O resgate da história chinesa no Brasil

O livro publicado em 2009 revela a história de 5000 trabalhadores chineses das estradas ferroviárias brasileiras no século XIX que morreram de doenças diversas. O romance serviu de inspiração para novas investigações que resgatam a presença chinesa na história do país sul-americano

Texto Sílvio Reis (no Brasil) 

Depois de ter publicado três livros sobre a história ferroviária no Brasil, o engenheiro Eduardo Gonçalves David lançou em 2009 o romance histórico A Mula do Ouro, que abrange o período de 1825 a 1891 e que se foca na história da construção da primeira secção desde o centro do Rio de Janeiro até à localidade de Belém (actual Japeri). 

Os trabalhos na Estrada de Ferro Dom Pedro II (cujo nome actual é Estrada de Ferro Central do Brasil), entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais, contaram com a colaboração de aproximadamente cinco mil chineses que acabariam por morrer de malária, febre amarela, leishmaniose e outras doenças da época e que serviram de inspiração para a obra de Gonçalves David. 

O personagem principal da história é um médico chinês de nome Nuno Huang (o apelido Huang, adoptado pelo autor do livro, corresponde ao apelido “Vong”, na romanização para português a partir do dialecto de Macau, o cantonense), nascido em Macau numa altura em que decorria a Segunda Guerra do Ópio, envolvendo a Inglaterra, a França e a China. Na história, Nuno perde o suprimento de remédios à base de chás e decide procurar na flora brasileira um equivalente terapêutico, com base na medicina tradicional chinesa. 

Natural de Três Rios, Rio de Janeiro, Eduardo Gonçalves David utilizou duas fontes de pesquisa para “romancear” a participação dos chineses na primeira fase de construção ferroviária: um livro de 1908, comemorativo dos 50 anos da inauguração da ferrovia brasileira, e a obra Introdução à História Ferroviária do Brasil, de 1953, do historiador Ademar Benévolo. 

Segundo Benévolo, “para continuar os trabalhos, resolveu Mr. Price (Edward Price, empreiteiro inglês) importar operários chineses, que fizeram afinal os grandes aterros, na maior parte assentados sobre faxinas. Estes (…) foram, às centenas, atacados de febres e, segundo uma testemunha da época, avalia-se em mais de cinco mil o número desses trabalhadores (…). Quantos mais teriam vindo, se mais de cinco mil morreram?”. 

Naquela época a contratação de mão-de-obra estrangeira era definida pela Lei da Garantia de Juros, que só permitia o trabalho de homens livres nas obras incentivadas. 

O título A Mula do Ouro deve-se à incorporação de uma lenda regional do século XVI sobre a existência de barras de ouro no fundo do Rio Paraibuna, transportadas por contrabandistas no trajecto entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro.  

O escritor comenta que “por não provarem que as barras estavam ‘quintadas’, ou seja, lhes faltava um selo real estampado, que provava que haviam sido pagos 20 por cento de imposto à coroa portuguesa, eles forçavam os seus animais a atravessar o Rio Paraibuna. Algumas mulas escorregavam nas pedras e pelo peso do ouro não conseguiam nadar.”  

Em 2015 o livro ganhou uma segunda edição em versão impressa, digital e bilingue (português e inglês), a partir do interesse de Chen Tairong e Liu Zhengqin, aposentados do serviço diplomático chinês no Brasil e que haviam iniciado uma pesquisa sobre os primeiros chineses a viverem no país. 

Uma terceira edição está a caminho, em chinês e português, com lançamento previsto para Março deste ano na China.  

Segundo autor, o cônsul-geral da China no Rio de Janeiro, Li Yang, pretende divulgar A Mula do Ouro na comunidade chinesa no Brasil, estimada entre 250 e 300 mil imigrantes e descendentes.

A história continua 

Apesar da obra não o registar, o trabalho da mão de obra chinesa teve singular importância na abertura da segunda secção da estrada de ferro Rio de Janeiro-São Paulo, com 13 túneis entre a Serra das Araras e a Barra do Piraí. Trabalhadores chineses também estiveram presentes na criação da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, em 1906. 

Interessado pela presença chinesa no Brasil, Eduardo Gonçalves David iniciou uma busca maior pelos primeiros emigrantes chineses. 

Após o contacto com os investigadores Chen Tairong e Vera Liu, o autor realizou mais pesquisas e encontrou descendentes dos primeiros chineses do Brasil, sendo que um deles é um antigo proprietário do restaurante na estação de comboios de Japeri, no Rio de Janeiro. 

Desta forma Gonçalves David está a tentar resgatar a História e dar-lhe novo significado. Em 2017, o prefeito de Japeri anunciou a construção de um memorial como forma de reconhecimento e agradecimento aos cidadãos chineses que participaram do desenvolvimento da cidade.  

Livro na grande tela 

O romance histórico também chegou às mãos do cineasta Luiz Carlos Barreto, que planeia trazer para o grande ecrã a história de Gonçalves David, por meio da produtora LCBarreto 

Esta será a primeira co-produção sino-brasileira após o acordo celebrado em 2017 entre a China e o Brasil para realização de produções cinematográficas. 

Até à data já tinham sido viabilizados no Brasil três filmes inspirados na China: Jia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang, de Walter Salles (2004), Made In China, de Estevão Ciavatta (2004), e o documentário O Perigo Amarelo nos dias atuais, de Hugo Katsuo (2008). 

Já Gonçalves David, a residir actualmente na Alemanha, além de romancista e investigador é também pós-graduado em Engenharia de Transportes e tem intenção de regressar ao Brasil de forma a implementar um projecto premiado, na área do transporte urbano, com comboios de levitação eletromagnética. 

Este ano revela-se assim um grande ano tanto para o autor como para a obra A Mula de Ouro.