Os chips que colocaram Macau no mapa

A Universidade de Macau tem desde 2003 um laboratório de microelectrónica que levou o nome da RAEM ao topo do mundo na área. Instituído como Laboratório de Referência do Estado desde 2011, o vice-reitor Rui Martins é responsável pelo projecto que cria chips que discutem com nomes grandes da tecnologia

Texto Bruna Pickler | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

O professor Rui Martins, vice-reitor da Universidade de Macau (UM) e director do laboratório de microelectrónica da mesma, é também, desde Setembro, responsável pelos Assuntos Globais da instituição. O docente está na linha da frente das tecnologias de última geração da principal instituição de ensino superior da Região Administrativa Especial (RAEM) de Macau, que é já uma referência em todo o País, no âmbito da microelectrónica.

O laboratório de microelectrónica foi criado originalmente em 2003, mas apenas em 2009 é que foi requerida a elevação do mesmo para Laboratório de Referência do Estado de Sinais Analógicos e Mistos VLSI. Após uma série de avaliações feitas pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, o mesmo tornou-se, em 2011, laboratório estatal, uma referência que se mantém até hoje no âmbito da microelectrónica. Naquela época, relembra Rui Martins, só havia uma licenciatura na Universidade de Macau e nem era nesta área especificamente, mas sim focada em engenharia eletrotécnica.

Depois deste feito, começaram a ser ministradas outras licenciaturas, depois mestrados e doutoramentos, um trabalho de mais de 26 anos.

Os chips

“Os chips em si são fabricados apenas em dois ou três sítios no mundo, que são muito especiais. O Japão também fabrica estes chips, porém, não para fins académicos, apenas para fins comerciais.” O vice-reitor explica que no laboratório trabalha-se com “dimensões nanométricas, como se fossem dimensões normais, pois, na realidade, essas dimensões são tão reduzidas que o olho humano não consegue perceber”.

O laboratório é exclusivamente de Macau. Todos aqueles que trabalham no laboratório são formados pela instituição de ensino ou chegam da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong.

Através de uma plataforma podem inserir o programa, controlar as camadas do circuito integrado e depois gravar para arquivo. Após este procedimento, o arquivo é enviado para quem faz o chip. “Depois temos que testar aqui, no equipamento. A fase final do circuito é fazer o layout, ou o desenho. Os circuitos que aqui estão são exclusivamente para investigação académica”, sublinha o docente.

Quando os chips estão devidamente testados e prontos, dá-se origem à publicação destes trabalhos e divulgação nas feiras de São Francisco, anualmente. Os resultados são para os trabalhos dos alunos de doutoramento”.

A parte prática deste trabalho surge depois, aplicando a tecnologia às empresas, trabalhando de perto no desenvolvimento de circuitos, “por exemplo, a Huawei”, refere Rui Martins, mas há outros com as quais têm contratos e que também se registam as patentes do laboratório. “Em electrónica trabalha-se com circuitos e estes são formados por transistores. E normalmente, consoante a dimensão mínima destes transistores, define-se o processo de fabricação que será utilizado.”

O transistor é um dispositivo que se projecta de uma forma plana num circuito e a dimensão mínima desse transistor é o que caracteriza o processo. “A electrónica tem evoluído ao longo dos anos em termos de redução dessas dimensões. E é por isso que há 60 anos não existiam transistores e sim válvulas, característica dos computadores à época, que eram enormes. Com o aparecimento dos computadores pessoais e portáteis, os tamanhos dos computadores já são menores e o que houve foi a redução das dimensões. Por exemplo, hoje em dia, os pequenos computadores de bordo possuem a mesma potência dos computadores que um dia necessitavam de muito mais espaço”, explica o docente.

Redução das dimensões, redução da electricidade

“Neste momento nós trabalhamos com dimensões que estão ao nível de nanómetros. Portanto, um metro com nove zeros, ou zero vírgula nove zeros. E nesse momento um dos processos mais avançados em que estamos a trabalhar está em 28 nanómetros. Trabalhamos compondo os circuitos com vários transistores e outros elementos para funcionar essencialmente nas tecnologias e comunicações móveis. É aquilo que chamamos a Internet das coisas.”

O conceito de “Internet das coisas” está ligado ao conceito de cidades inteligentes. “Para que seja compreendida de forma prática, por exemplo, tem-se câmaras espalhadas por uma cidade, e as mesmas devem estar ligadas à electricidade para que tenham potência para trabalhar. Mas num futuro próximo, com a redução das dimensões dos circuitos, essas câmeras, além de se tornarem mais pequenas, podem recolher energia do ambiente, ou seja, não necessitam estar ligadas a electricidade porque o ar possui os componentes magnéticos e a radiação, e os circuitos sendo menores, necessitam proporcionalmente de menos energia para funcionar”, sublinha Rui Martins.

O vice-reitor da Universidade de Macau explica assim aquilo que será a evolução do uso de energia, com recurso ao avanço da microelectrónica, quando os dispositivos em geral poderão armazenar energia, por exemplo, “recolher a potência do ar, tornando-se, assim, autónomos. Não precisam de outra energia para trabalhar, além daquela que os próprios captam do ambiente”. Rui Martins acrescenta que “esse tipo de circuitos já existe, porém, não a um nível acessível comercialmente. E estamos a trabalhar em estudos para que isto se torne cada vez mais acessível”.

UM coloca Macau no top 5 mundial

Macau ganhou o seu espaço tendo como referência o estatuto conquistado ano após ano na conferência ISSCC, que acontece em São Francisco, nos Estados Unidos. Acontece em Fevereiro, assim como a feira de produtos electrónicos e novos produtos em termos de equipamentos, o CES (Consumers Eletronics Show), esta também anualmente mas em Las Vegas, no mês de Janeiro. “Estamos presentes nessas feiras, pois são as principais feiras onde se apresentam as novidades em termos de chips.”

A percentagem de aceitação dos trabalhos académicos da Universidade de Macau nesta conferência chega a ser maior do que a da conferência inteira, ou seja, o laboratório local é o principal agente que faz subir o ranking da República Popular da China no certame. “É uma competição brutal, que premeia o mundo inteiro, e os chips da Universidade de Macau tiveram 60 por cento de aprovação, sendo que dos 11 chips que foram submetidos, sete foram aceites”, realça Rui Martins.

Esta conferência envolve cerca de 4000 especialistas e aceita apenas 200 artigos, sendo assim, “muitíssimo restrita”, aponta o docente. A mesma conferência recebe apenas artigos de universidades de topo. “É muito competitivo, são aceites apenas 20 por cento dos artigos que são submetidos. Acontece há 65 anos.”

Um paper, como são designados em inglês estes artigos académicos, no caso específico desta feira tem apenas duas páginas. “Uma página é a fotografia do chip e a fotografia dos testes, e a outra página é o texto. Portanto desde 2011, esses resultados nessa conferência demonstram o patamar da actual prática em toda a China”, completa o responsável pelo laboratório.

Além da Universidade de Macau, a Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau é das poucas que consegue publicar a este nível, e depois há outras academias chinesas, como a Academia de Ciências de Pequim, que também possui algumas publicações, bem como as universidades de Chengdu, Tsinghua, e Fudan, nesta última, existe também um outro laboratório estatal.

“Este ano, se contarmos todos os papers do País, no total a China teve 14 papers e o Japão, 13. Foi a primeira vez que a China, em 105 edições, conseguiu superar o Japão. Metade dos papers chineses são da RAEM. A nível mundial, em 2018, entre mais de 100 universidades, nós estamos em quinto lugar. Mas equivale a um terceiro lugar”, sublinha Rui Martins.

O ranking dos chips é liderado pela Samsung, seguido pela Dell. Logo em seguida, entra a Universidade de Macau. “A nível mundial é um resultado muitíssimo elevado. Estamos aí a comparar-nos a líderes como à Universidade de Stanford ou o MIT (Massachussets Institute of Technology).”

Os chips que foram apresentados em 2017 e 2018 estão focados em circuitos que são cada vez mais rápidos e que consomem cada vez menos energia. “Trabalham para circuitos sem fios e sem baterias, que absorvem energia do ambiente ou que absorvem energia do corpo humano. O movimento do corpo humano já produz energia suficiente para alimentar alguns desses chips. Como têm dimensões muito reduzidas, requerem tensões muito baixas de energia, e podem, portanto, colectar a energia necessária para funcionarem através do ambiente ou do corpo humano.”

O laboratório

O laboratório é um organismo independente das faculdades, e está agora a passar por um processo para incorporar o Instituto de Microelectrónica da UM. “Os investigadores séniores que estão no Laboratório de Referência do Estado são professores da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Macau, e portanto, esses trabalhos são essencialmente feitos pelos alunos de mestrado e doutoramento. Para além desta parceria, também há uma colaboração com a Faculdade de Ciências da Saúde, pois existe uma área que faz ligação entre a biologia e a electrónica. Portanto o laboratório desenvolve alguns produtos para testar materiais orgânicos.”

Há ainda colaborações a nível de projectos de investigação e intercâmbio de alunos, essencialmente, de doutoramento e pós-doutoramento. “Com Portugal, temos vários acordos, com o Brasil temos o acordo assinado e temos tido alguns contactos com eles, mas ainda não temos nenhum projeto para avançar. Estamos dispostos a receber estudantes internacionais, e temos muitos acordos que funcionam já bem com Portugal”, aponta.

Além dos trabalhos de investigação, que dão origem a teses de mestrado e de doutoramento, a universidade realiza trabalhos de consultoria com empresas de topo chinesas, mas não só. “Desenvolvemos uma área nova, em que temos uma sala limpa de microfluidose onde são produzidos chips que permitem a ligação a uma área da biologia. Cada vez há mais funções nos telemóveis: ouvimos música, vemos vídeos, e isso é apenas possível por causa de circuitos muito mais pequenos, e todo o controlo que é feito por micro-computadores.”

Mas há mais, relata Rui Martins. “Temos uma outra área que foi aqui desenvolvida e na qual somos pioneiros a nível mundial, que é esta dos microfluidos. Já tivemos alguns alunos de doutoramento a produzir os chips que permitem a manipulação de líquidos, ou conteúdos que podem ser orgânicos, como já temos investigação acerca do cancro. Estas gotículas de líquidos podem ser manipuladas do ponto de vista electrónico e nós desenvolvemos os circuitos para isto, na nossa sala limpa, sem necessidade de mandarmos fabricar como com os outros tipos de chips.”

Mundo competitivo

As empresas de electrónica são muito competitivas, atenta o vice-reitor. Rui Martins dá um exemplo: “Se 100 empresas começarem hoje na área de electrónica avançada, muito provavelmente, não haverá uma que sobreviva até ao final do ano, ou haveria apenas uma, pois são as grandes empresas que controlam o mercado”. Assim, numa área que é nova, pode haver alguma hipótese de sucesso, “pois é realmente uma área que não existe, no entanto, na área biológica os laboratórios são enormes”, ressalva.

Este tipo de circuitos oferece ainda outra vantagem. “Não é necessário enviar amostras, orgânicas, por exemplo, para laboratórios grandes. Pode-se, no entanto, levar a máquina portátil ao local que se deseja colher e testar a amostra, tornando assim o laboratório resumido apenas a uma pequena máquina que tem igual eficiência em testar e gerar o resultado. Isso será usado para a área da saúde, para identificação de vírus, por exemplo.”

A República Popular da China tem dado grande importância ao desenvolvimento desta área, já que anualmente o Governo Central lança estratégias de apoio. “Os circuitos integrados são sempre umas das principais áreas discutidas. Este ano foi colocada como prioridade principal do País precisamente o desenvolvimento da área de electrónica”, conta Rui Martins.

É por isso que se pode afirmar que a Universidade de Macau e este Laboratório de Referência do Estado, em particular, estão de acordo com a estratégia do País. O laboratório é apoiado tanto pela instituição de ensino superior, como pelo Fundo para o Desenvolvimento das Ciências e da Tecnologias de Macau e pelo Ministério da Ciência e Tecnologia da China. “Uma vez que recebemos a certificação como Laboratório de Estado e passámos em todas as avaliações, que são feitas de três em três anos, podemos receber este fundo. Na próxima fase, para além da certificação, o Ministério também passou a dar apoio financeiro ao laboratório.”