actividades culturais agora do que há três ou quatro anos. Para ser franca, estamos a competir com o grande negócio do entretenimento, as pessoas pensam em ir ao teatro, a um espectáculo ou a um concerto com o mesmo estado de espírito de consumismo, põem tudo no mesmo saco, não há uma divisão. Penso que houve melhoramento nas políticas, mas também houve uma grande mudança de público”, avalia a encenadora.
Enquanto directora da Comuna de Pedra, agremiação que já conta mais de duas décadas de actividade, o desafio passa por arranjar estratégias para cativar o público. Para Mok, é “extremamente importante continuar a produzir”, mesmo que haja aparentemente menos pessoas interessadas. Melhorar a curadoria de cada projecto e ter arrojo são duas das ideias fortes da artista para o futuro da companhia que dirige. “Sinto-me mais preparada para o fazer, e não tenho medo de lutar por um lugar para mim e para a companhia”, assegura.
Jenny Mok quer continuar a encenar, ao mesmo tempo que estima muito o trabalho comunitário desenvolvido pela Comuna de Pedra, desde as oficinas com crianças às acções com pessoas com necessidades especiais. “É um trabalho de educação das comunidades, que eu adoro, e ao mesmo tempo está relacionado com a arte. Parecem duas actividades completamente diferentes, e são, mas estão interligadas. Sinto-me feliz por estarmos a fazer um trabalho que talvez não seja visível agora, mas que será daqui a dois, três, cinco anos. É um trabalho focado na criação, nos artistas e ao mesmo tempo focado em criar uma base cultural que, esperamos, possa unir a comunidade através da arte.”