Texto Fernando Sales Lopes | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
Embora a ópera fosse desde tempos imemoriais o espectáculo preferido do povo numa mistura de teatro com as canções populares, o certo é que o seu grande desenvolvimento ocorreu na Dinastia Qing (1644-1911), quando a ópera mais antiga do mundo começa a ser parte imprescindível das actividades rituais da corte. No palácio imperial desenvolve-se, então, à sua volta uma forte cultura que leva à criação de uma burocrática estrutura de nível superior, ao serviço do género, repartida por dezenas de departamentos especializados, que tratavam, nomeadamente, da escolha e contratação de actores com o perfil exigido; da demissão dos que não correspondiam ao esperado; da qualidade dos textos quer a nível temático, quer do uso das línguas; da escolha de músicos virtuosos e das pautas quer ao nível da qualidade dos libretos quer das músicas; da arquitectura dos palcos; dos tipos de tecidos para as vestes dos personagens, entre outras. Resultante de todos os trabalhos sobre a ópera e da ópera surge, então, ao tempo do imperador Qianlong (1790) a Ópera de Pequim, que integrava em si diversos estilos de óperas apreciadas pelos imperadores que as iam conhecendo, chamando-as à corte para seu prazer, mas também para que os funcionários dos departamentos especializados respectivos as apreciassem e estudassem, no sentido de absorverem o que lhes parecia inovador, diferente, e de melhor efeito performativo, para eventualmente introduzirem alguns desses elementos na ópera da corte de Pequim. Ópera cantonense A ópera cantonense, Património Intangível da Humanidade desde 2009, também conhecida como ópera Yue, tem as suas origens na Dinastia Ming (1368 -1644), em Jiajing. Contudo, as suas origens são dadas como remontando a dois séculos a.C. ainda num formato muito distinto do actual, ligada às centenárias canções tradicionais Qiyan. A ópera cantonense irá ao longo da sua história receber também influências de outras, nomeadamente das óperas de Hui, de Xiang, de Gui, e de Han, entre outras. Nos séculos XVI e XVII a ópera Yue começa a expandir-se por Guangdong e Guanxi, evoluindo nos tempos e criando uma gramática própria de representação, caracterização, guarda-roupa, textos e pautas musicais.
A ópera cantonense que já era uma arte muito popular em Guangdong, Guangxi, Hong Kong e Macau espalhou-se pelas comunidades chinesas do Sudeste Asiático, e nos territórios da diáspora, da América do Norte à Austrália. Nos finais da Dinastia Qing, começa a ser cantada em dialecto cantonense, já que a transmissão ao povo das ideias revolucionárias republicanas assim o exigia. Mais tarde, com a invasão japonesa, os artistas de ópera procuram segurança mais a sul, desenvolvendo a ópera no Delta do Rio das Pérolas. Mais uma vez o espectáculo será um meio importante para incutir no povo o espírito de revolta contra o invasor. Renascimento da ópera cantonense No início do século XX, as óperas de um modo geral são vítimas de criticismo por alguns grupos de intelectuais e sofrem alguma estagnação até meados do século. A ópera cantonense afirma-se a partir do momento em que é construída a Ópera de Cantão, em 1958, a que se segue em 1960 a criação da Escola de Ópera Cantonense em Cantão, e dois anos depois é inaugurada a Escola de Ópera Cantonense de Zhanjiang. Pela primeira vez na história, a ópera atingira tal patamar. A partir dai dá-se o renascimento e a modernização da ópera cantonense enquadrada no ensino com tudo o que ele arrasta, em termos de estudo, investigação, criatividade, profissionalismo em todos os sectores e componentes da arte operática. A evolução tem sido constante a todos os níveis, culminando recentemente, em termos materiais, na inauguração, em 2011 do novo Teatro Ópera de Cantão, um complexo de arte arquitectónica moderna que se desenvolve à beira do Rio das Pérolas, da autoria da renomada arquitecta iraquiana Zaha Hadid. Macau e a Yue A ópera cantonense está, podemos dizer, desde sempre no ADN das gentes de Macau, é o espectáculo a que a população não falta e anseia. Por isso, existem em Macau variadas associações de amantes do género artístico, que para além da realização frequente de espectáculos organizam recitais e concursos de canto de árias. Os mais populares espectáculos de ópera em Macau acontecem no aniversário da divindade, tal como a festa de A-má no Largo da Barra, a festa de Tou Tei na Horta da Mitra, a festa de Tam Kong em Coloane e a festa de Pak Tai na Taipa.
O palco da festa
Embora a exibição artística possa ser feita em casas de espectáculos, nomeadamente salas de teatro, a representação nos aniversários das divindades em Macau ocupa o espaço público.
Não existe qualquer estrutura fixa para albergar os espectáculos. A construção do pavilhão é ela própria plena de simbolismo para crentes e vizinhos que se colectam para a sua construção. Frente ao templo da divindade a homenagear, arma-se uma gigantesca tenda de bambu onde, na sua presença e de outros seus companheiros divinos convidados, se realizam as cerimónias protocolares de abertura da festividade e os espectáculos de ópera.
Se não houver espaço de terreiro amplo para erguer o pavilhão haverá outra solução como sucede na Horta da Mitra, no aniversário de Tou Tei. Porque a exiguidade da viela onde o pequeno templo se encontra não permite construção de pavilhão, o próprio templo tem um terraço-palco onde decorrem as exibições, espalhando-se o público pela rua.
“Auto-China”, assim se chamava em Macau, no português da terra de outros tempos aos espectáculos de ópera que em tendas de bambu eram o divertimento da maior parte da população chinesa. O espectáculo não escolhe idades, mas na verdade são os mais idosos quem os esperam com mais ansiedade e os mais fiéis seguidores dos eventos anunciados em cartazes espalhados pela área com o programa e os retratos dos artistas já conhecidos pela sua arte, ou dos novos cantores e actores em ascensão.
Simbologia da caracterização
Um dos atractivos da ópera chinesa é, sem dúvida, a caracterização dos personagens. Pelas cores, incidência de traços e sombras, se distinguem os papéis femininos dos masculinos, os sérios dos cómicos, assim como as características de cada um.
A coragem e a virtude transparecem de uma face vermelha; a rectidão se for negra, mas branca é traição e força; azul, transmite a presença de um ser cruel e de temperamento selvagem; a bravura, como a força, será sempre amarela.
São os próprios artistas os responsáveis pela caracterização do seu rosto em diversas fases. A técnica requer prática e mão firme. Olham-se ao espelho, conferem-se as tintas e os pós: primeiro aplica-se a base, depois espalha-se pela face o pó branco, a seguir uma camada de rouge, e passa-se às tonalidades, sombreando um lado e outro do nariz com um tom escuro, uma sombra nas pálpebras, uma final pincelada preta nas sobrancelhas e é altura de pintar os lábios se o personagem for feminino; se for masculino colocará as barbas. Dão-se os retoques finais, espalhando-se pó branco pelas mãos e está terminada a maquilhagem.
Os adereços
No código de comunicação com o público, a ópera cantonense é perfeita. Através do guarda-roupa, da maquilhagem, dos diferentes penteados, dos vários artefactos que cobrem a cabeça, ou da disposição dos adereços pelo palco, se informa sobre o estatuto social, as atitudes que se esperam dos personagens, a sua idade e capacidades físicas ou intelectuais.
Um chapéu preto com uma asa de cada lado quer dizer que ali está um literato ou um superior administrativo. Aquele de capacete, de onde saem penas de cauda de faisão, é um general. Com uma coroa, claro só pode ser um rei; uma rainha terá um grande capacete feito de pedras preciosas.
Se no decorrer da cena a personagem tirar o chapéu, é sinal de grande frustração, ou na pior das hipóteses que está pronto a render-se. Também os penteados podem exprimir emoções: se um guerreiro balancear o seu rabo-de-cavalo isso significa a sua tristeza por ter perdido a batalha. Numa personagem feminina, o cabelo enrolado diz ser ela uma donzela.