RAEM/20 anos | Ensino Superior, da Ásia Oriental para o mundo

Na era RAEM, o território passou a dar resposta aos alunos do ensino secundário que pretendiam continuar os seus estudos localmente, disponibilizando formação na área da língua portuguesa e do Direito, entre outras. Duas décadas depois e com dez instituições em funcionamento, o ensino superior assume cada vez mais uma dimensão internacional e de cooperação estratégica.

Texto Andreia Sofia Silva

Quase quatro décadas depois do estabelecimento da Universidade da Ásia Oriental, hoje Universidade de Macau (UM), o ensino superior de Macau dá resposta não apenas aos alunos locais, mas também aos que cada vez mais chegam do Interior do País, sem esquecer as centenas de estudantes estrangeiros que, todos os anos, estudam no território ao abrigo de programas internacionais de mobilidade ou de bolsas. Além da UM, existem hoje três instituições públicas de ensino superior, o Instituto Politécnico de Macau (IPM), o Instituto de Formação Turística (IFT) e a Escola Superior das Forças de Segurança de Macau (ESFSM).

No privado, destaque para mais seis instituições, nomeadamente a Universidade de São José (USJ), um projecto educativo da Diocese de Macau com ligações à Universidade Católica Portuguesa (UCP), a Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau (UCTM), a Universidade Cidade de Macau (UCM), o Instituto Superior de Enfermagem de Kiang Wu, o Instituto de Gestão de Macau e o Instituto Milénio. Além disso, existem no território delegações de universidades chinesas e estrangeiras, algumas delas de topo, como a Universidade de Pequim, a Universidade de Línguas de Pequim e Universidade Queen Mary, do Reino Unido, entre outras. 

Além do surgimento de mais universidades que hoje disponibilizam centenas de cursos em várias áreas e graus de ensino, o ensino superior passou também por profundas mudanças com a adopção, em 2017, de uma nova lei do ensino superior, que trouxe não apenas mais autonomia às instituições como também permitiu a criação de mestrados e doutoramentos nas instituições do ensino politécnico. 

Outra mudança de fundo foi a instituição de uma nova direcção de serviços, a Direcção de Serviços do Ensino Superior (DSES), que veio substituir o antigo Gabinete de Apoio ao Ensino Superior (GAES). “Com o desenvolvimento de Macau o ensino superior está cada vez mais generalizado”, começa por apontar uma nota oficial da DSES sobre os últimos 20 anos, intitulada “Agarrar oportunidades e andar de mãos dadas: O desenvolvimento do ensino superior de Macau após o estabelecimento da RAEM”. 

Diz a DSES que “a taxa de continuação de estudos dos estudantes que concluem o ensino secundário complementar aumentou de cerca de 70 por cento no início do retorno de Macau à Pátria para mais de 90 por cento nos últimos anos”. No que diz respeito ao ano lectivo de 2018/2019, havia um total de 2931 docentes e investigadores, 34.279 estudantes e 280 cursos disponibilizados pelas instituições de ensino superior. “Comparando com a altura do início do retorno de Macau à Pátria, o número de cursos aumentou cerca de 50 por cento e o número de docentes, investigadores e estudantes quase triplicou”, explica a DSES. 

A mesma nota dá conta de que “o ensino superior é cada vez mais apelativo para os estudantes estrangeiros”, uma vez que o número de estudantes não locais aumentou de 5653 no início do estabelecimento da RAEM, para actualmente 17.992, registando um aumento acima do dobro. 

A DSES, liderada por Sou Chio Fai, garante que, na área da investigação académica, tem sido registada também uma evolução. “Macau também tem atraído docentes e investigadores provenientes de diferentes países ou regiões para dar aulas em Macau; o contexto cultural diversificado e as tradições académicas de Macau ajudam a criar um ambiente académico mais liberal e aberto.”

Uma maior flexibilidade 

Peter Stilwell, reitor da USJ desde 2012, recorda à MACAU a evolução que o ensino superior teve no território. “A primeira lei de enquadramento do ensino superior em Macau foi publicada em 1991. Não chega, portanto, a 30 anos. Mas foram 30 anos de grandes transformações no ensino superior local e internacional. Na altura da transferência, um dos primeiros actos do novo Governo foi a aprovação da abertura da UCTM, hoje a maior universidade da região, dando um inesperado protagonismo ao ensino superior privado.”

O dirigente educativo, que chegou a ser vice-reitor da UCP em Portugal, recorda a fase em que foi implementado na Europa o Acordo de Bolonha, que trouxe mudanças de vários níveis, uma das quais a criação de licenciaturas de três anos e de mestrados integrados. “O ensino superior em Portugal, que servira de referência à lei de 1991 em Macau, mudava radicalmente. Tornava-se premente ajustar o enquadramento legal em Macau. A nova Lei do Ensino Superior, de 2017, e a legislação complementar, de 2018, fizeram esse trabalho. O patamar de exigência foi colocado ao nível dos mais elevados critérios internacionais.”

Nesse sentido, Peter Stilwell defende que “é esse o desafio que hoje enfrentamos, o de revermos o funcionamento interno das nossas instituições, facultarmos ao público que nos procura e às entidades que nos financiam garantias de qualidade, reforçadas por uma periódica avaliação externa”. 

No mesmo comunicado acima citado, a DSES destaca os pontos mais importantes da nova lei do ensino superior, que dá “mais ênfase à garantia e aumento da qualidade”, sem esquecer uma maior “flexibilidade para as instituições de ensino superior na criação de cursos, enfatizando a cooperação, mobilidade e compartilhamento de recursos”. 

O novo diploma também criou o Sistema de Créditos, o Regime da Garantia da Qualidade, o Conselho do Ensino Superior e do Fundo do Ensino Superior. Além disso, foi reorganizado “o serviço administrativo do ensino superior, que permite fornecer maior apoio ao desenvolvimento do ensino superior, promovendo a melhoria contínua do ensino superior em Macau através dos novos regimes”. 

Investimento que compensa 

Vinte anos depois do estabelecimento da RAEM, o reitor da USJ não tem dúvidas de que “Macau tem um potencial enorme no campo do ensino superior”. “Trata-se de um sector que é caro, mas que traz grandes benefícios para a comunidade envolvente, mesmo em termos económicos, desde que se assegure a qualidade. O trabalho desenvolvido pela Fundação Macau (FM) e pelo Fundo para o Desenvolvimento das Ciências e da Tecnologia (FDCT), e o investimento que legitimamente se espera do novo Fundo do Ensino Superior, gerido pela DSES, indicam a vontade do Governo de promover o ensino superior local com o investimento de fundos públicos”, acrescentou Peter Stilwell. 

Rui Martins, vice-reitor da UM, surge citado no comunicado da DSES, onde afirma que o que mais o impressionou nos últimos 20 anos foi o estabelecimento do Fundo para o Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (FDCT) em 2005, bem como a construção e a conclusão do campus universitário da UM, em Hengqin (também conhecida como Ilha da Montanha, território adjacente a Macau), juntamente com a publicação do “Regime Jurídico da Universidade de Macau”, em 2006.

Para Rui Martins, “as autonomias académica e científica têm-se intensificado e as áreas do saber diversificado significativamente”, pelo que, “neste sentido, o desenvolvimento verificado permite atrair, e tem-no conseguido, pois o número de docentes e investigadores, nomeadamente o número de estudantes de doutoramento no ensino superior tem aumentado bastante”. Além disso, “o número de artigos científicos publicados em revistas académicas também aumentou significativamente”. 

Já Fanny Vong, presidente do IFT, destacou o facto de, desde 1999, “a taxa de prosseguimento de estudos dos graduados do ensino secundário em Macau ter aumentado”, além de que “o aumento das instituições de ensino superior de Macau proporcionou aos estudantes mais opções diversificadas”. 

Além disso, o “foco do desenvolvimento das instituições passou do crescimento da “quantidade” para a melhoria da “qualidade”, sendo que esta “tem vindo a ser, pouco e pouco, reconhecida internacionalmente, com uma elevada aceitabilidade e influência nas áreas específicas, como o português e o turismo”. Para Fanny Vong, “as actividades de intercâmbio regional e internacional realizadas pelas instituições de ensino superior aumentaram e os horizontes de professores e estudantes foram ampliados”. 

No que diz respeito à qualidade do ensino superior, a DSES destaca o facto de ter sido criado, com a nova lei, o Regime de avaliação da qualidade do ensino superior, que, nos últimos anos, aderiu a três organismos internacionais de garantia da qualidade do ensino superior, tal como o International Network for Quality Assurance Agencies in Higher Education (INQAAHE), Asia Pacific Quality Network (APQN) e a Organização Internacional para a Garantia da Qualidade do Ensino Superior (CIQG) do Council for Higher Education Accreditation (CHEA). 

Quanto aos docentes com o grau de doutoramento, aumentaram 15 por cento face a 1999, representando actualmente 64 por cento do total de toda a equipa docente do ensino superior. Também ao nível dos rankings mundiais as universidades de Macau têm dado alguns passos, uma vez que a UM ocupa, este ano, o 60.º lugar no Young University Rankings da Times Higher Education, enquanto que a UCTM ficou no 21.º lugar no Ranking das Universidades do Interior da China, Taiwan, Regiões de Hong Kong e Macau no ano passado. 

Já o IFT assumiu a quinta posição na Ásia e o 33.º lugar em termos mundiais. Além disso, “no ano lectivo de 2017/2018, 29 cursos do ensino superior obtiveram acreditação pelo Acordo de Washington, Acordo de Seul, Organização Mundial de Turismo das Nações Unidas, Association of Chartered Certified Accountants (ACCA), entre outras instituições profissionais internacionais ou regionais”, aponta a DSES. 

Novos planos 

O desenvolvimento económico pode ter levado mais estudantes do ensino secundário para as universidades em Macau, mas a verdade é que um “canudo” nas mãos deu também mais oportunidades de ascensão no mercado de trabalho. A DSES conclui que “o desenvolvimento do ensino superior impulsionou a melhoria da qualidade da população de Macau”, uma vez que “a proporção da população que possui o nível do ensino superior na população activa aumentou de 11,06 por cento, no período inicial do estabelecimento da RAEM, para 36,43 por cento em 2018, um aumento de mais de três vezes”. Isso fez com que, actualmente, um em cada três trabalhadores em Macau possua um diploma do ensino superior.

No que diz respeito à procura de emprego, as estatísticas revelam que “nos últimos três anos quase 80 por cento dos estudantes conseguem encontrar o primeiro emprego em tempo integral dentro de três meses, e cerca de 70 por cento dos estudantes empregados consideram que o trabalho actual deles diz respeito à área profissional que eles estudaram”. Enquanto isso, “mais de 50 por cento dos estudantes, três anos após a graduação, têm um rendimento médio mensal superior ao rendimento mediano”. 

Com a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” e o desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, o ensino superior assume um novo rumo, defende a DSES. Nesse sentido, como a RAEM constitui “uma das quatro cidades centrais dentro da região e um dos principais motores do desenvolvimento regional, o ensino superior desempenha um papel muito importante na promoção do desenvolvimento da cooperação educativa, na construção do local de excelência aos quadros qualificados e na promoção da construção do corredor da inovação científica e tecnológica Cantão-Shenzhen-Hong Kong-Macau”.

Para o futuro, o Governo diz estar a “negociar com o Conselho do Ensino Superior o planeamento a médio e longo prazo do ensino superior de Macau, para maximizar as vantagens das instituições de ensino superior de Macau e articular com o desenvolvimento e posicionamento de Macau para cultivar mais quadros qualificados profissionais para o País e Macau”. 

***

Língua portuguesa, uma força motriz do ensino superior 

O projecto inicial do estabelecimento da Universidade da Ásia Oriental, em 1981, contemplava a criação de uma licenciatura em Estudos Portugueses, mas hoje o cenário, 20 anos depois do estabelecimento da RAEM, é bem diferente no que ao português diz respeito. 

Não só a Universidade de Macau (UM) alargou o espectro da formação nesta área, sobretudo ao nível dos estudos pós-graduados, como o Instituto Politécnico de Macau (IPM) se tornou, em 2012, numa importante plataforma ao nível da formação de professores de língua portuguesa na China, com o estabelecimento do Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa. Coube a Carlos André, que à época tinha deixado o cargo de director da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o papel de criar um projecto de raiz. 

“Foi um dos mais importantes projectos do IPM nos últimos 20 anos”, assegura o próprio à MACAU. “Tratou-se de uma coisa nova, que não existia, mas não foi só a ideia de criar o centro. O que se deve ao IPM é que essa ideia trazia agarrada uma vontade muito enérgica de que esse fosse um projecto novo e que funcionasse. O IPM não só criou o centro como lhe deu todas as condições para funcionar. É isso que eu devo ao IPM e ao seu ex-presidente [Lei Heong Iok], porque no início havia uma ideia vaga de que o centro era para apoiar o ensino do português em Macau e no Interior do País, mas nós fomos construindo o nosso próprio projecto.”

Carlos André, que foi agraciado este ano com a Medalha de Mérito Cultural pelo Executivo da RAEM, assegura que, sem essa liberdade, não tinha conseguido atingir todos os objectivos. Com esse centro, as universidades que ensinavam língua portuguesa no Interior do País, puderam dar resposta a uma crescente procura, aumentando não apenas o número de materiais pedagógicos como a qualidade dos seus docentes. 

Citado num comunicado da Direcção dos Serviços do Ensino Superior, Rui Martins, vice-reitor da UM, destacou “o grande desenvolvimento do ensino do português nas diversas instituições de ensino superior de Macau”.

Em Outubro deste ano, o IPM passou a oferecer um curso de mestrado e outro de doutoramento na área da tradução e interpretação, tornando-se assim a primeira instituição de ensino superior da Grande China a dispor de estudos pós-graduados especificamente focados na formação de tradutores e intérpretes.

Mais cursos privados 

Iniciado o projecto do IPM, surgiram outros cursos, sobretudo ao nível do ensino superior privado. Na Universidade de São José (USJ) o Departamento de Português ganhou novo fôlego com a entrada de Maria Antónia Espadinha para o cargo de vice-reitora, no ano lectivo de 2014/2015, depois de ter estado muitos anos na UM. Peter Stilwell, reitor da USJ, não tem dúvidas de que os próximos passos a dar nesta área passam pela investigação. 

“O interesse na língua portuguesa aumenta de ano para ano. Para já, parece ser sobretudo um interesse associado à profissão de tradutor. Um efeito secundário tem sido a fixação de um corpo docente que vai produzindo alguma investigação, publicações, colóquios e palestras. A prazo, acredito que haverá alunos para um estudo sustentado da linguística e da literatura. Quando Macau se vir lançada na região alargada da Grande Baía, poderá bem ser este um dos sectores que irá diferenciar o nosso ensino superior”, aponta. 

Carlos André, por seu turno, assegura que “a área do português é hoje muito diferente em relação há oito anos, quando cheguei a Macau, e isso teve a ver com vários fenómenos, a vontade dos dirigentes, mas também tem a ver com algum espírito de concorrência que se criou entre as instituições”. 

Isto porque, além da USJ, outras instituições do ensino superior começaram a apresentar novos projectos neste sentido, tal como a Universidade Cidade de Macau (UCM), que viu a licenciatura em língua portuguesa ser aprovada este ano pelo Governo, e a Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau (UCTM). 

“O IPM teve uma importância considerável nesse processo, pois à medida que as instituições iam consolidando os seus projectos e desenvolvendo-os, outras sentiram-se na obrigação de não ficar para trás”, lembrou Carlos André, que fala de um desenvolvimento notável da área, com “excelentes exemplos no IPM e na UM, e muito bem na USJ, UCM e UCTM”. 

O antigo director do Centro Pedagógico e Científico da Língua Portuguesa destaca também a presença do Instituto Português do Oriente (IPOR), que não oferece formação universitária, mas que ensina português a muitos residentes e interessados no idioma, em cursos livres de língua. “Não nos podemos esquecer do IPOR que tem desenvolvido um excelente trabalho numa área importantíssima que é o ensino numa área não conferente de grau.”

Carlos André afirma estar optimista quanto ao futuro. “Acredito que o poder político de Macau continua a ter como estratégia muito clara o desenvolvimento do português, que envolve muitas instituições.”