Festival do Barco-Dragão

O Festival do Barco-Dragão, em honra do poeta Qu Yuan (屈原) que viveu no Período dos Estados Combatentes, tem lugar no 5.º dia da 5.ª Lua. Conhecido também como o duplo cinco, neste ano de 2018 calha no dia 18 de Junho do Gregoriano.

 

 

Texto Fernando Sales Lopes | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

O Tung Ng (端午節) é um antigo festival chinês que marca o solstício de Verão do calendário Lunar. Na antiguidade, o Verão era tido como uma época do ano pouco saudável, na qual o calor, a secura e outras situações propiciavam o aparecimento de todo o tipo de doenças. Por isso, o dia dos barcos-dragão é, também, um dia de exorcizar as más influências de modo a fazer-se frente às pestilências que se aproximam.

O Barco-Dragão é o segundo festival do calendário chinês que comemora a vida. O primeiro é o Ano Novo, que assinala a Primavera, e o terceiro, o Festival de Chong Chao ou do Meio do Outono.

 

O mítico Dragão

No Confucionismo, o dragão representa força, virtude e honestidade. É também símbolo do poder imperial. Os imperadores eram tidos como uma encarnação do Dragão. Na China, o mítico dragão concentra em si inúmeras facetas, mas transporta sempre o bom augúrio. Para o povo, o dragão é inseparável da água e significa fertilidade. Na Primavera traz dos céus as chuvas, no Outono mergulha nas águas, recolhendo-as. Com a água, ou da água, vivem aqueles que em Macau o veneram, ou veneravam, com mais intensidade: os pescadores e os comerciantes de pescado. Os comerciantes fazem-no em terra na celebração do Dragão Embriagado, enquanto que os pescadores o fazem através da festividade do Barco-Dragão.

Hoje o festival centra-se na sua componente lúdica com as corridas, como um desporto cada vez com mais adeptos. As corridas internacionais de barco-dragão, que se iniciaram no início dos anos de 1980, são o símbolo principal do festival. Antes, as equipas representavam associações, grupos e pescadores, que as realizavam tendo presente a lenda que lhes deu origem.

Para a maioria das pessoas, a data está directamente relacionada com a tragédia do poeta Qu Yuan, um ministro do Rei de Chu no período dos Estados Guerreiros, cerca de 300 anos antes de Cristo. Leal e adepto da paz com os outros reinos, acabaria por ser vítima das intrigas palacianas. Mal aconselhado, o Rei desterrou o poeta, e este continuou a escrever poemas contra a corrupção, o egoísmo dos governantes, e o desprezo que votavam ao povo. O seu Rei acabou por morrer às mãos do inimigo.

Qu Yuan, ao saber que a traição e a corrupção tinham vencido, atirou-se ao rio Miluo. O povo tentou recuperar o corpo, lançando para as águas arroz para que os peixes não o devorassem. Nos barcos os tambores ruidosamente tentavam afastar os peixes, ao mesmo tempo que os remos, com a mesma intenção, batiam na superfície das águas. À noite o espírito do poeta apareceu aos amigos pedindo para que lançassem o arroz, envolvido em folhas de bambu, atadas com fios de seda de várias cores, para que os bagos não desaparecessem. Por isso se fazem as corridas de barcos-dragão e se come o tchong.

 

Superstições e crenças do Duplo Cinco

Se hoje se festeja o poeta, antes a data estava associada ao culto da fertilidade. No sul da China marcava o crescimento do arroz. Os agricultores faziam os seus rituais ao deus Dragão, para que a colheita viesse a ser farta.

Iniciava-se a época quente e com ela o aparecimento de doenças, que era necessário prevenir, particularmente nos mais novos, com menos resistências. Nas portas das casas penduravam-se ramos de plantas, fortemente aromáticas, para afastarem as doenças.

Mandava a tradição que, para se afastarem os males das crianças, se juntavam fitas de seda com as cinco cores que se prendiam às roupas. O mesmo se colocava nos cabelos e se atava (e acta) o tchong. As cinco cores simbolizam os cinco elementos.

Conhecido como catupá [ver caixa] pelos macaenses, comer o tchong é para as gentes de Macau quase obrigatório durante esta quadra.

Como curiosidade se aponta também a prática macaense de se guardarem as roupas de Inverno nesta data, nomeadamente o que necessitava ser mais protegido como peleria e tecidos nobres que eram depositadas nas Torres de Prestamista até ao surgimento da estação fria.

 

A azáfama da festa

Dois meses antes das corridas, as diversas associações tratam dos seus barcos reparando, calafetando, pintando de novo, ao mesmo tempo que se iniciam os treinos que, ao romper do dia ou ao cair da noite, marcam a sua presença na cidade, ouvindo-se ao longe o bater nos tambores que marcam a cadência aos remadores.

Tudo começa com dádivas aos deuses pedindo a protecção para as equipas e sorte para o seu desempenho. São várias as cerimónias de Pai San (onde se evocam os espíritos) que antecedem a disputa entre as equipas de Macau e aquelas oriundas dos quatro cantos do mundo.

A superstição é confessada pelos intervenientes, que a justificam como forma e antidoto para evitar acidentes. Fazem-se oferendas e reverências. Dá-se vida ao dragão que guiará a embarcação. Vai-se espargindo os remadores, protegendo-os contra qualquer mal, que o panchão com o seu forte ruído afastará. Feitos os sacrifícios, expressas as intenções, alimentando-se os espíritos, é tempo de tratar do corpo, que ser remador não é tarefa fácil.

 

Do Tung Ng às Corridas Internacionais de Barcos-Dragão

Em Macau, até aos anos de 1980 o Tung Ng festejava-se no seu próprio dia, com as tradicionais corridas de barcos-dragão representativas das diversas associações locais, pelo que a festividade era vivida com a intensidade e a simplicidade de outras festividades, em que a disputa entre bairros e corporações e o convívio da festa marcavam pelo ritual mais um ciclo na vida das gentes. Realizavam-se então em águas livres do Rio das Pérolas ao longo da Baía da Praia Grande.

Hoje a actividade mais importante são as Regatas Internacionais de Barcos-Dragão, promovidas e organizadas anualmente no Centro Náutico da Praia Grande em conjunto pelo Instituto do Desporto e pela Associação de Barcos-Dragão de Macau, e que cada vez mais atraem participantes de todo o mundo. Equipas vindas de várias partes do globo concentram-se em Macau, lado a lado com as locais, para disputarem os apetecidos títulos.

A Associação dos Trabalhadora da Função Pública, a maior associação laboral de Macau, também está presente com a sua equipa, o mesmo acontecendo com muitos serviços públicos e empresas, nomeadamente as hoteleiras locais também formam as suas equipas para o evento. Também equipas de estudantes do ensino superior de Macau e de outras partes estão presentes.

 

Participação das mulheres

A grande transformação consequência da internacionalização do evento e da componente jovem é a participação feminina cada vez mais presente. Assinale-se que tal participação estava vedada pela tradição que não permitia às mulheres participarem em corridas de barco-dragão.

A juventude, sempre presente nestas regatas, é a garantia da continuidade da tradição, embora modernizada com a inclusão da vertente desportiva. Contudo, tudo leva a crer que é esta vertente que lhe garante a continuidade.

Da festa das comunidades piscatórias locais, que em mar aberto faziam as suas corridas assinalando a data, em rara confraternização, até às modernas corridas internacionais de barcos-dragão, vai a distância da globalização e de uma Macau colocada no mapa dos grandes eventos mundiais.

 

Lendas e mitos

Embora a morte do poeta Qu Yuan seja indissociável desta data, muitas lendas e factos se desenvolvem em redor da festividade de Tung Ng. Antes mesmo de se atribuir a origem da festividade ao letrado, poeta e ministro do Reino de Chu, o festival era dedicado a outro fiel servidor real, Wu Zixu, do Estado de Wu, que também mergulhou nas águas de um outro rio no dia de duplo cinco.

Após a sua morte, Wu Zixu passou a ser adorado como uma divindade dos rios e é relembrado ainda hoje na província de Jiangsu, nomeadamente em Suzhou, durante o Festival de Tung Ng.

Mas antes, muito antes de estes heróis enobrecerem a data com o exemplo dos seus actos de lealdade para com os seus monarcas, o duplo cinco se diz também ter sido dedicado à divindade Senhora Serpente Branca (白蛇傳).

Também há quem atribua a origem da festividade a uma celebração ao Rei Dragão que vivia sob as águas. O arroz teria o significado de oferendas à divindade, e a origem das corridas de barcos-dragão à concentração de embarcações dos que vinham visitar familiares e amigos pelo rio nessa altura.

 

O poeta símbolo da honra e da dignidade

Qu Yuan (340 a.C. – 278 a.C.) foi um intelectual e ministro da corte do Rei de Chu do Sul, no Período dos Estados Guerreiros. Os seus poemas fazem parte da antologia Chu Ci. A tradição assinala o Festival Tung Ng, mais propriamente, o Festival do Barco-Dragão, como o da comemoração da sua morte.

O culto de Qu Yuan, o seu exemplo de lealdade e do significado milenar do Tung Ng estão na memória ancestral do povo, tendo a data passado a ser feriado em toda a China desde 2008. Este dia era celebrado como o Dia dos Poetas na República da China. Nos anos de 1950, o Partido Comunista Chinês apresentava Qu Yuan como um “poeta patriota”, um exemplo a ser respeitado.

 

 

Há mais de 2000 anos, no período dos estados guerreiros na China, viveu um poeta chamado Qu Yuan, segundo narra a lenda homem muito inteligente e que, por isso, se tornou conselheiro do rei Wai Wang, de Chu. O rei tinha muitos funcionários e conselheiros corruptos que não gostavam do poeta. Convenceram então o monarca de que Qu Yuan não lhe era fiel como ele pensava. Tantas coisas lhe disseram que o rei acreditou mandando-o para o desterro. Longe da sua terra, o reino de Chu, Qu Yuan escrevia poemas contra a corrupção, o egoísmo dos governantes e o desprezo que os grandes votavam ao povo…

(…) o rei de Chu estava de más relações com o reino de Qin. O poeta sempre aconselhou o seu rei a fazer alianças com o reino de Qi para poder enfrentar o reino de Qin, se tal fosse necessário. Assim que Qu Yuan foi expulso, o rei de Qin tratou de subornar os conselheiros do rei de Chu de forma a convencerem-no a quebrar a aliança com o reino de Qi. Ora, bem… o poeta, mesmo no exílio, soube disto e mandou um recado ao rei para não acreditar nas boas intenções e não ir visitar o reino de Qin para o que fora convidado.

– E ele foi? (…) – Foi, e foi preso, acabando por morrer às mãos do inimigo.

(…) Ao saber da desgraça que acontecera ao seu rei e ao seu reino, da vitória da traição e dos corruptos sobre a lealdade e a honestidade, o poeta atirou-se ao rio Miluo. Ao saber da tragédia o povo, que amava o poeta, lançou ao rio as suas canoas para recuperar o corpo de Qu Yuan antes que os monstros marinhos se apoderassem dele. Para afastarem os peixes e maus espíritos do corpo do poeta lançavam arroz para as águas, ao mesmo tempo que tocavam insistentemente nos seus tambores com estrondoso ruído, e com os remos agitavam as águas batendo com as pás na sua superfície. Mas a primeira tentativa foi em vão. Então, à noite – diz a lenda – o espírito do poeta apareceu aos seus amigos dizendo-lhes que a sua acção só teria efeito se os barcos tivessem o feitio de um dragão e se o arroz que lançassem ao rio fosse envolvido por folhas de bambu, atadas com fios de seda de várias cores…

 Aqui nasceu o tchong que é hábito comer-se nesta época. Existem duas versões da lenda para o arroz atirado ao rio, uma delas era para os monstros marinhos comerem e, assim, deixarem o corpo do poeta em paz, a outra é que o poeta estava preso nas profundezas do rio necessitando desse arroz para se alimentar!

Com uma ou outra razão a verdade é que, ainda hoje, passado tanto tempo se continuam a fazer corridas com barcos-dragão e a comer-se, neste dia, o tchong (…)

 

 

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Tchong ou catupá

Trata-se de um bolo de arroz glutinoso cozido a vapor, com recheio variado que pode ser de feijão preto, carnes assadas, camarão seco, ovo, sementes de lótus, carne salgada, vieiras, entre outros. É feito em formato de pirâmide, embrulhado em folha de lótus, de bananeira ou de bambu, atado com as mesmas folhas usadas que pretende sugerir aos embrulhos de arroz lançados ao rio para proteger dos peixes o corpo do poeta.