Guardiã da cidade e da tradição

Viajante, amante da Europa e da tradição. Assim se descreve Eva Mok, a jovem de Macau que largou há sete anos um emprego administrativo para se lançar na fotografia. Na primeira exposição individual da artista, que inaugurou em Agosto no Albergue da Santa Casa da Misericórdia, estão expostas 40 imagens de Macau, espaço em transformação, que Eva quer documentar

Texto Catarina Domingues |  Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

fotografia, aquela que eleva o homem comum e o espaço que este habita, levou Eva Mok a abandonar em 2012 um emprego administrativo na área do espectáculo. “Impressões de uma pequena cidade”, primeira mostra fotográfica individual da artista, resulta de sete anos de aprendizagem e trabalho. “Um ponto de viragem” – é assim que Eva quer olhar para este momento. “Ainda há muita gente que não conhece o trabalho que estou a fazer”, assume a jovem de 37 anos à MACAU durante uma visita guiada pela exposição, que se realizou entre Agosto e Setembro na galeria do Albergue da Santa Casa da Misericórdia.

Quatro dezenas de fotografias de Macau, registos feitos entre 2013 e 2019, procuram reter a tradição e servem como “meio de preservação perene” de uma cidade que se desenvolve a “uma velocidade estonteante”, nas palavras da curadora do evento. “Na sua simplicidade e júbilo, elas [as fotografias] são as principais guardiãs de Macau, do mesmo modo que Eva, pelo simples prazer que tal lhe proporciona, sai à rua para fotografar, proteger a cidade, e a sua alma”, escreve Si Wun Cheng no prefácio da mostra.

Ainda antes de avançarmos pela galeria, Eva assume um interesse particular pela viagem, pelo lugar e “pelos aspectos culturais de diferentes sociedades”. “Faço sobretudo fotografia documental e humanista, onde persiste a presença de um elemento humano ou objectos ligados à actividade humana, sejam edifícios, roupas estendidas na varanda ou peixe salgado a secar”.

A fotógrafa nota que a exposição está dividida em duas secções: “Festividades locais” inclui imagens de algumas das mais antigas celebrações de Macau, como a Procissão da Nossa Senhora de Fátima ou o Festival do Dragão Embriagado, mas também festas mais recentes e eventos associados a comunidades estrangeiras. Por outro lado, “Quotidiano dos residentes” é um olhar sobre os bairros antigos e os negócios tradicionais da cidade.

As imagens do passado

Eva Mok recua aos anos 90 do século passado. Era então criança, a crescer na Rua da Palha, coração da cidade que mais parecia vila, esse centro que hoje em adulta e com uma câmara na mão procura que exista infinitamente. Mas ainda sobre a infância: Eva coleccionava marcadores de livros e cartões de Natal com fotografias, fazia puzzles, e ao juntar as pequenas peças, ia vendo aparecer a imagem da Sagrada Família, basílica em Barcelona, ou do castelo alemão Neuschwanstein, no sudoeste bávaro. E foi com estes quebra-cabeças que se confrontou logo em criança com o futuro: com a viagem, a fotografia e a Europa. “Lembro-me também vagamente dos meus pais me pedirem para tirar uma fotografia quando eu era pequenina, e de me dizerem que fiz um bom trabalho”, recorda.

Mas a fotografia seria um projecto em suspenso, para já. Licenciada em Educação e Inglês pela Universidade de Macau, com mestrado na área da Linguística, a jovem trabalhou como tradutora, professora de inglês no Instituto Politécnico de Macau, revisora de publicidade na área dos recursos humanos de um resort local e assistente do director-geral do espectáculo The House of Dancing Water.

Eva assistia, entretanto, ao aparecimento da câmara digital, no final da década de 1990, e dos smartphones, já no novo milénio. “Comecei a fotografar em viagem, embora inicialmente estivesse mais preocupada em guardar memórias do que propriamente com a estética. Só quando comprei um smartphone é que comecei a tirar fotografias de Macau e a prestar atenção à estética”. Depois de abandonar o emprego como assistente administrativa, em 2012, seguiu numa viagem de um mês por várias cidades portuguesas, com um telemóvel e uma máquina compacta na mala. Dessa travessia, resultou uma série fotográfica que vendeu em Macau, na Livraria Portuguesa. “Comercialmente não foi um sucesso, mas era algo que eu queria fazer.”

Para esse trabalho, admite, contribuiu o estilo intimista, e a preto e branco, do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson. “Sou uma apaixonada pela Europa e gosto muito do trabalho dele, é como se estivesse a ver um filme”, nota a autora ao passar à frente da única imagem a preto e branco da exposição. “Avenida Almeida Ribeiro”, fotografia que data de 2016, permite-nos recuar a um tempo prestes a extinguir-se. “A preto e branco esta parece mesmo uma fotografia antiga”, diz.

 

“De repente, todos nos tornámos fotógrafos”

“O desenvolvimento dos smartphones deu início à era da imagem e, de repente, todos nos tornámos fotógrafos. Com a transição da leitura de suporte de texto para o vídeo deu-se uma profunda mudança nos média, assinalando o declínio da indústria da impressão e publicação”, pode ler-se ainda no prefácio da artista Si Wun Cheng, que reflecte, porém, que Eva “insiste em fotografar de modo convencional”.

Motivada pela reacção positiva dos amigos nas redes sociais à série fotográfica que trouxe de Portugal, a jovem apostou na compra de uma nova câmara e começou a estudar fotografia, primeiro na Biblioteca Central, onde ficou a conhecer a obra de Scott Kelby, fotógrafo norte-americano e autor de várias publicações sobre fotografia, e depois ao frequentar dois cursos de curta duração na área da fotografia comercial e da moda.

Mas ainda voltando aos smarphones: “Esta é a única fotografia da exposição que tirei com o telemóvel”, diz a fotógrafa sobre o trabalho “Bairro de São Lázaro ao Crepúsculo”. “Quis incluir esta fotografia na exposição por causa deste pôr-do-sol maravilhoso. Fiquei surpreendida com a qualidade do telemóvel”, acrescenta Eva, que ao longo dos últimos anos tem sido convidada para uma série de eventos fotográficos. Em 2014, participou pela primeira vez numa exposição colectiva, com um trabalho realizado para a oficina de fotografia do 25.º Festival de Artes de Macau, e ainda na Exposição dos Membros da Associação Fotográfica de Macau, no Pavilhão do Jardim Lou Lim Ieoc. Em 2016, o trabalho da artista chegou à galeria londrina 5th Base para integrar a mostra “A Journey Away From Urban Life”. Ainda de acordo com a biografia disponível na sua página pessoal (www.evamok.com), Mok recebeu em 2015 uma menção honrosa na 5.ª Edição dos Prémios Anuais do Mobile Photography, na categoria de “natureza morta”, e o primeiro prémio na segunda edição do “Concurso Macau Creative Make-up and Image Design”. Mais recentemente, em 2018, foi distinguida com uma menção honrosa no concurso fotográfico “Património, Gastronomia e Tradições de Macau”.

Documentar para revisitar

“Neste negócio vendem-se carnes secas, peixe seco. Gosto do aspecto tradicional desta loja, das cores, um pouco de azul e verde que cria alguma harmonia”, diz Eva sobre a fotografia “Loja de Carne Seca”. Na imagem, o vendedor mantém-se à porta do negócio e encara a câmara, mãos atrás das costas. “Nem todas as pessoas querem ser fotografadas, não é fácil”, conta a autora, enquanto eleva o leque azul para cobrir o sorriso. “Já esta foi tirada no Mercado Vermelho, porque me disseram que iam ser feitas obras de renovação, mas na altura ainda não tinham acontecido”, prossegue na explicação sobre o quadro “Banca do Talho no Mercado Vermelho”, onde as tradicionais lâmpadas vermelhas daquele espaço iluminam a face do talhante e nacos gigantes de carne pousam sobre a banca. “Há aspectos muito tradicionais de Macau que estão a desaparecer rapidamente e eu sou uma pessoa muito nostálgica, gosto de coisas novas, estou disposta a aceitar aquilo que é novo, mas sinto-me triste ao mesmo tempo por assistir à erosão daquilo que é antigo”, reflecte ainda a jovem, sublinhando que este exercício de documentação, que nos permitirá a todos revisitar estes mesmos espaços no futuro, foi influenciado pelo trabalho do fotógrafo local Chan Hin Io, responsável por um extenso projecto sobre os antigos bairros, ofícios e negócios de Macau.

Questionada sobre o trabalho desenvolvido localmente na área da fotografia, a entrevistada considera que “existem bons profissionais” em Macau, embora admita que que “não é fácil” viver exclusivamente deste trabalho e que, por isso, está a ponderar voltar a dedicar-se a tempo inteiro à área do ensino. “Tentei vender as minhas fotografias, mas sem grande sucesso. É muito difícil, porque quando és apenas um desconhecido, ninguém vai comprar o teu trabalho”, lamenta Eva, também autora de um blogue de fotografia e outro de viagem, e colaboradora de um jornal local em língua chinesa. “É muito difícil ser-se fotógrafo a tempo inteiro. Isto é, se fotografares eventos ou retratos de famílias, é fácil sobreviver e eu considerei seguir esse caminho, mas depois de alguns meses pensei que não era realmente o que eu queria fazer. Para isso, mais vale encontrar um emprego estável com um salário ao fim do mês.”