“Temos muito espaço de manobra, sobretudo nos domínios económico e cultural”

O embaixador de Portugal em Pequim afirma que as relações sino-lusófonas estão em óptimo estado de entendimento. Em entrevista à MACAU, José Augusto Duarte defende que a significativa relação política e institucional se deve traduzir em crescimento económico e das trocas culturais. Sobre Macau, diz ter um papel “absolutamente incontornável”

Texto Catarina Brites Soares | Fotos Lusa, Xinhua e Embaixada de Portugal na China

Que balanço faz das relações entre Portugal e a China desde que assumiu o posto em Pequim, em Janeiro de 2018?

As relações entre Portugal e a China estão neste momento em óptimo estado de entendimento político e institucional. Tem havido uma evolução das trocas comerciais e do investimento, mas continuamos sempre com espaço para fazer mais. Queremos intensificar o contacto económico, empresarial e cultural, porque o político já é bastante intenso. Tivemos a visita a Portugal do Presidente Xi Jinping em 2018, depois a visita do Presidente português à China, em 2019. Pelo meio, tivemos outras visitas, como a do presidente da Assembleia da República, do primeiro-ministro, de vários ministros portugueses, assim como de ministros chineses a Portugal. Há uma dinâmica institucional que contribui de uma forma muito importante para uma maior dinâmica económica.

De que forma isso se evidencia?

Estamos a caminhar para conseguir uma maior intensidade nas relações económicas e culturais. O intercâmbio cultural é fundamental para contribuir para um maior conhecimento de Portugal na China e um maior conhecimento da China em Portugal. Faço um balanço extremamente positivo da relação entre os dois países. Estão em óptimo estádio de entendimento, mas não quer dizer que estejamos satisfeitos. Temos muito espaço de manobra, sobretudo no domínio económico e cultural.

Quais são as prioridades na relação com a China?

Economia e cultura. A parte política e institucional decorre normalmente. É preciso dizer que Portugal foi visitado por todos os presidentes da República da China desde o restabelecimento das relações diplomáticas, em 1979. E todos os presidentes da República de Portugal visitaram a China desde então. Há um papel institucional intenso, gradual, que tem sido uma constante na nossa política externa, mas também da chinesa. A China dá uma atenção particular a Portugal e Portugal, à China. Do ponto de vista diplomático, tem evoluído bem. Mas essa relação ainda não se reflecte completamente na economia e nas trocas culturais.

Como se pode melhorar?

A partir de 2011, através de várias empresas privadas e também do Estado, houve muito investimento chinês em Portugal, nomeadamente na REN – Redes Energéticas Nacionais, EDP – Energias de Portugal e na banca, que foram muito importantes. Esse factor de grande investimento em Portugal acabou por fortalecer a relação política. Foi um investimento que se concentrou num determinado período e num determinado contexto, e não voltou a ter a dimensão que teve naquela altura. Além disto, é preciso lembrar que a economia não é só investimento. É também trocas comerciais e, neste sentido, ainda há muito caminho a percorrer para que estejam ao nível daquilo que é o relacionamento político-diplomático.

Como pretende Portugal atingir esse objectivo?

Portugal tem muita capacidade de exportação de alta qualidade para a China e a China também tem produtos de alta qualidade que seriam interessantes para nós. Podemos incrementar as relações comerciais de forma a que sejam um pouco mais equilibradas. Agora estão um pouco desequilibradas. Por fim, a questão cultural é fundamental. Quando existe uma relação tão antiga como a de Portugal e a China importa também haver um conhecimento mútuo que faça justiça a este contacto secular e, para isso, é fundamental que se conheça o interlocutor. Conhecer o outro é conhecer a sua cultura e identidade.

Como é que se consegue promover esse conhecimento?

Havendo mais actividades chinesas em Portugal e mais actividades portuguesas na China. Desde a divulgação da música, através de concertos, os nossos intérpretes de música clássica são muito apreciados aqui. A literatura também é importante. Temos pouca literatura portuguesa traduzida e editada na China. Estamos a fazer um enorme esforço para divulgar aquelas que têm sido as grandes correntes literárias portuguesas, desde Camões até aos dias de hoje. Importa manter aqui um esforço prolongado e estratégico. A música é importante, mas a literatura perdura mais. Estamos a fazer um grande esforço de apoio à tradução e edição de qualidade para mandarim.

Que autores e obras têm sido traduzidos?

No ano passado, foi o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner e o ano da morte da Agustina Bessa-Luís, e queremos fazer jus a essas duas escritoras. Está a ser feito um esforço para termos traduções de obras de ambas. Mas há mais a caminho. Temos identificado aqueles que são os melhores centros de língua da China. Existem já 47 universidades e institutos superiores que estudam e investigam a língua portuguesa na China. Ainda não temos dimensão para fazermos 20 ou 30 obras ao mesmo tempo e não há tradutores de nível elevado em número suficiente. Temos 10 ou 12 capazes de traduzir obras tão completas. Não podemos fazer muitas obras ao mesmo tempo, sob pena de sacrificar a qualidade pela quantidade. Mas temos feito uma aposta continuada.

Porque considera esta aposta crucial?

Conhecer mais é ter maior curiosidade pelo próximo, e quem tem maior curiosidade tem maior afinidade, maior respeito e maior proximidade.

Ao nível económico, quais são as perspectivas de crescimento das relações com a China?

Este período que estamos a viver [da pandemia mundial da Covid-19] fez com que todos os estudos e estimativas sofram alterações profundíssimas. Não sei o que vai acontecer. Boa parte disto depende sempre da procura e da actividade empresarial do sector privado. O que fazemos ao nível de Estado é criar acordos e instrumentos legais que permitam ao sector privado penetrar no mercado chinês.

Mas quais eram as previsões antes do impacto da pandemia?

Eram de continuar a crescer, sobretudo na área do agro-alimentar, tendo em conta os acordos que temos negociado e que permitem ao mercado português a exportação do que produzimos em Portugal. Foi assim há um ano com a carne de porco, exportada pela primeira vez, e com outros produtos, como a uva, a pêra, a maçã e uma série de coisas que se vendem a preços bastantes competitivos e que pretendemos continuar a exportar.

O sector agrícola assume destaque especial.

Actualmente, tem uma importância muito grande no valor das nossas exportações, um contributo muito importante no Produto Interno Bruto português. Estamos muito investidos na área do agro-alimentar, iria haver um crescimento enorme e que contribuiria para equilibrar as trocas comerciais.

Que peso tem a relação sino-lusófona na economia do país?

De acordo com as estatísticas portuguesas, a China aparecia como 11.º destino das nossas exportações e como o sexto provedor das nossas importações. Queríamos aproximar estas posições. A taxa de cobertura, que é o mais importante, passou dos 50 para os 30 por cento, ou seja, perdemos 20 por cento, o que quer dizer que aquilo que se exportou para a China só dá para pagar 30 por cento do que se importou da China. Importa reequilibrar para benefício de todos.

E ao nível de produtos?

Máquinas e equipamentos são os produtos mais exportados e importados. Também temos uma exportação importante de pasta de papel e composto de pasta de papel, de cerveja, de rochas ornamentais da zona de Fátima. São vários os produtos que figuram em primeiro lugar da lista.

Noutras áreas como a do turismo e captação de investimento, que resultados se têm alcançado? 

Os turistas chineses têm contribuído de forma ainda muito residual para a receita do turismo em Portugal. Apesar de terem aumentado bastante nos últimos anos, não são assim tantos quando comparados com outras nacionalidades. A China é o principal mercado de turistas do mundo, era o principal mercado consumidor até esta crise da Covid-19. O mercado turístico chinês é extremamente importante, porque corresponde a um turismo que nos faz falta: de qualidade, consumo, menos dedicado à praia e mais dedicado ao património. Geralmente são grupos que não são conflituosos, são respeitosos, ordeiros, que nos interessam como a qualquer país europeu, pela sua vocação.

De que forma pode Portugal ser importante para a China no plano da comunidade internacional e da lusofonia?

Não concordo com ideias e lugares comuns, como a ideia de que Portugal pode ser a porta de entrada para aqui ou acolá. A China tem uma dimensão económica e política que faz com que não precise de portas de entrada para sítio nenhum. Se quiser investir, investe. É preciso lembrar que Portugal é apenas o oitavo destino do investimento chinês na Europa. Não é o primeiro, o quarto ou o quinto. E, portanto, no que toca a portas há tantas que se somos mais uma acaba por ser um pouco esdrúxulo. O mesmo acontece com a lusofonia. O Brasil tem a China como principal destino das suas exportações e a China tem o Brasil como primeiro destino das suas, no conjunto da lusofonia. Temos de ter a dimensão das coisas e perceber que Portugal pode valer por si e não porque pode ser apenas ou mais um intermediário.

O papel externo não é uma prioridade, portanto?

Sendo uma voz activa na Europa, na lusofonia, nas Nações Unidas, e sendo respeitado nesses contextos, pode efectivamente contribuir para um melhor entendimento com a China, porque as coisas nem sempre são fáceis nestes âmbitos. Mas Portugal tem de ser conhecido pela qualidade da sua política externa e negocial. Será mais útil quanto mais autêntico for e mais valor próprio tiver. As empresas chinesas que investiram em Portugal fizeram-no pelo valor do nosso mercado.

Outra das apostas da política externa chinesa tem sido os países de língua portuguesa.

Não acho que a China se tenha destacado com um particular interesse na lusofonia. Se olharmos para as estatísticas, a China tem tido um papel crescente em dois continentes: América Latina e África. O Chile, por exemplo, tem trocas comerciais intensas com a China, assim como a Venezuela. Em África, acontece o mesmo em países como a Etiópia, o Senegal e o Egipto. Não vejo um contexto diferente de um contexto mais global e amplo daquela que é a nova realidade da China: a de uma aposta crescente nos mercados emergentes. Há uma cimeira anual entre a China e os países africanos – o Fórum de Cooperação China-África (FOCAC) – que mostra a importância crescente de África. Nesse contexto, os países de língua portuguesa não deixam de ser incluídos. É importante ter-se uma perspectiva realista.

O que quer dizer?

Não podemos ficar comodamente instalados. Temos de lutar para captar mais investimento, mais relações comerciais com todas as nações para criar mais e melhor emprego, desenvolvimento e bem-estar às populações. É verdade que tem havido uma crescente aposta em África e, como tal, nos países de língua portuguesa africanos, o que faz com que haja uma aposta crescente em quadros que dominem a língua. Tem havido uma maior procura do português na China e uma maior oferta.

Ao nível das empresas portuguesas, que vantagens e dificuldades encontram no processo de estabelecerem relações na China?

Recebo uma ou outra queixa que tem que ver com patentes e com algum desentendimento mais concreto. Mas onde o nosso trabalho é mais importante é na abertura de mercados e daí a negociação de acordos bilaterais que permitam aos nossos produtores penetrar.

Que obstáculos dificultam a entrada das empresas portuguesas na China?

Não há acordos gerais com a União Europeia, há negócios bilaterais com cada Estado, e, por isso, tem de se negociar produto a produto. O Estado português tem feito negociações para abrir o mercado chinês à entrada de produtos portugueses. Quando há queixas, abordamos sempre as autoridades chinesas para superar os problemas de forma benéfica para ambas as partes.

E ao nível do investimento chinês em Portugal, que vantagens e dificuldades encontram neste caso os empresários chineses?

Por uma questão cultural, os chineses não nos reportam os problemas. Por cultura, são muito respeitosos das realidades locais e ficam desconfortáveis em reportar as adversidades, enquanto nós encaramos isso como algo normal. Talvez reportem às autoridades chinesas, mas por regra não têm esse hábito e não o fazem. Sobre o investimento, há vários que vão surgindo, mas não ao nível do período de 2011 a 2015. Apesar de tudo, o investimento chinês não tem uma dimensão tão grande como o de outros países que investem há muito mais tempo e de forma continuada.

Qual é a dimensão da comunidade portuguesa na China? Há profissões, áreas que sejam mais predominantes?

Somos poucos. Estamos concentrados em Xangai e em Pequim. Temos muita gente ligada ao desporto, quadros qualificados. Estamos na ordem das dezenas. Não há uma comunidade tão expressiva como noutras paragens.

Outra das grandes apostas da China é a estratégia “Uma Faixa, Uma Rota”. Como olha para a iniciativa?

Portugal assinou um memorando de entendimento no âmbito da iniciativa em Dezembro de 2018, aquando da vista do Presidente Xi Jinping a Portugal. Vemos com muito interesse. É uma iniciativa que também é complementar à iniciativa da conectividade europeia. São iniciativas internacionais que podem e devem contribuir para a construção de infra-estruturas e facilitação do comércio internacional, que contribuem para fazer mais comércio. Mais infra-estruturas, por regra, também reduzem a conflitualidade, e promovem mais desenvolvimento e prosperidade.

No que respeita a Macau, que importância tem e pode ter no quadro das relações sino-portuguesas?

Macau é absolutamente incontornável na relação entre Portugal e a China, que nunca seria o que é se não fosse Macau. Por via da história, tem um contributo único, e que Portugal e a China devem reconhecer por ter sido sempre um local de união e de diálogo entre os dois países. Macau foi sempre uma ponte, nunca uma fortaleza. Nunca foi um local de conflito e isso é muito importante, e algo que nos deve orgulhar a todos. Ambos os países têm opiniões próprias, mas Macau é a expressão de que podemos ser diferentes, respeitando-nos nessa diferença de forma complementar, enriquecedora e construtiva. Macau é uma lição fantástica para o estudo das relações internacionais pelo contributo que sempre deu para esse diálogo e conhecimento mútuo entre Portugal e a China. Teve um contributo na história, tem no presente e terá certamente no futuro.

E que contributo tem o Fórum de Macau nessas mesmas relações? 

O Fórum de Macau é uma excelente iniciativa política, que pode favorecer Macau e que enriquece a própria China. Essa relação que tem com os países de expressão portuguesa dá-lhe uma importância especial do ponto-de-vista geopolítico que também deve ser usado do ponto-de-vista geoeconómico. Macau também tem interesse em diversificar a sua economia, portanto, quanto mais iniciativas tiver que contribuam para a riqueza económica mais fácil será deixar de depender só de um sector. A iniciativa política está lá, mas, por enquanto, está muito longe de atingir a plenitude do objectivo político de ser a porta de entrada para a China. Sob o ponto de vista dos mercados ainda há um caminho para preencher o potencial de Macau e do Fórum de Macau.

***

Perfil

José Augusto Duarte foi professor do ensino secundário até poder ser embaixador. Cumpriu o serviço militar obrigatório e garante que “a tropa” o “ajudou a ser melhor diplomata”. Aos 57 anos, já passou por Washington, Bruxelas, Madrid e Maputo. Agora está em Pequim, onde iniciou funções em Janeiro de 2018. Foi assessor do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Após ter integrado a equipa presidencial em Fevereiro de 2016, ainda antes da tomada de posse de Marcelo Rebelo de Sousa, o diplomata acumulou o papel de assessor do Presidente português com o de embaixador em Maputo até Maio de 2016. Durante a carreira, nomeadamente à frente da Embaixada em Moçambique, ficou conhecido pelo papel na internacionalização das empresas portuguesas e captação de investimento estrangeiro, tendo sido distinguido pela Câmara do Comércio e Indústria como “o diplomata económico de 2015”.