“Morrer ou triunfar connosco”

Entre 7 de Abril e 23 de Junho de 1924, três homens tentaram o que ainda ninguém se atrevera. Ir de Portugal a Macau, essa terra distante e desconhecida, com um só avião. Uma viagem sem precedentes que deixou o mundo em sobressalto e deu um enorme contributo técnico para a aviação mundial

Texto Marta Curto

Na madrugada 7 de Abril de 1924, uma equipa de três homens enfrentava o desconhecido, rumo a Macau, também essa, na altura, uma terra tida como longínqua, distante e quase mítica. Era a primeira vez que se fazia uma travessia aérea até lá, e ao contrário do Atlântico Sul, cuja travessia havia sido realizada com sucesso dois anos antes por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, esta fazia-se às escuras.

Pelo oceano navegavam embarcações que haviam emprestado cartografia técnica aos pilotos, mas até Macau o caminho fazia-se sobre a terra. Não havia cartografia de referência e tecnicamente não se sabia como sobrevoar todos aqueles territórios. Sarmento de Beires e Brito Pais iam com mais fé do que conhecimento, mas o sentido de patriotismo aquecia-lhes a alma. Também o avião lhes rogava fé, mas fora o mais que haviam conseguido, sem apoios do exército e apenas com a boa vontade de um povo pobre que se havia juntado para conseguir comprar em segunda mão um desactualizado Breguet XVI BN2, modelo de 1919, equipado com um motor Renault de 300 cavalos. Era fé, era coragem que os levava. Eram os anseios de todo um povo.

Sarmento de Beires e Brito Pais eram ambos pilotos do exército português. Com Manuel Gouveia, o mecânico pouco falado mas igualmente importante, que os acompanhou nesta viagem, haviam estudado e combatido em França durante a primeira Guerra Mundial. Depois de 1918, o avião tornou-se um símbolo do desenvolvimento dos países, e os pilotos os comandantes desse crescimento. Estava – simbolicamente – tudo nas suas mãos.

Em 8 de Fevereiro de 1919, um avião francês fez o primeiro voo comercial transportando passageiros de Paris a Londres. Em 1922, Gago Coutinho e Sacadura Cabral atravessavam o Atlântico Sul. E, 17 dias depois da viagem de Sarmento de Beires e Brito Pais, o Tenente Pelletier-Doisy e o mecânico Bésin faziam a viagem de Paris a Tóquio a bordo de um “Breguet” XIX.

Dois ases da aviação, também Sarmento de Beires e Brito Pais queriam que Portugal se inscrevesse na história mundial da aviação. E queriam mais do que ir de Lisboa ao Rio de Janeiro, como os colegas já haviam conseguido dois anos antes. Sarmento de Beires e Brito Pais queriam tudo: a circum-navegação. “Mas não havia fundos para tal. Eles ainda foram pedir apoio ao Estado, mas Portugal era um país muito pobre, não havia pão, greves estavam sempre a eclodir. A solução que encontraram foi fazer uma subscrição pública e decidiram-se por Macau porque era o ponto mais distante onde ainda não se havia chegado”, conta Cátia Miriam Costa, investigadora do Centro de Estudos Internacionais (CEI) do ISCTE, directora da cátedra de Ibero-América Global e professora da disciplina de China Contemporânea e coordenadora do curso China e Extremo Oriente.

E foi assim que um país pobre se uniu em torno de uma viagem simbólica e da coragem de três homens que representavam os anseios de sucesso e prosperidade de toda uma nação. “Havia espectáculos solidários que revertiam para eles, havia venda de rifas, o centro de Lisboa chegou a ser fechado para se fazerem actividades cujos lucros reverteriam para esta viagem. Até os jornais faziam campanhas de recolhas de fundos. Foi mesmo um acontecimento nacional. Todos os olhos estavam postos neles”, conta Cátia Miriam Costa, acrescentando que “a revista Seara Nova também participou com a venda de uma edição completa dos poemas de Sarmento de Beires intitulada ‘Sinfonia do Vento’ e considerada de luxo para a época. Foram vendidos mil exemplares, o que é representativo numa população de analfabetos como era a portuguesa em 1924. Tem um grande sucesso, a edição esgota”, recorda.

Imprevistos e aventuras

Voltemos então àquela madrugada fria, em Vila Nova de Milfontes, uma pequena aldeia na costa alentejana portuguesa que tinha as melhores condições climáticas para o “Pátria”, carregando uma nação, descolar teimosamente. “O Pátria, condor gigante de alumínio e seda, recortava-se na sombra agonizante, como fantasma estranho. Parecia Outono. Cheirava a terra húmida. Andavam pelo espaço profecias mudas… Gente, muita gente, não sei quanta. Xailes, lenços, vultos masculinos, crianças”, relata Sarmento de Beires no seu livro De Portugal a Macau,editado pela Seara Nova em 1925.

Com 31 anos naquela altura, Sarmento era o mais intelectual, filosófico, poético. Pelo contrário, Brito Pais de 40 anos, era o pragmático. Entre eles não havia hierarquia, sendo que tomavam juntos cada decisão, também esta uma atitude pioneira naqueles tempos. Manuel Gouveia, o mecânico, só não ia no avião quando não podia, quando o espaço era todo ocupado com mantimentos e combustível extra. Nesses casos, juntava-se aos pilotos na próxima escala. Também esse foi mais um feito raro. Normalmente estas viagens eram feitas com aviões de apoio que levavam os mantimentos, combustível, pessoal de apoio. Estes três homens iam sozinhos, com um avião cheio, e o desconhecido pela frente.

Entre 7 de Abril e 23 de junho, fizeram 16.380 quilómetros em 115 horas e 45 minutos. Uma longa viagem muito acidentada, com imensos imprevistos, todos sentidos à flor da pele. Como quando iam a caminho de Bengazi, na Líbia, a 18 de Abril, e foram surpreendidos por uma tempestade de areia a 2400 metros de altitude. “Era perigoso descer. O calor, a areia, a rarefacção atmosférica, poderiam forçar-nos a aterrar. Perco por momentos a noção da horizontalidade do aparelho, de tal maneira me entontece a névoa rubra e a luz ardente do sol doentio… Ao atingir o fundo do golfo, vivemos instantes horrorosos. Falta-nos o ar. Bebemos água a cada minuto. O sangue lateja-nos violentamente nas fontes. A transpiração não chega a humedecer a pele”. Depois de 900 quilómetros de voo, as rodas do “Pátria” tocaram o aeródromo.

Recorda Cátia Miriam Costa que “dentro do avião eles não conseguiam controlar a temperatura, tinham temperaturas muito baixas ou extremamente altas, tinham que voar e manter-se conscientes naquelas circunstâncias”. Todos estes detalhes iam sendo descritos por telegramas em cada escala, e assim mantinham o frenesim não só em Portugal como nas colónias, como ainda nos locais onde previam fazer escala, que também os recebiam com grande entusiasmo. “Estes pilotos iam trazer um enorme conhecimento técnico à aviação e, por isso, eram sempre muito bem recebidos”, conta a investigadora.

Ora pelo Cônsul de Portugal (Tunísia), ora pela Força Aérea Italiana (Líbia), ora pelas Esquadrilhas Francesas (Síria), ou pelo próprio Rei. Aconteceu no Egipto, onde durante a escala em que o “Pátria” se tornou o primeiro avião português a cruzar o Norte da África, o grupo visitou as pirâmides e teve uma audiência com o Rei Fuad I.

Na Índia, o pior aconteceu, e o “Pátria” aterrou num deserto com danos irreparáveis devido a uma tempestade. “O ‘Pátria’ começa a afundar-se lentamente, a perder altura, não conseguindo sustentar-se na atmosfera rarefeita e ardente… Sofremos horrorosamente. Gouveia desapertado, mal pode respirar. Brito Pais transpira copiosamente, e eu necessito de toda a energia dos meus nervos para continuar lutando… às 10h35, estamos a 300 metros do solo. A descida acelera-se num furacão de areia, em que o ‘Pátria’ se debate lastimosamente… Exausto, explico como posso a Brito Pais, o estado em que me encontro, e resolvemos aterrar. Junto a uma aldeia nativa, um quadrilátero de areia bem delineada, parece-me propício”, relata Sarmento de Beires.

Os habitantes da aldeia acolheram o grupo e ajudaram a carregar os destroços do avião para o comboio que ia até Jodhpur. O marajá da cidade alojou os aviadores portugueses no seu palácio, mas estes só pensavam em prosseguir viagem. Felizmente os seus anseios encontraram eco em Portugal, onde mais uma vez a população se juntou para comprar novo avião. Ninguém ia desistir. Nem os aviadores, nem a nação. O avião escolhido foi um De Havilland 9 A, comprado por 4700 libras na Índia. Os restos do ‘Pátria’ foram encaixotados e enviados para Lisboa.

Segunda etapa

Fez então ‘Pátria II’ a etapa final com escalas na Birmânia (actual Myanmar), Tailândia e Vietname. No dia 20 de Junho, o ‘Pátria II’ descolava de Sontai (Vietname) para Macau, com cerca de mil quilómetros pela frente. Já perto de Macau uma intensa tempestade só lhes permitiu sobrevoar o território. “Sobe o açoite furioso dos aguaceiros densos, rompemos para o Istmo de Macau, e passamos sobre a Ilha Verde e as Portas do Cerco”. Mudando de planos, tentam Cantão. “São cinco minutos de voo inacreditável, indescritível, irreal. O aparelho parece levado como uma folha de árvore, na violência do furacão”, relata Sarmento de Beires.

O “Pátria II” aterrou num pequeno campo perto de um cemitério chinês, nos arredores de Cantão. Dali os aviadores vão até Hong Kong e apanharam o barco para Macau, onde foram acolhidos com grande entusiasmo. Depois da chuva da tempestade, a população de Macau apenas tinha escutado o ruído do “Pátria II”, mas nem por isso lhe tirava o mérito triunfal.

“Naquela altura, há uma certa tensão que está patente na definição das fronteiras marítimas de Macau, e esta viagem também pretendia assinalar que havia uma capacidade de superação desses problemas, e de união através de um feito, de uma conquista. É a forma como é muito interpretada pelos jornais em Macau, uma vitória portuguesa mas também com outros significados, uma viagem de conhecimento técnico, porque não significaria mais que isso”, conta Cátia Miriam Costa, acrescentando que a viagem “para Portugal teve um grande significado, para Macau tem o significado do encurtamento da distância, sobretudo para quem lá vivia e estava dependente da administração portuguesa”.

Em Lisboa, os aviadores foram recebidos com fanfarra perante uma multidão que encheu o Terreiro do Paço, em Lisboa. Eram heróis nacionais, e tinham mostrado que Portugal conseguia, Portugal era capaz. E o povo agradeceu.

Sarmento de Beires foi agraciado com a mais alta condecoração nacional, a Torre de Espada, para além da Ordem de Cristo, Santiago e Espada, e a Legião de Honra Francesa. Morreu no Porto, em Portugal, no dia 8 de Junho de 1974. Brito Pais morreu no dia 22 de Fevereiro de 1934, vítima de uma colisão aérea em Portugal. O mecânico Manuel Gouveia recebeu duas Cruzes de Guerra, a Torre e Espada, e passou à reserva em 4 de Fevereiro de 1946. Morreu no dia 10 de Dezembro de 1966.