Texto Fernando Sales Lopes
O Festival do Solstício de Inverno, também conhecido como dongzhi (冬至), era para os Han mais uma forma de celebrar os frutos da agricultura. Um dia em que todos, independentemente do seu estatuto social, faziam uma pausa nos afazeres e confraternizavam com a família e os amigos, trocando acepipes variados. A data passou a ser, nas dinastias Tang (618-906) e Song (960-1279), um dia de sacrifícios ao Céu feitos pelos imperadores, e aos antepassados feitos pelo povo [ver caixa].
Para os não chineses, principalmente nas grandes cidades, a efeméride pode passar despercebida, já que se trata de uma festa sem expressão exterior, com a ausência do lúdico colorido que é apanágio da maior parte das festividades chinesas. O dongzhi é uma festa de família, a ela reservada, vivida no espaço privado e sem expressão notória no espaço público.
Na China em tempos antigos, a celebração do Solstício era também a festa das colheitas quando se guardavam as provisões para o frio Inverno. A data era tida como início de um novo ano, e certamente, daqui tenha vindo a tradição das gentes considerarem que nesta data todos têm mais um ano de idade.
A data e o seu calendário
As festividades chinesas regem-se por dois dos três calendários em uso, a saber: o lunar, mais propriamente lunissolar e variável, e o solar, que rege os agricultores e fixa as estações do ano. O calendário solar também fixa os atributos positivos ou negativos do tempo fruto da observação milenar humana sobre as características meteorológicas, já que era sua função informar os agricultores sobre os tempos propícios a uma boa lavoura ao longo do ano. Embora tenha 12 meses, este calendário divide-os ao meio, ficando o ano com os chamados 24 termos solares, o que permite um conhecimento de observações mais precisas dentro de cada mês.
O dongzhi, por exemplo, regista-se neste calendário como o ponto alto do inverno. Terá sido entre 770-476 a.C. que foram estabelecidos os primeiros termos solares, indicando os equinócios de Primavera e Outono e os Solstícios do Verão e do Inverno. Mais tarde seria concluído com o calendário Taichu, que definiu as posições astronómicas dos restantes termos solares.
Da escuridão para a luz
Assinalando o mais pequeno dia e a mais longa noite do ano, o dongzhi (que, à letra, quer dizer o “Extremo do Inverno”), é feriado oficial em Macau. É conhecido entre alguns não chineses como o “Natal chinês”, não apenas pela proximidade das datas, mas por ser, também, uma festa de reunião familiar, com troca de prendas, e tempo de vestir roupas novas e de celebrar com comida e bebida pela longa noite adentro.
As comemorações, que se dão principalmente à mesa, variam nas diversas regiões do país. No sul, para além do hábito das famílias fazerem uma refeição de feijão vermelho e arroz glutinoso como um meio para afastar os maus espíritos, não podem deixar de ser feitas as tradicionais bolinhas doces de arroz glutinoso – jyut ping ou tang yuan (湯圓) –, símbolo da reunião familiar.
O dongzhi é, essencialmente, uma festa de alegria, de optimismo e esperança no futuro. Isto porque se considera haver na data uma passagem do yin para o yang, pois quando algo chega ao seu extremo a tendência é transformar-se no seu contrário. Ora o yin (qualidade negativa, feminina) é, no dia do Solstício, a mais longa noite, mas no dia seguinte as coisas começam a inverter-se com o crescimento dos dias, é o yang (qualidade masculina, positiva) que está a chegar.
O solstício de Inverno no Hemisfério Norte
As características do Solstício de Inverno, a sua relação com a duração do dia e da noite, a entrada no Inverno, o fim de um ciclo agrícola, fazem com que a data seja talvez a mais assinalada em diversas partes do mundo, com destaque para o Hemisfério Norte, já que neste nos encontramos. Isto significa que em quase toda a Europa, com relevo para os países nórdicos, e nos de influência cultural céltica, eslava ou germânica, mas também entre os adoradores de Zoroastro, da antiga Pérsia, assim como da Roma antiga se preservem tradições, que são, afinal, referências identitárias e culturais.
Solstício e cristianismo
Na antiga Roma, as Saturnálias, dedicadas a Saturno, decorriam de 17 a 24 de Dezembro, e as Brumálias (de bruma, em latim o dia mais pequeno) dedicadas a Baco culminavam no dia 25 de Dezembro. Na mesma data se festejava o nascimento de Mitra, deus do Sol na mitologia persa. O Império Romano, no terceiro século, instituiu o dia 25 de Dezembro como o dia do Deus Sol Invictus, ou seja, do “Deus Sol Invicto”. Era o tempo em que os dias começavam a crescer considerando-se, pois, estarmos perante o renascer do próprio Sol. Para o cristianismo o deus não era o Sol, mas Jesus – o verdadeiro Sol para a humanidade e adoptou a data pagã para comemorar o dia do nascimento de Cristo. O mesmo aconteceu com outras festas pagãs que foram rebaptizadas por influência cristã.
Solstício e paganismo
A Europa tem uma longa e profunda história de culturas pagãs, não sendo por isso de admirar a presença de traços dessas culturas em todo o continente, do que ficou e do que persiste do culto da adoração do Sol e da natureza à da importância dos solstícios.
Os nórdicos ainda hoje festejam o Jul, festa pagã cuja origem se perdeu no tempo, mas com vestígios notórios em monumentos megalíticos, espalhados pela Irlanda, Inglaterra e outros países como Portugal. Monumentos que têm a particularidade de estarem orientados para o nascer do Sol na altura exacta do solstício.
Estas celebrações da passagem da escuridão para a luz mostram hoje as suas influências nas iluminações e nos ramos de pinho e azevinho, o verde da vida, no Natal, com as iluminações e as árvores natal de pinheiros.
Na noite mais longa, homenageava-se a natureza e faziam-se oferendas aos deuses. O fogo que simboliza a Luz, era prática nas comemorações do momento astronómico, por isso se acendiam grandes fogueiras. Talvez como reminiscência desses tempos, se fazem ainda em algumas regiões de Portugal por altura do Natal, fogueiras conhecidas como “os madeiros de Natal”, que ficam a arder durante toda a noite de natividade. Contudo, a notória influência celta dos festejos ao deus do Sol, Lug, está também presente noutras manifestações do tempo da adoração do sol e da luz, havendo lugares em que o fogo se prolonga até ao fim da quadra, assim como os festejos coloridos e chocalheiros que encerram transgressão e, ainda hoje são conduzidos pela juventude, nomeadamente na zona de Bragança no norte de Portugal, com as conhecidas festas dos rapazes e os Caretos. Estas festas revelam traços que ficaram das antigas festas pagãs de adoração do Sol. Também em redor da fogueira os celtas comemoram a data festiva comendo, dançando e bebendo hidromel, a mítica bebida dos deuses em honra do deus Sol.
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Sacrifícios ao céu e aos antepassados
Apenas os imperadores podiam sacrificar ao Céu, já que eles eram tidos como seus filhos. A tradição de sacrificar no solstício de Inverno ainda se mantém, sem imperadores claro, pelo menos num local da China na aldeia de Yangjiacun, em Sanmen, província de Zhejiang, onde ocorre na data uma elaborada cerimónia sacrificial do Solstício organizada pelo clã Yang, mantendo, assim, uma tradição com 700 anos. Esta cerimónia foi, em 2014, incluída na Lista do Património Cultural Intangível da China.