O menino que trouxe o ouro para Macau

Na última edição dos Jogos Asiáticos, em Agosto, em Jacarta, Huang Junhua conquistou para Macau a medalha de ouro no wushu. À MACAU, o atleta premiado conta como conseguiu vencer desafios pessoais, com muitas lesões pelo meio, e chegar até ao lugar cimeiro do pódio. O ouro conquistado, diz ele, é uma maneira de provar a si mesmo o seu valor

Crédito: Gonçalo Lobo Pinheiro

Texto Sin Iok I | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

Huang Junhua nasceu na região de Guiping, na província de Guangxi, há 27 anos, e desde criança criou todo um imaginário à volta de personalidades ligadas às artes marciais. A personagem mitológica Sun Wukong, do conto chinês “Viagem ao Oeste”, e o actor Bruce Lee, mestre dos filmes de kung fu, foram as grandes fontes de inspiração para que Huang Junhua desse os seus primeiros passos nas artes marciais. No conto chinês, Sun Wukong e o monge Xuanzang partem com outros discípulos para o oeste, em busca das escrituras sagradas do budismo, deparando-se nesta caminhada com uma série de monstros.  

Na infância, Huang Junhua ficou profundamente impressionado com Sun Wukong, o primeiro dos discípulos, que enverga o bastão mágico e voava, por isso,  frequentemente imitava os movimentos de Sun. Assim, as primeiras vezes que contactou com as artes marciais foi a aprender bastão e espadas.  

Já a influência dos filmes de Bruce Lee é muito forte e perdura até ao presente. “O meu objectivo sempre foi imitar a maneira como o Bruce Lee via e expressava as artes marciais. Embora eu possa não compreender muito da sua moral e carácter, considero que a sua forma de interpretar as artes marciais tem muito estilo.” 

Ao ouvir dizer que os filhos dos vizinhos andavam em aulas de artes marciais, a mãe de Huang Junhua não quis que os filhos ficassem para trás no bairro. Por isso, inscreveu Huang, na altura com apenas cinco anos, e os dois irmãos na Associação de Amadores de Artes Marciais de Guiping. “Naquela altura íamos os três juntos praticar artes marciais, mas depois só eu continuei.”  

Hu Dongning foi o primeiro instrutor de artes marciais do pequeno Huang e a primeira modalidade que lhe ensinou foi o combate de espada e bastão, e não a sua actual especialidade de estilo Nan. Naquela altura, ele só queria aprender artes marciais e ser como Sun Wukong, por isso praticava horas a fio as técnicas de espada e bastão, passando depois para a lança e a espada. Assim foi até que certa vez, ao participar num torneio amador a nível provincial, chamou a atenção de um treinador de uma escola da cidade de Nanning. Nessa altura tinha ele 13 anos, e não teve receios de aceitar o convite de um desconhecido para tornar-se um profissional de wushu em Nanning. 

 Treinar de dia, estudar de noite 

Em Nanning, o modelo de treino era completamente diferente daquilo a que estava habituado na sua terra natal. Acordava às 5 horas, fazia alongamentos, corria, estirava os músculos. Às 7 horas tomava o pequeno-almoço e, logo de seguida, começava o treino intensivo de artes marciais. O treino da manhã terminava perto da hora do almoço e só então conseguia ter algumas horas para descansar. Assim que o relógio assinalava as 15 horas, Huang tinha de retomar os treinos, que se prolongavam até às 17 horas. Entre as 19 e as 21 horas, tinha então aulas normais da escola. Apesar da intensidade e da dificuldade de acompanhar os treinos, Huang disse que nunca pensou em desistir. E tinha um bom motivo para tal: “Quando era pequeno escrevi uma faixa a dizer ‘campeão mundial de artes marciais’. Por isso, quando eu me sentia mais cansado, lembrava-me desse objectivo de criança”.  

À medida que crescia, o sonho de ser um campeão mundial desaparecia, até que chegou a um ponto de total ruptura com o desporto, numa altura em que participou, pela única vez em toda a sua carreira, nos jogos nacionais de artes marciais. A pressão de participar numa grande competição, conjuntamente com as previsões de que estaria entre os favoritos ao pódio, teve um sabor bastante amargo para o jovem atleta. Na competição com espada e bastão, Huang Junhua agarrou na lança de madeira com cabeça de ferro, enquanto que o seu adversário lutou com uma espada. No início o combate correu bem, até que a lança de Huang Junhua se partiu, provocando um súbito ruído que deixou a plateia perplexa. Ele teve então de se retirar do combate e perdeu toda a vontade de regressar. Por isso, decidiu desistir da carreira de atleta para se dedicar- ao ensino secundário. Agora tinha em mente seguir um curso superior e ser um trabalhador como a maioria das pessoas recém-licenciadas, tendo o wushu apenas como uma actividade para as horas livres.  

Um amor para a vida  

Mal tinha acabado de ter esta ideia de desistir das artes marciais, aconteceu algo que fez com que a chama do seu entusiasmo pelas artes marciais voltasse a arder. Certa vez, ao praticar um movimento muito difícil, ao bater com os pés no chão lesionou-se na anca. Isto causou-lhe grande transtorno, fazendo com que não pudesse praticar normalmente como os outros atletas. Ao longo de um ano inteiro, só se sentava na bancada e via os outros a praticar, continuando ele sem nada poder fazer. “O meu treinador e chefe da equipa de treinos da altura, assim como dois outros treinadores, aconselharam-me a retirar-me, porque a lesão estava a demorar muito tempo a passar. Quando me disseram tal coisa, fiquei com o coração profundamente destroçado e dei-me conta que já não sabia viver sem as artes marciais.” 

Naquela altura, começou a questionar-se se tinha mesmo talento para as artes marciais ou se devia desistir para sempre. Assolado por estas dúvidas, foi percebendo aos poucos que, afinal, gostava mesmo muito do wushu e acreditava que tinha talento para chegar longe. Por isso, mesmo lesionado e sem poder sobrecarregar os membros inferiores do corpo, treinava os superiores com toda a diligência. Ainda hoje, os músculos dos membros superiores são mais fortes e tonificados.  

O treinador de Huang Junhua, que testemunhou todos os seus esforços e dedicação, sugeriu-lhe praticar Nanquan, modalidade que valoriza a força. Nanquan é um termo geral para as artes marciais de punhos, praticadas nas várias regiões do sul da China (sul do Rio Yangtze). Cada variedade de Nanquan tem o seu próprio sistema, e, de acordo com a classificação tradicional de artes marciais, é designado, de forma geral, de Nanshaolin. As características comuns das variedades de Nanquan são passos estáveis, punhos fortes, movimentos vigorosos, poucos saltos, mais socos curtos e emitem, normalmente, gritos e gemidos para estimular a força. O Nanquan tem uma maior implantação nas províncias de Fujian e Guangdong e tem uma extensa influência até ao sudeste da Ásia, Europa, América e muitos outros sítios. Qualquer lugar onde vivam chineses, há, certamente, actividades de Nanquan. Era exactamente a arte marcial adequada para Huang Junhua treinar.  

 

O destino e o Nanquan  

Regra geral, os atletas de artes marciais escolhem uma modalidade específica para treinar quando atingem os 12 anos. Mas no caso de Huang Junhua a decisão só aconteceu quando já tinha 16 anos e tendo em mente a sua lesão na anca. Na primeira competição em que participou, os Jogos Desportivos da Província de Guangxi, conquistou a medalha de ouro na modalidade de Nanquan. “Fiquei muito feliz porque tinha acabado de recuperar e nunca tinha pensado poder alcançar qualquer título naquela competição. Apenas pretendia fazer o meu melhor e mostrar as minhas capacidades. E, inesperadamente, consegui ser campeão.” 

Para Huang, era uma dupla vitória, já que estava há poucos meses a dedicar-se a uma modalidade completamente diferente do bastão e espada que sempre tinha treinado até então. “Tinha o corpo mais delgado e era bom para os movimentos mais suaves e fluentes de bastão e espada.” Os movimentos do Nanquan contêm posturas fixas, uma série de combinações de movimentos que exigem força explosiva, e a força também é altamente valorizada. Os joelhos flectidos no Nanquan requerem estabilidade e exigem uma melhor aptidão física.  

Treinava dia e noite, consultava materiais fora de aula para o ajudar a descobrir o ramo que lhe convinha, conhecer o estilo dos seus músculos e, também, via filmes de vários praticantes de artes marciais de referência. Os do Bruce Lee, é claro, eram os seus preferidos. “Os movimentos e as expressões faciais do Bruce Lee transmitem uma profusão de expressões e isto era o que eu mais queria imitar. Apesar de seguirmos modalidades marciais diferentes e de nunca ter pensado em praticar a modalidade dele, queria, através do Nanquan, expressar a sua forma de interpretar as artes marciais.”  

Crédito: Gonçalo Lobo Pinheiro

Rumo ao ouro 

Em 2009, por acaso e pelo destino, o treinador Zeng Tieming visitou a escola de desporto que Huang Junhua frequentava em Nanning e viu-o treinar. O treinador achou que Huang tinha capacidade e tomou a iniciativa de lhe perguntar se queria vir treinar para Macau. Foi um encontro simples, mas que lhe deu um novo sopro de vida quando estava novamente desorientado. “O treinador Zeng deu-me oportunidades e uma nova perspectiva de vida, por isso estou-lhe muito grato pela confiança que depositou em mim e vou envidar todos os meus esforços para não o desiludir. “ 

Depois de chegar a Macau, aos 19 anos, começou a frequentar o curso de Educação Física no Instituto Politécnico de Macau e voltou ao formato de treino amador que tinha em Guiping – estudava de dia e treinava de noite. Só quando chegou à RAEM descobriu que poderia ter a oportunidade de representar Macau em competições internacionais. “Passei a investir tudo na minha preparação para que tal momento chegasse.” 

Durante o dia, corria na Colina da Guia e no Reservatório de Macau para treinar a aptidão física, e passava horas a fio fora dos treinos a praticar. Aconteceu tal como se esperava, Huang Junhua não desiludiu as expectativas do seu treinador. Depois de chegar a Macau, conquistou em competições internacionais três medalhas de ouro, quatro de prata e três de bronze, já para não falar das competições locais, em que, todos os anos, conquistou a medalha de ouro na modalidade de Nanquan. “Tem sido uma grande honra representar Macau e trazer estas medalhas para casa”, diz a enunciar uma lista de pessoas que nunca se deve esquecer de agradecer. “Todos os meus treinadores e, sem dúvida, a minha família que nunca se opôs a que eu fizesse das artes marciais a minha vida.” 

Na sua última participação nos Jogos Asiáticos deste ano, que se realizaram em Agosto em Jacarta (Indonésia), o ouro chegou-lhe por um triz. O atleta obteve a pontuação de 19,43, ficando apenas a 0,01 ponto do segundo classificado, o vietnamita Pham Quoc Khanh. “Naquele momento estava muito nervoso porque havia pouca diferença nas pontuações. Eu disse a mim próprio que só precisava de fazer o meu melhor, controlar o stresse e comportar-me de forma natural.”  

Huang Junhua refere que o mérito não chega sem esforços. “Treino seis dias por semana, de segunda a sábado. Tenho aulas todos os dias de manhã, inclusive aos domingos. Ao final da tarde treino com os meus colegas entre três a quatro horas. Jantamos, fazemos os trabalhos de casa e só então descansamos. Esta tem sido a minha rotina desde os meus cinco anos.” 

Depois do bronze conquistado na edição anterior dos Jogos Asiáticos de Incheon (Coreia do Sul), em 2014, Huang Junhua diz não ter palavras que expressem o seu sentimento de gratidão. Em Macau, conta, o atleta descobriu uma outra filosofia de treino. “Aqui os atletas têm muito espaço para se desenvolverem. O treino em Nanning era muito intenso e eu não tinha tempo para pensar em outros assuntos. Tudo girava em torno das artes marciais; dia após dia a minha rotina era exactamente a mesma. Em Macau descobri que me fazia bem ter tempo para mim mesmo, para pensar noutras coisas.” Por isso, o atleta de ouro está confiante que com as novas instalações desportivas pensadas para médio prazo para Macau pois haverá ainda mais atletas a destacarem-se nas competições internacionais. 

Para Huang Junhua, a carreira nas artes marciais já tem data para acabar: será a seguir aos Jogos Asiáticos de 2022, em Hangzhou (Interior do País). Mas não irá virar a página do wushu na sua vida. “Quero ser treinador e passar as minhas ideias e experiências às novas gerações, de forma a continuar a contribuir para as artes marciais de Macau. Foram precisos muitos sacrifícios para chegar onde cheguei e a ideia de desistir passou-me muitas vezes pela cabeça. O wushu, mais do que um modo de vida, é para mim um sonho. Ainda quero ser o melhor do mundo. Foi esse sonho que me fez continuar.” 

Crédito: Gonçalo Lobo Pinheiro